sábado, 30 de junho de 2018

CRÓNICAS DO VALE – CAP. 43º


Já no habitual

Amigo Dr. Cardoso. Agradeço que me tenha concedido uns minutos, que espero não serem muitos, para me receber depois de uma ausência quiçá demasiado longa. Em princípio só pretendia cumprimenta-lo e confessar que, apesar de estar a bastantes quilómetros deste canto da Europa, o nosso pensamento, pois incluo a minha mulher, esteve sempre pendente do Vale, ambos estivemos sempre preocupados com o que poderia acontecer à volta da nossa propriedade. Concretamente se houve sequelas das mortes que nos ofertaram.

Seja como for, logo que entramos em casa, demos ordens concretas para que não nos contassem boatos ou notícias desagradáveis. Caso existissem novidades merecedoras de conhecer, preferíamos saber delas através de meios oficiais, nomeadamente da Polícia ou dos Tribunais. E é tudo o que lhe posso contar, pois que relato de vivências do passeio seria próprio para o ter numa cavaqueira a quatro, numa refeição tranquila em terreno neutral, ou seja, dos dois casais livres de protocolos profissionais. Creio que individualmente merecemos isso.

Pois Amigo Maragato, embora as novidades não sejam muitas, mesmo assim são importantes. Mas o sigilo que sei entende que devo manter neste lugar impede-me de expor, com amplitude e a franqueza que merece, o que ainda permanece a nível de reservado. Eu, pelo que deduz, devo manter a boca mais fechada do que desejaria, mas vou dar-lhe uma janela que o pode elucidar. Procure ter uma conversa com o seu amigo “Rei” da ciganagem da zona, pois sei que ele está à par dos avanços e recuos deste assunto. Aquela abertura que o Amigo fez, e que estava na sequência de anteriores permutas de “gentilezas”, deu frutos com mais rapidez do que os meios de investigação a meu dispor e das forças militarizadas.

Isso não impede de que possa fazer uma pausa no trabalho e lhe proponha que me acompanhe até o café mais próximo para molhar o bico numa bica, ou cimbalino, e ali puxar-lhe da língua para saber das suas impressões, por exemplo sobre o famoso Danúbio Azul. Vamos?

Pois apesar de não ser muito apreciador dos passeios de barco, por os considerar excessivamente lentos para o meu gosto, desta vez tive que ceder ao desejo da Isabel, que não se contentava com os dias de visita em Viena e insistiu, para não ser menos do que algumas clientes do salão que enchem a boca com o Danúbio, a embarcar rumo a Budapeste, e foi uma boa decisão, pois além de que o trajecto era muito variado o barco era quase um hotel flutuante. Não tanto como as monstruosas baleias que navegam pelos mares, pois o calado disponível no Danúbio não permite excessos. Mas lá dentro tinha tudo o que se podia esperar, e mais até.

Se Viena -nada de Viena de Áustria pois não tem nada que aproxime a nossa Viana do Castelo com esta do Império Austro-Hungaro, cada uma no seu lugar, que merecem na sua dimensão- merece a fama que carrega, numa cidade que respira história e passado com riquezas que aqui nem conseguimos avaliar, é suficiente recordar a chegada a Viena de avião. Foi espectacular, com o bom tempo e sol radioso, horizonte límpido, sem nuvens. Não rezamos a pedir tão bom acolhimento do clima, mas ainda pensei que Eolo nos favoreceu. A entrada em Budapeste pelo Danúbio é também de cinco estrelas. Mas gostaria de estarmos os dois casais para falar com sossego desta nossa viagem de noivos. Agora tenho que tentar encontrar o Ortega, para ver se ele me situa na actualidade do que me tem preocupado.

Aceito a sua sugestão, e se não se importa direi à minha mulher que entre em contacto telefónico com a sua para combinar este almoço.

Até breve, espero eu.

Ortega? Sou o José Maragato. Podemos ter uma conversa? Cheguei ontem da viagem de casamento e desconheço em que estado se encontra o sarilho dos mortos nas minhas terras.

Oh, Doutor Maragato, meu Amigo, é um gosto ouvir a sua voz e gostaria de poder almoçar na sua companhia. Onde está? Eu estou em Montemor, com um olho no andamento da feira. Se puder chegar em menos de uma hora almoçaríamos num restaurante que está na Praça da República. Tem o nome de Dom Dinis.

Eu estou de partida de Coimbra. Para já agradeço a prontidão com que se dispôs a ter uma conversa, com garfo, faca e copo. Se o transito estiver bom, em pouco tempo estarei em Montemor, e ajuizando pelo seu tom de voz avanço que me dará novidades agradáveis, ou pelo menos tranquilizadoras. Até já. Quem chegar primeiro que escolha mesa!



segunda-feira, 25 de junho de 2018

CRÓNICAS DO VALE – Cap. 42º




Querida Isabel. Ainda bem que já estamos perto do fim da nossa viagem. Nestes dias, ou semanas, vimos muitas coisas, apreciamos paisagens, visitamos palácios, museus, cidades, terras típicas, dormimos em hotéis espectaculares e comemos tanto em restaurantes com estrelas como em locais sem tanto aparato, mas sempre bem atendidos e com pratos apaladados. E de tudo isto o facto mais importante, para mim e certamente para ti também, é que entre ambos parecia que estávamos, de facto, numa viagem de noivos entre pessoas muito mais jovens do que realmente somos. Uns noivos seródios.

Mas isso não pode esconder que, desde que partimos do Vale, sentisse uma espécie de remorsos. Era uma sensação de sermos uma espécie de desertores. Pode ter deixado a impressão de que que fugimos de umas responsabilidades que de facto não tínhamos. Não sou capaz de explicar melhor. Mas nestes dias, que deviam de ter sido de absoluta paz, sossego e alheamento, o facto é que tinha pesadelos ligados aos mortos e aos bandidos que nos colocaram os cadáveres no terreno.

José, não tens estado só nesta inquietação. Notei o teu remoer todos estes dias, e não necessitas de me dizer que sonhavas, até porque quase todas as noites estavas agitado e chegavas a falar dormido. Só entendia palavras soltas, mas via bem que o argumento deste teu tormento interior estava ligado ao tema dos crimes. Nunca te quis dar a entender que entendia sermos ambos vítimas dos acontecimentos recentes. Mesmo assim tinha a ilusão de que, com o passar dos dias, a tua angustia se fosse esbatendo. Não foi assim, uma pena, até porque este teu fardo também o senti nas minhas costas. Sossega, tudo se esclarecerá, ou pelo menos poderemos saber que a nossa ficha policial não ficará maculada com esta façanha alheia.

Agradeço este teu esclarecimento, mas mesmo assim, quando chegarmos e depois de ligar à realidade terrestre, a primeira coisa que farei, no dia seguinte, será procurar que o inspector Cardoso e tentar que me conceda uns minutos do seu tempo e me diga dos possíveis, ou impossíveis, progressos na identificação dos responsáveis directos e indirectos, ou seja dos mandantes, que certamente tudo farão para ficar na escuridão. Temos que avisar o pessoal da casa, incluído o feitor Ernesto, no sentido de que não queremos saber das notícias e boatos, antes de saber o que nos queira dizer a Polícia Judiciária. Estás de acordo Isabel?

Com certeza, parece que esta tua reserva é a mais correcta. E a propósito, eu também tenho que tratar dos meus salões e por isso, e mais o resto, não desejo acompanhar-te no encontro com o Doutor. O meu papel tem que ser triplo, como as fichas para ligar mais de uma coisa à mesma tomada. Por um lado, e principal, agir como uma esposa “clássica”, ou seja, em segundo plano, mas ser sempre um apoio garantido. Depois vem o papel de Dona de Casa, do qual não abdico, mesmo que valorize, e muito, a dedicação da Idalina. Cada uma no seu lugar, e a Idalina mostrou-me, desde o primeiro dia, que estava consciente do seu papel na hierarquia da casa. E, finalmente, o de empresária.

Foi neste patamar social, se assim o posso definir, que me conheceste e não tardei a ver, depois de alguns encontros preliminares, que não eras talhado para te armar em galo da capoeira. Ou seja, que apesar de teres conhecimento directo, através de mim e por não existirem segredos, de como estava estruturado o meu negócio, tiveste o bom senso, que apreciei e apreço, de te manteres mais como observador ou consultor do que como coproprietário.

Não sei se consegues avaliar o que sinto e valorizo a esta tua atitude ao respeito. Se tentar explicar posso escorregar nas palavras, ser rude ou inconveniente sem querer, mas a realidade é que, para mim e dada a minha vida anterior, o poder manter um sentimento de independência, de não sujeição até nas coisas mais melindrosas ou mesquinhas às autorizações de um marido, facilita-me o ver em ti um igual e não um esposo como aqueles que eu oiço descrever às clientes do salão. Muitas delas referem-se aos seus maridos como uns inimigos que estão obrigadas a respeitar, pelo menos aparentemente, pois as suas conversas, de foro falsamente íntimo, não são mostras de uma conjugação de caracteres, e menos até de amor. Não digo do amor inflamado, expansivo, dos tempos de namoro, mas daquele que se deve gerar com o convívio conjugal, sereno e contínuo. Aquilo que acompanha os casais bem avindos.

sábado, 23 de junho de 2018

CRÓNICAS DO VALE - CAP 40




Bom dia Senhora Idalina, tem estado muito arreda desde que os patrões andam pelo mundo fora.

Nem tanto assim, dou todos os dias grandes passeios pelo jardim à volta da casa, arrancando ervas que o senhor Ernesto, ou algum dos seus amigos que aqui emprega, se decidam a limpar. Se pensa dar uma suadela antes que os patrões cheguem é bom que comece quanto antes.

Muito me conta. Deve saber mais do que nos, os da malta de sol e chuva.

Não tenha ciumeira. Pense que seja o patrão José ou a Patroa Isabel, apesar de estarem longe, querem ter um olho no garfo e outro no prato. Ou se preferir, não há dia em que , seja pelo telefone ou por carta, não perguntem pelo andar da carruagem ou nos enviem instruções acerca do que fazer e não descurar. Nem sei como conseguem desfrutar dos seus passeios por estes mundos por donde andam se, como nos dão a entender, tem as suas cabeças mais no Vale do que nas maravilhosas cidades que vistam.

E a Idalina tem ideia das terras e cidades, montes, vales e rios, por onde andam?

Pode ficar com inveja, mas a Dona Isabel tem mandado alguns postais muito bonitos, que noutra altura lhe poderei mostrar. E além disso, agora tenho tido mais vagar e vejo programas da televisão que mostram países e terras que nem fazíamos ideia que existiam. Agora estas imagens nos põem o mundo à frente do nariz. Seja como for, tenho indicações de o avisar de que não tardarão muitos dias em cá aparecer. Tenha tudo não só arranjado mas tampouco seria pior que pudesse mostrar alguma coisa de sua iniciativa.

Mas o quê? Eu sempre fui um bom cumpridor do que me mandam e pouco me atrevo para meter-me em trabalhos sem saber, de antemão, se seriam de gosto dos patrões.

O Ernesto às vezes parece um garoto. Não me diga que nunca pensou em preparar uns canteiros de horta, com pés arranjados nalgum amigo que tenha feito viveiro. Ou enxertar uns pés ou braças de videira ou árvores de fruto com variedades novas? Sei que os caseiros e aqueles que tratam de uma horta própria, tem sempre os olhos postos em conseguir melhorar os seus produtos e, se possível, tentar novas culturas. Será que puxa para ver se eu conto a missa ao vigário?

Já matutei por muitas vezes em fazer uma horta nas traseiras da mansão. No tempo em que morava aqui a Dona Constança, primeira esposa do patrão Luís, eu ainda era um rapaz novo, e o meu pai, que Deus o tenha ao seu lado, colocou-me como jardineiro às ordens da dita Dona Constança. Esta Senhora tinha mais queda para flores e arbustos do que para horta de produtos para a cozinha. Dizia ela que este era negócio para as pessoas que moravam no Vale e que até lhe agradeciam que lhes comprasse as alfaces, favas, ervilhas, abóboras, nabos e tudo o mais que fizesse falta na cozinha. Ela queria canteiros de flores, as plantas aromáticas, e os arbustos podados como nas mansões dos nobres de Coimbra. Um dia levaram-me a Coimbra, de propósito, para que eu visse como eram os jardins da gente fina. Tive que aprender desde principio.

Mas a ideia da Dona Idalina parece-me ser mesmo boa. Enquanto falávamos já ia vendo, na minha cabeça, os canteiros que posso preparar, adubados com o esterco dos animais e regados com a água do açude, que chega bem para o jardim e sobrará para a horta. Olhe Idalina, vou meter mãos à obra antes que o pensamento arrefeça. E já sei onde posso ir procurar pés para plantar.

Pois fico muito feliz por ver que o Ernesto não só entendeu o que lhe disse mas melhor, que tomou interesse em avançar. Sei, por o conhecer de anos, que será capaz de mostrar uma horta em início à Dona Isabel, e que esta não deixará cair esta iniciativa em saco roto. E agora vou para dentro, que tenho coisas a tratar com a ajuda da Amélia, que se fez uma excelente mulher, responsável e trabalhadeira.