Nos
inícios do século XIX, após se ter arrancado com a magna tarefa,
pelo menos dados os meios para conseguir enfrentar os trabalhos, mais
dependentes da força humana do que de equipamentos mecânicos,
rasgou-se a projectada Avenida da Liberdade, naquele então conhecida
como PASSEIO PÚBLICO.
Deveria
ser absolutamente pertinente, especialmente para quem decide efectuar
intervenções no tecido urbano, e com o intuito de entender quais
foram e são as necessidades e comportamentos dos habitantes da
cidade estudar, com sossego e olhos de ver. E por, o passado e o
presente, atendendo sempre a que o passado nunca mais volta
exactamente como foi, pois que o entorno mudou.
Por
estranho que possa parecer, surgem dúvidas acerca de se foram
efectuados estes estudos prévios. Pelo contrário surge a noção,
fundamentada pelo que se pode observar e pelas denúncias
consequentes, que decidem e agem por instinto, por capricho ou para
cumprir compromissos, sempre tidos como activos, com as
empresas construtoras.
Deixando,
prudentemente, de lado estas insinuações, o que queria
recordar é que a necessidade de passear por ruas e avenidas de
traçado e urbanismo agradável, nomeadamente pelo Passeio
Público, estava tácitamente reservado às famílias do topo na
escala social. As fotografias da época mostram carruagens abertas
circulando, a paso lento, acima e abaixo, assim como damas com longas
vestimentas, guarnecidas de capelinas e sombrinhas. Tudo muito bem,
tentando oferecer uma visão, lusitana, dos campos elíseos
parisinos.
E
o povo? os trabalhadores braçais, os amanuenses e toda a restante
camada dos pouco endinheirados? Estes não tinham vagar nem cabimento
nestes vistosos passeios. Não foram construídos para eles.
A
evolução gerada já em XIX e continuada no XX foi abrindo as
cancelas à segregação entre camadas sociais. Passear, deambular
sem rumo fixo, tornou-se hábito entre remediados e até de membros
com menores recursos, ou que conseguiam fugir, nem que fosse esporadicamente, da pressão de ganhar o seu sustento e manter as
suas famílias.
Esta
incipiente democratização da sociedade, que pouco tinha a ver com
as autoridades da altura, fossem mais condescendentes ou ditatoriais,
era fatal que conduzisse a um abandono das passeatas na via
pública daqueles que não gostavam
de se “misturar com o povo”. O convívio entre os membros
do topo foi transferido para os salões, que nunca estiveram abertos
à plebe, a não ser como serviçais, e a zonas geográficas
afastadas, muito ou pouco, mas cuja entrada estava já, tácitamente,
acondicionada.
Quando
se legislou, para os trabalhadores assalariados, a concessão do
descanso semanal e, mais
adiante, o direito a poder auferir de um periodo de férias
remuneradas, e, dada a evolução, mesmo que lenta, das vias
de comunicação e meios disponíveis para as aproveitar, o pessoal
arrancou para fora dos seus locais de residência, em geral acanhados
e pouco agradáveis, ou mesmo insalubres. Começou-se a valorizar o
espaço aberto, o campo e, principalmente, as praias, fossem adeptos
aos banhos nas águas gélidas ou simplesmente sentir-se livres das
suas vestimentas habituais e imaginar que, uma vez despidos, ou
quase, todos eramos iguais. Uma ilusão, como sabemos.
Saltemos
para a actualidade
Muitos
dos autarcas, eleitos pela população, MAS NÃO TODOS, parece que
não entendem as normas, não escritas, que regem os cidadãos. Daí
que, nem que seja para proporcionar negócios aos seus amigos
empresários, alteram, sem atender às necessidades e desejos dos
residentes, o entorno que, melhor ou pior, cumpria o que
necessitavam.
Baldeiam,
revolvem, atrapalham a vida dos habitantes da cidade sem entender que
aquele espaço, a estrutura que os serve, é, e deveria continuar a
ser, concebida para eles, para os residentes anónimos ou também
para os que labutam longas horas naquela zona.
Proceder
como se fosse plausível repetir o antigo passeio público, mesmo que
colocando uma multiplicidade de esplanadas para ocupar,
comercialmente, os espaços que estiveram planeados para servir as
funções próprias de época, é um abuso imperdoável. A rua, seja
avenida ou um beco, é, antes de ser propriedade estatutária da
edilidade, pertença tácita dos seus utentes, sejam residentes
ou que se servem dela para se deslocar de um lado para outro. E tem
sido assim desde tempos imemoriais, como nos mostram registos
escritos e estudos arqueológicos.
Reconhecemos
que o adágio que refere serem as
conversas como as cerejas, tem todo o sentido. E por
isso, este texto, excessivamente longo para os adeptos ao VENI, VIDI,
VICI não se mostram com pachorra para o ler. Mesmo assim, sinto ser meu dever o alertar contra o conformismo, a apatia, o deixar correr, dada a
propensão existente para sonhar e imaginar que “somos os melhores” e, por isso, não pensar nos consequentes problemas. Não queremos valorizar e tirar ensinamentos com o que já aconteceu em casa
alheia.
Gostaria
de dissertar sobre o erro, crasso, de vender a alma ao diabo, no
sentido de nos ofuscar como sendo, o turismo, a solução económica
do País. O ímpetu que se criou para mudar tudo o que nos era útil,
para ficar de braços (e pernas?) abertos para o turismo.
Vamos tornar Portugal uma má réplica de Bali? Ou das zonas de verão,
ou dos desportos de neve, que fora da época alta estão desertas? Ou
voltará a lucidez de tratar da nossa casa, para nós e com a
colaboração de todos? NÃO ACREDITO NESTE SONHO HIPOTÉTICO.
E
a desgraça tende a alastrar, ou já alastrou, a muitos outros
núcleos urbanos, inclusive em pequenas vilas, practicamente
desabitadas, que se “venderam” para as transformar naquilo que
não deveriam ser jamais.
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