CRÓNICAS
DO VALE – Cap. 96
Com
Rafael Ortega, e outros temas
-
De
facto já aqui estivemos, os dois, no princípio do nosso
conhecimento. E tenho boas lembranças, tanto do local como do
marisco e até da refeição que aqui nos prepararam. A única
diferença é que naquele dia o Ortega, por precaução e por não me
conhecer directamente -assim
pensei eu-
veio acompanhado por alguns moços da sua família, que se
mantiveram atentos, mas sentados prudentemente afastados da nossa
mesa. Expectantes, mas dando nas vistas, dada a pouca clientela que
havia no local.
-
Boa memória, sim senhor. E se tudo correu bem aquele dia hoje não
correrá pior. Para já e dada a hora proponho que tomemos umas leves
entradas, digamos uns percebes e uns camarões quase crus, e um vinho
leve, fresquinho, que depois pode continuar na mesa para ajudar a
passar um robalo, com sangue na guelra e olhos vivos; que eu vi na
cozinha quando entrei para lavar as mãos. Pode ser?
-
Óptimo. Nada a contrariar. Mas antes de entrar em coisas sérias,
sem desmerecer do assunto que pretendia expor, gostaria de saber, por
curiosidade mas também por interesse pessoal entre amigos, como
terminou aquele problema do casamento negado pela noiva descontente.
Recordo que, depois de conversas sérias entre as duas famílias,
decidiram afastar o noivo até a Andaluzia, creio que referiu Málaga
como lugar de afastamento, e que ali certamente seguiria outro
caminho, e não tardaria em se acasalar, a gosto, com uma da mesma
etnia, ou não, mas de fala andaluza, que não é exactamente igual à
de Castela, apesar de serem da mesma família linguística.
-
E assim se fez. Para mal, ou bem, dos meus pecados. Para aliviar o
ambiente, quando nos reunimos os representantes das duas famílias
acertou-se em viajar uma comitiva bastante representativa, onde se
inscreveram, massivamente, as raparigas mais novas. Mas também
jovens e adultos. Aquilo parecia uma romaria à Virgem do Rocio, mas
exclusiva de familiares dos Ortega, e anexos. Foi uma festa, os malaguenhos se prontificaram a nos dar um espectáculo equivalente,
ou quase, ao de um casamento. E se todos se divertiram, os nossos jovens abriram os olhos como pratos de sopa, e absorveram todas as
novidades que já estavam fixas entre aqueles parentes calés, mais
concretamente espanhóis.
E
na viagem de regresso é que se apreciaram os efeitos. Que
ultrapassaram bastante ao do tema de um casamento não aceite pela
noiva. A influência foi muito mais profundo e rápida. Na época em
que nos encontramos, nós que já somos vistos como velhos jarreta.
Tudo muda a uma velocidade equivalente à dois novos modelos de
telemóveis, que quase já não se usam para falar entre familiares e
amigos. Só lhes falta, por enquanto, poder estrelar ovos sobre o seu ecrã. Por isso não me admiro do facto de que o amigo Maragato, e
outros da cidadania não calé, verifiquem que ao roupa preta, as
barbas cerradas e os chapéus de vampiro, estão desaparecendo. Pelo
que me contam os sabedores, nem os decretos dos séculos XVII a XIX
conseguiram uma mudança tão notória na nossa imagem pública como
a que está em andamento agora. E, sabe? Tudo isso é efeito da
educação geral, da inclusão e adaptação à escola oficial. Já
temos gente nas universidades, e entre eles uma percentagem notável
de raparigas. Muita coisa está a mudar, também entre os calés.
-
Não sei se lhe vou dar os parabéns ou os “sentimentos”, mas, de
facto, não é só no seio da sociedade dos paios que as mudanças
ocorrem. Imaginamos que tendemos a igualar. Mas com a minha idade
desconfio que esta igualdade será, como sempre foi, parecida a dos
dedos das mãos, são igualmente nomeados como dedos, mas se existe
um grupo de quatro mais parecidos entre si, apesar de terem tamanhos
diferentes, o quinto dedo, o oposto, é notavelmente diferente.
Vistos os homens, e mulheres, em grupo, mantemos em acordo com
aquela máxima que alerta: Todos somos iguais, mas uns mais
iguais do que outros.
E
agora lhe queria dar a palavra para que me esclarecesse o porquê o
Ortega sentia que queria falar comigo.
-
A sua gentileza em me dar uma entrada de tipo pessoal ao meu discurso
foi bem recebida por mim. E até me está a causar um certo
retraimento em relação ao assunto que me mantinha em alerta.
Não
é credível que nenhum dos que se viram mais ou menos afectados com
aquela inesperada “partida” que lhe fizeram, usando os seus
terrenos como se fosse um vazadouro clandestino de cadáveres não
propriamente mortos mas sim matados.
Alguns
dos meus companheiros que colaboraram na vigilância daquela sede da
maldade e da sem vergonha, ainda mantiveram o hábito, mesmo que
esporádico, de irem dar uma volta por aquela zona, e espreitar o que
estava acontecendo depois de uns meses de aparente abandono. E do que
viram, perguntaram e ouviram se fez uma nova visão de renascença
para aquele casarão. Até agora não consegui organizar de uma
forma evidente as diferentes observações que me foram apresentadas.
Mas conhecendo como as pessoas são e como se comportam, especialmente sobre o pouco que se muda quando se apanha um vício, não me induz a
que se possa antever nada de bom, e muito menos limpo, da evolução
que ali se está a preparar.
Primeiro
pensei que não era plausível que no futuro se avançasse com as
mesmas, ou parecidas, actividades que levaram ao seu encerramento.
Tentei imaginar que tivesse sido comprada, a propriedade, por alguma
igreja baptista, onde muitos ciganos estão inclusos como fiéis.
Sebe que nós, os desta etnia, apesar de pragmáticos e pouco
patriotas, ou ligados à sociedade onde nos radicamos, sentimos a
necessidade de nos apoiar num credo, quanto mais extravagante melhor.
Mas
o que me contaram da divisão do edifício em três blocos totalmente
independentes. Sendo um deles o das caves, ou subterrâneo, embora
que muito modificado e com pé direito normal e fachada aberta nas
traseiras, com instalações sanitárias e ventilação, além de
alguma iluminação natural, especialmente pelas traseiras, senti que, mesmo com diferenças notórias, ali também se deveriam
albergar pessoas e não somente grades de cerveja e caixas de bebidas
espirituosas. Ou as agora desmanteladas salas de castigo e tortura
que lhe deram fama.
Por
tudo isso e desconhecendo o que virá a seguir, queria alertar o
Doutor sobre a reencarnação daquele edifício, de má memória.
-
Desculpe amigo Ortega. Tenho que atender uma chamada da minha mulher.
- Estou,
o que me traz de novo a querida esposa Isabel?
- Pois
que estive esperando que me chamasses, e nada! Já te esqueceste de
que existo. E como não te localizei já estou almoçando com as duas
encarregadas das lojas. E tu, por onde andas?
- E comigo sucede que encaminhei-me para Aveiro e, inesperadamente, me dei
de caras com o Amigo Ortega, que está ao meu lado. Se o visses não
o conhecerias. Está com outro look totalmente diferente. Só lhe
falta cortar mais um bocado a cabeleira e pintar o cabelo de ruivo ou
loiro. Então é que ninguém o identificaria. Até diria que está
mais magro, mais elegante. Tinha vontade de o ver, especialmente para
saber como evoluiu aquele casamento desfeito. E o Ortega também me
disse que estava pensando em me chamar, para contar algumas
bisbilhotices. Já te darei pormenores em casa.
Mas
pensas continuar até Aveiro e nos encontrarmos na Veneza portuguesa,
ou vais direita para o Vale?
-
Quase que preferia passar o serão contigo, mas em Aveiro. Procura
onde nos acoitar e depois diz-me. Eu tenho previsto estar atarefada
até as 19/20 horas, de forma que tens muito tempo livre. Ah! Eu e se
calhar tu tampouco, vim precavida com uma bolsa com roupa para o dia
seguinte. Claro que havendo lojas abertas e cartão de
débito/crédito, tudo isso se resolve facilmente. Uma beijoca,
querido. JUÍZO!!
-
Desculpe Ortega, mas isto de trazer uma trela, mesmo que nos aqueça
os pés na cama, também traz algumas obrigações. Mas, tudo bem.
Vamos ao robalo que já está a chegar! E com bom aspecto! BOM
APETITE !
No
próximo capítulo teremos o reencontro. Falar-se-á com os filhos do
José e outras banalidade.