terça-feira, 7 de março de 2017

O PASSEIO PÚBLICO



Nos inícios do século XIX, após se ter arrancado com a magna tarefa, pelo menos dados os meios para conseguir enfrentar os trabalhos, mais dependentes da força humana do que de equipamentos mecânicos, rasgou-se a projectada Avenida da Liberdade, naquele então conhecida como PASSEIO PÚBLICO.

Deveria ser absolutamente pertinente, especialmente para quem decide efectuar intervenções no tecido urbano, e com o intuito de entender quais foram e são as necessidades e comportamentos dos habitantes da cidade estudar, com sossego e olhos de ver. E por, o passado e o presente, atendendo sempre a que o passado nunca mais volta exactamente como foi, pois que o entorno mudou.

Por estranho que possa parecer, surgem dúvidas acerca de se foram efectuados estes estudos prévios. Pelo contrário surge a noção, fundamentada pelo que se pode observar e pelas denúncias consequentes, que decidem e agem por instinto, por capricho ou para cumprir compromissos, sempre tidos como activos, com as empresas construtoras.

Deixando, prudentemente, de lado estas insinuações, o que queria recordar é que a necessidade de passear por ruas e avenidas de traçado e urbanismo agradável, nomeadamente pelo Passeio Público, estava tácitamente reservado às famílias do topo na escala social. As fotografias da época mostram carruagens abertas circulando, a paso lento, acima e abaixo, assim como damas com longas vestimentas, guarnecidas de capelinas e sombrinhas. Tudo muito bem, tentando oferecer uma visão, lusitana, dos campos elíseos parisinos.

E o povo? os trabalhadores braçais, os amanuenses e toda a restante camada dos pouco endinheirados? Estes não tinham vagar nem cabimento nestes vistosos passeios. Não foram construídos para eles.

A evolução gerada já em XIX e continuada no XX foi abrindo as cancelas à segregação entre camadas sociais. Passear, deambular sem rumo fixo, tornou-se hábito entre remediados e até de membros com menores recursos, ou que conseguiam fugir, nem que fosse esporadicamente, da pressão de ganhar o seu sustento e manter as suas famílias.

Esta incipiente democratização da sociedade, que pouco tinha a ver com as autoridades da altura, fossem mais condescendentes ou ditatoriais, era fatal que conduzisse a um abandono das passeatas na via pública daqueles que não gostavam de se “misturar com o povo”. O convívio entre os membros do topo foi transferido para os salões, que nunca estiveram abertos à plebe, a não ser como serviçais, e a zonas geográficas afastadas, muito ou pouco, mas cuja entrada estava já, tácitamente, acondicionada.

Quando se legislou, para os trabalhadores assalariados, a concessão do descanso semanal e, mais adiante, o direito a poder auferir de um periodo de férias remuneradas, e, dada a evolução, mesmo que lenta, das vias de comunicação e meios disponíveis para as aproveitar, o pessoal arrancou para fora dos seus locais de residência, em geral acanhados e pouco agradáveis, ou mesmo insalubres. Começou-se a valorizar o espaço aberto, o campo e, principalmente, as praias, fossem adeptos aos banhos nas águas gélidas ou simplesmente sentir-se livres das suas vestimentas habituais e imaginar que, uma vez despidos, ou quase, todos eramos iguais. Uma ilusão, como sabemos.

Saltemos para a actualidade

Muitos dos autarcas, eleitos pela população, MAS NÃO TODOS, parece que não entendem as normas, não escritas, que regem os cidadãos. Daí que, nem que seja para proporcionar negócios aos seus amigos empresários, alteram, sem atender às necessidades e desejos dos residentes, o entorno que, melhor ou pior, cumpria o que necessitavam.

Baldeiam, revolvem, atrapalham a vida dos habitantes da cidade sem entender que aquele espaço, a estrutura que os serve, é, e deveria continuar a ser, concebida para eles, para os residentes anónimos ou também para os que labutam longas horas naquela zona.

Proceder como se fosse plausível repetir o antigo passeio público, mesmo que colocando uma multiplicidade de esplanadas para ocupar, comercialmente, os espaços que estiveram planeados para servir as funções próprias de época, é um abuso imperdoável. A rua, seja avenida ou um beco, é, antes de ser propriedade estatutária da edilidade, pertença tácita dos seus utentes, sejam residentes ou que se servem dela para se deslocar de um lado para outro. E tem sido assim desde tempos imemoriais, como nos mostram registos escritos e estudos arqueológicos.

Reconhecemos que o adágio que refere serem as conversas como as cerejas, tem todo o sentido. E por isso, este texto, excessivamente longo para os adeptos ao VENI, VIDI, VICI não se mostram com pachorra para o ler. Mesmo assim, sinto ser meu dever o alertar contra o conformismo, a apatia, o deixar correr, dada a propensão existente para sonhar e imaginar que “somos os melhores” e, por isso, não pensar nos consequentes problemas. Não queremos valorizar e tirar ensinamentos com o que já aconteceu em casa alheia.

Gostaria de dissertar sobre o erro, crasso, de vender a alma ao diabo, no sentido de nos ofuscar como sendo, o turismo, a solução económica do País. O ímpetu que se criou para mudar tudo o que nos era útil, para ficar de braços (e pernas?) abertos para o turismo. Vamos tornar Portugal uma má réplica de Bali? Ou das zonas de verão, ou dos desportos de neve, que fora da época alta estão desertas? Ou voltará a lucidez de tratar da nossa casa, para nós e com a colaboração de todos? NÃO ACREDITO NESTE SONHO HIPOTÉTICO.


E a desgraça tende a alastrar, ou já alastrou, a muitos outros núcleos urbanos, inclusive em pequenas vilas, practicamente desabitadas, que se “venderam” para as transformar naquilo que não deveriam ser jamais.

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