quinta-feira, 20 de julho de 2017

CRÓNICAS DO VALE - cap. 17



Mudanças de planos. As suspeitas confirmam-se

- Luísa? Sou o pai, ouves?

- Sim, perfeitamente. Há novidade? Bem, além do que vem nos jornais sobre o cadáver, ou restos dele, que te colocaram no terreno?

- E que há mesmo. E temos que falar. Pensava em vir até Lisboa amanhã, no comboio mais rápido que conseguir apanhar e encontrar-me com os dois. Não sei bem o horário, mas, caso estiverem livres almoçaríamos juntos. Liga ao Bruno e combinem. Depois dizes-me. E eu, logo que possa, darei a hora de chegada à capital do Reino.

- Mas o assunto é grave?

- Bem, grave de morrer não, mas acumularam-se vários acontecimentos que alteraram, profundamente, os planos que tinha em mente. Mas falaremos nisso enquanto recuperar-mos forças num sítio calmo e com boa cozinha. Nisto, e noutras coisas, terão que me dar uma ajudinha.

- Boa tarde, menina Alice. Pode anunciar a minha visita aos doutores Miranda e Reis? Sabiam que eu vinha hoje, mas sem hora marcada. Obrigado.

- Os doutores estão à sua espera. Ou melhor, já estão mesmo aqui.

- Caros amigos Vítor e Raul. Para já agradeço a prontidão em me atender e, certamente, que terão sabido alguma coisa acerca do tema que relatei ao Raul, concretamente respeitante à prenda que alguém deixou no terreno que tenho no Vale.

- Mas entremos no gabinete das reuniões, estaremos mais cómodos e aproveitaremos para degustar uma aguardente velhíssima. A Alice não nos passe telefonemas nem de notícias de visitas, se faz favor.

- Podem estar tranquilos que por aqui não passará nem que fosse a judiciária em peso.

- Pois, de facto, caro Zé, tiveste faro ao suspeitar de que este morto trazia uma história agarrada ao esqueleto. Conta tu, Vítor, que tens mais arte na dialéctica.

- Para já, o assunto é daqueles que afectam muitos graúdos e alguns desgraçados da raia miúda que são usados para gáudio. Antes de avançar garanto, pelo que soube, que será um daqueles temas que ficarão guardados a sete chaves.

Lembras daquela barracada dos Ballet Rose que aconteceram no tempo do Salazar e que só foi conhecido pelos que se moviam pelo meio das altas esferas? Pois, este de agora tem muitas semelhanças, se bem que penso consegue ter atingido níveis mais escabrosos.

- Posso dar a minha versão, que só tem base na minha fértil imaginação?

- Teremos todo o gosto em te ouvir, e quase a certeza de que pouco errarás. Mesmo assim interromperemos se for caso disso.

- Pois imagino que estes amantes das emoções fortes, especialmente no campo da sexualidade “perversa” e clandestina, devem ter uns locais próprios donde se possam espairecer sem dar muito nas vistas. E, seguindo nesta hipótese, numa orgia que deve ter acontecido nalguma mansão da serra, seja no Buçaco ou Caramulo, sem descurar a possibilidade de uma casa solarenga, um pouco afastada das estradas mais concorridas, e num raio entre os 50 e máximo 100 km do meu terreno. Houve um dia em que as doideiras deram bronca.

Ou desconfiaram daquele artista travesti. Fosse porque não gostou dos tratamentos e avisou que os denunciaria ou, mais provável, que exigisse uma maquia extra, e graúda, para se calar.

- É possível que a razão de o matarem fosse esta, ou outra equivalente. Num ambiente de bebedeiras, drogas duras e muito sexo de todo género, é fácil que alguém descarrile e cometa uma loucura que é imperioso abafar. Daí que surgisse a necessidade não só de arrumar o corpo do delito, como se diz nos romances amarelos, que já décadas deixaram de ter esta cor na capa, e também de dar exemplo de que é perigoso refilar com certa gente.

- E como é que chegaste a esta teoria tão elaborada?

- Por pura casualidade. Um mês atrás, mais coisa menos coisa, pus a mansão do Vale à venda, e um dos primeiros interessados que por lá apareceu era um tipo com má pinta, certamente que um intermediário, que principalmente queria saber se havia bastantes salões e quartos com casa de banho privativa, embora dissesse que o espaço era amplo suficiente para poder equipar devidamente os quartos que não cumprissem esta exigência.

O blá-blá-blá do fulano indicou-me que pensariam comprar a propriedade para lá instalar uma casa de encontros de primeiro grau para “gente grada e fina”. Além disso ficou muito agradado com a possibilidade de poderem utilizar a adega anexa, hoje desactivada, para ser usada como garagem fechada e assim, digo eu, retirar da vista de curiosos indesejados, os carros dos clientes.

Ao ver aquele morto de imediato suspeitei de ser uma execução ou uma morte acidental, mas esquisita, dado que o colocaram nu e sem elementos de identificação imediata. E quando apareceu o nome do morto, o meu caseiro me disse que podia ser a de um conhecido travesti, frequentador dos carnavais como bailarina brasileira feita à pressa, a minha mente, fértil e dada à malandrice, elaborou este esquema que vos relatei.

- A grandes rasgos acertaste em cheio. Só será necessário acertar alguns detalhes. Importantes mas, como dissemos de início, sigilosos quanto baste para não nos atrevermos a divulgar à janela.

Continua



segunda-feira, 17 de julho de 2017

CRÓNICAS DO VALE -cap. 16



Chegada ao hotel, Queca rápida e saída para compromissos. O CADÁVER CHEIRA MUITO MAL, A ESTURRO.

Cá estamos, vou-me apresentar ao concierge – sentem-se muito importantes com este tratamento. 

Boa tarde, sou José Maragato e fiz uma reserva específica para um quarto. -- - - Está tudo como o Doutor pediu, cá tem a chave e depois tratei da vossa ficha, pois certamente que quer receber a bagagem e descansar. -
- Será sol de pouca dura pois temos coisas a tratar nesta Lusa Atenas. Agradeço a sua atenção -e passei uma nota que já levava dobrada na mão.

Era este o quarto que desejavas? 

- Nem mais. Já cá estive em duas ou três ocasiões com uma amiga 

- (pois, uma amiga... Diz-me dessas e arrisca a pores o teu dedo na minha boca. Pode ser que eu morda o dedo e cuspa no anzol. E pensas que eu não conheço este ninho? Este jogo entre homens e mulheres carece de bom humor e descontracção

- Desculpa um momento. Estou aflita e quero refrescar-me. É um instante. E cá estou novamente. Gostas? Estas peças são de estreia e não foram compradas no chinês. 

- Se me der um badagaio no meio da luta corpo-a-corpo terás que chamar o 115! Tenho que vazar a água das azeitonas, quanto antes, pois que se o armamento estiver pronto a disparar é muito mais difícil despejar lastro.

Pois despacha-te, que desta vez quero duas seguidas e sem desencavar. Esta vestimenta deixou-me uma fera. Se assim me vês por fora nem sabes como estou por dentro. Até já sinto escorrer! Não são só os homens que deliram com a lingerie. 

- Pois. Por muito que gostasse, e gostei, foi além de uma imprudência, um material gasto antes de tempo. 
- Não sejas parvo, lembra que até o lavar dos cestos é vindima, e nem sequer se colheram metade das uvas. 

- O que eu te digo é que colocaste tanto saber e desejo neste teu corpo que deixaste-me arrasado em menos de dez minutos. ASSIM NÃO VALE!!

Agora, se me deixasse cair no relaxo ficaria a dormir até o sol posto, e sabes que não pode ser. Temos muito que fazer ainda esta tarde. Vou tomar um duche bem quente e vestir roupa lavada. Eu desço primeiro para tratar da papelada e arrumar o carro. Espero por ti na recepção. Não te demores. Repito que temos algumas coisas a tratar hoje, sem falta.

Antes de tudo, e como te disse, vamos ao notariado. Conheço o notário desde muitos anos e sei que tratará de tudo sem problemas. Boa tarde. Tenho entrevista marcada com o Senhor Doutor Macário Almeida. Pode anunciar que José Maragato já chegou? Com certeza Doutor. O Doutor notário vos aguarda. Façam o favor de entrar. 

- Então Zé? Dá cá um abraço! E esta senhora, tão formosa deve ser a noiva, se acredito no que os olhos me dizem e no que me falaste ao telefone. 

- Pois é isso mesmo, amigo Macário. Estamos decididos a juntar os trapinhos com a legalidade pertinente. E quanto antes. Daí que seria bom que um teu funcionário, de confiança, nos trate da papelada sob a tua revisão. Quando entenderes que temos que cá vir só tens que me ligar a este número. Uma pergunta. É necessário trazer testemunhas? 

- Bem, fica mais correcto, pois os dois não são uns refugiados sem familiares nem amigos em Portugal. 

- Está certo, eu, para não dar justificações da brevidade aos filhos, e porque a noiva, que eu saiba, não está à espera de criança, darei, ou pedirei, este lugar a um outro amigo da juventude académica. 

- Pois eu, se não te importas, gostaria de ter ao meu lado o irmão Óscar. - -- ((Tenho que mudar o decidido. Amanhã quero almoçar com os meus filhos em Lisboa e dar-lhes a novidade, mesmo que seja na última hora ))

- Vou chamar o Cristóvão para que colha os elementos necessários, faça fotocópia dos vossos documentos de identidade e veja em que data poderei vos fazer marido e mulher. Mais alguma coisa hoje? 

- Neste momento mais nada. Vou precisar da tua ajuda profissional mais adiante, mas, por enquanto limito-me ao presente.

- Por vezes dizes coisas que me dá vontade de te dar um valente pontapé nas canelas. Gostas de ser bruto, especialmente quando encontras colegas da ramboia. Não te esqueças que passaram mais de vinte anos, e todos já são pessoas respeitáveis. 

- Não entendes nada, menina e moça. Quando estamos entre antigos colegas, dos que fazíamos serenatas e nos embebedávamos em grupo, dá-nos um gozo especial fingir que voltamos ao passado. É a nossa forma de matar as saudades, de voltar a nos sentir jovens e irresponsáveis. É só um teatro inofensivo. Não ligues. É um hábito paralelo ao de nos tratarem por doutor.

- Antes do encontro com os dois colegas advogados de que te falei, quero entrar, contigo, no estabelecimento do meu amigo Moreira, que tem a melhor joalharia de Coimbra. Senhor Moreira, dê cá um abraço. Como vai do seu reumático? 

- Nem me fale nisso; hoje nem sequer está dos dias piores, mas quando entra a humidade pelo Mondego, o bazófias como vocês lhe chamam, mal posso dobrar os joelhos. Mas o que o traz por cá? 

- Uma dupla, como no totobola. Queremos alianças, à medida certa, para nos casar em breve, a data a gravar só a posso dar quando a conhecer no notário. E também preciso, embora um pouco atrasado, um anel de pedido para a noiva aqui presente. Mas não um anel de rapaz para rapariga, mais propriamente ao jeito de uma celebração de aniversário de boda, considerando que o tempo de mancebia conta. Os dois somos um pouco, bastante, anarquistas nestas coisas. Mas chegou o momento de sossegar e viver comprometidos a sério. 

- Esta lebre também está corrida. Como o que escolheste a teu gosto serve no dedo, sem ajustes, já o vais poder levar “calçado” a partir de agora. E dentro de pouco tempo já espetaremos os dedos para que vejam que trazemos aliança.

Para o programa de hoje falta me encontrar com o Vítor Meneses e o 3R, ou seja, o Raul Reis Rodrigues, para que me contem do que souberam daquele cadáver. Segundo me adiantaram há coisas a relatar, que sem serem uma novidade, raramente se noticiam ao público em geral. Avisaram-me de que não é provável que se expliquem muitos pormenores, pois cheira a esturro e nos corredores fala-se num grupo “festivo” de elementos da elite bem situada, que tudo farão para que o caso fique fechado a sete chaves.

Ficas livre durante coisa de uma hora. Poder fazer as tuas compras e, se não te incomodar, gostaria que procurasses numa boa livraria algum livro de “jardinagem rústica”; não de flores e canteiros, mas de arbustos apropriados para embelezar um espaço, ao jeito dos ingleses. Quando tiveres dado as tuas voltas creio que o melhor será entrares numa pastelaria com mesas e tomares um café, um chá ou um bagaço! 

- Estás cada vez pior. Isto de andares por Coimbra deixa-te transtornado!

- Esquece. Ou podes aguardar no hotel. Seja como for eu telefono para saber donde estás, e combinar donde jantaremos.Até já. Vá! da-me uma beijoca!

sexta-feira, 14 de julho de 2017

CRÓNICAS DO VALE - cap 15



Inicio da ida até Coimbra. Notariado. E um cheiro acerca do morto.

Isabel? Estou mesmo a chegar. Se estiveres com as tuas coisas à porta é só parar, carregar e partir para a aventura. Demorei-me mais do previsto, mas sabes da minha mania em querer tocar muitos instrumentos ao mesmo tempo. Já te estou a ver na porta de casa. Entra enquanto eu meto a bagagem na mala. Beijinhos sem dar nas vistas. E uma boa notícia: consegui a suite do Astória!. Tive que dizer ao recepcionista que logo falaríamos pessoalmente. Entendes? É a dica para uma compensação por ele ter dito, seria verdade ou mentira, que aquele quarto já estava “quase” comprometido com outro cliente -duvido que seja verdade, pois que estes indivíduos são melosos e trafulhas- o qual vinha de Lisboa, mas que queria passar primeiro por Fátima, e podia chegar tarde. Propus-lhe que o colocasse num quarto para as traseiras, para que assim se penitenciasse, ou será que o fulano imagina que só com uma ida ao santuário e colocar uma velinha está tudo certo?

Espera um instante, pois posso esquecer de dar recado lá para casa

- Dona Idalina? Está-me a ouvir bem? 
- Estou sim Senhor Doutor. 

- É que a quero avisar de que hoje, de facto, não jantamos no Vale, nem tampouco dormiremos em casa, pois surgiu um imprevisto no Porto e o mais certo é que tenha que fazer noite por lá. 

- Esteja descansado o Doutor, que não há problema nenhum. Nem sequer são horas de começar a preparar o jantar. Tenham uma boa viagem.

Vamos para o Porto? Que bom. Nas revistas que compro dizem, todas, todas sem excepção, que a Invicta está na moda, disputa com Lisboa o topo da procura. E há bastante tempo que não vamos até lá. 

- Aguenta o gado, Isabelinha! O que me ouviste dizer é quase tudo uma treta. Foi só para descansar a Dona Idalina, pois de outro modo já antes do sol posto ficaria “com fezes” como ela diz, esperando ver o carro chegar. Quanto ao Porto há muitos dias disponíveis (se entretanto não for preso pela PJ) Terás que te preparar para deixar o salão em regime de controle remoto, pois já tenho planos para gastar muita gasolina contigo. Mas, para que não fiques “desilodida” podes contar com o almoço na Bairrada.

Depois iremos direitos a Coimbra. Deixaremos a bagagem no hotel; amaremos numa sessão de mâtiné, sem medo de cortes de digestão, pois que os dois estamos habituados a tomar banho, por assim dizer, a qualquer hora e mesmo com o estômago carregado. A seguir e antes que o comércio abra, passaremos pelo notário a fim de combinar o nosso casório. Entretanto as lojas vão abrir e temos umas compras a fazer. Mais a seguir já tenho visita combinada, entre as quatro e as cinco, com dois antigos colegas que terminaram os seus cursos de direito e que, desde então tratam dos meus assuntos mais bicudos. Será um encontro sem testemunhas. Isso significa que ficarás por tua conta durante entre meia hora e hora e meia. Depende de estarem pouco atarefados ou com muita gana de querer matar saudades. Conto com que estejas com o ouvido atento à minha chamada. Voltaremos ao nosso baile mandado.

E, com tanta conversa, em verdade tu pouco disseste, mas sabes que trago os discursos muito compactos e depois os desbobino sem respirar. Mas, como ia dizendo, ou tentava dizer antes de me espalhar. Já chegamos à zona da Bairrada. Vamos para e um restaurante que conheço de longa data: o Ernesto dos Leitões, Costa no seu BI. Sem ser dos mais badalados pelas revistas, nas páginas de recomendações, eu o coloco no topo quanto a comida e espumoso da região. 

- Agora sou eu a falar, pouco mas atenta à jogada. Sabendo que tu não ligas muito às revistas que sou obrigada a ter nas salas de espera do meu estabelecimento de beleza, fiquei com a ideia de que estavas a meter-me comigo, imaginando que eu ligava aos conselhos que publicam. Não sou tão burra assim, e sei que estes avisos são pagos, que são publicidade mascarada, e que em muitas ocasiões a realidade não corresponde totalmente ao que apregoam. Mas, como tu não tens uma agência de publicidade, acredito na tua classificação.

Boa tarde Doutor. Acompanhe-me à mesa que tenho sempre reservada para os clientes mais especiais. Poderão apreciar não só o que vier da cozinha como o movimento da sala, sem serem importunados, podendo falar à vontade. Traz uma companhia muito simpática. 

- É, ou vai ser dentro de pouco, a minha esposa oficial, e sei que a vai tratar como merece. Como está o leitão neste momento? Preferimos aguardar a que esteja no ponto, entretendo a fome com umas lascas de presunto e um queijo artesanal. Nem era preciso que me dissesse isso; podia ter ficado ofendido se não reparasse no seu olhar, maroto, enquanto se me dirigia. Trago já o espumoso fresco ou prefere um aperitivo? 

- Optaremos pelos produtos da terra, pois que não há melhor aperitivo do que um BOM ESPUMOSO natural vindo de um produtor sabedor do ofício.

- O que me contas a respeito de visitares os teus antigos colegas? Será que tens as autoridades à perna? 

- Faz décadas, desde o tempo do meu avô, que as ditas autoridades nos seguem. Mas nunca chegamos a vias de processo. Tudo é questão de saber lidar com os responsáveis de topo; pedir-lhes conselho, mais ou menos disfarçadamente, e os gratificar de vez em quando. Claro que os que estão no terreno, e que molestam como moscas, também tem que ser bem tratados. Arranjam-se sempre ocasiões para entregar, "por baixo da mesa" uns envelopes com algum recheio. É um jogo que sempre existiu, desde o tempo dos fenícios. Poderia contar-te muitas histórias, mas o local nem a ocasião são propícios. Fica para outro dia, com a cabeça na almofada ou ao pé da lareira.

Mesmo assim, e já que perguntas. Sabendo que Coimbra, na zona centro do País, é um “antro de perdição” (como são todos, incluídas as aldeias, tudo na sua medida) e desconfiando da identidade do morto que me ofereceram, vou tentar saber mais alguma coisa, sem esperar pelas notíias do Correio, que nem sempre estão correctas. Mesmo antes de o feitor me dar a dica que te contei, aquele corpo fez-me torcer o nariz. Não pelo cheiro, pois coitado já nem sequer cheirava a cadáver, mas pela posição em que o encontraram e o pouco cuidado que mostraram no que cabe a esconder. Aquilo dava a ideia de ser uma execução e, ao mesmo tempo, um aviso à navegação

- Qual navegação, no meio dos matos? 

- Isabel, ainda mal bebericaste e já ficas com os miolos em férias? Esta frase é uma das frases que dizem mais do que se ouve ou lê. Imagino que queriam avisar, alertar, ameaçar, a pessoas que se lhes tornaram suspeitos, o que os desagradaram. Pode existir um grupo de gente que se rege por fora das normas que os outros entendem ser correctas e vigentes. Aqui não te posso dar mais pormenores. Tem paciência. Mais logo e se os meus amigos me derem as informações que lhes pedi, poderemos brincar aos detectives. 

- Como nos romances policiais, de que tanto gosto, e nas séries da TV? Formidável Zé!. Mal posso esperar.


- Vamos ao ataque do leitão, que o amigo Ernesto já traz a travessa com aquele grande sorrido que sempre me dedica e que, a partir de agora, também te mostrará.

quarta-feira, 12 de julho de 2017

CRÓNICAS DO VALE - capí 14



Isabel, eu ainda me demoro uns minutos, não muitos. Mas queria recordar, caso fosse necessário, que temos combinado partir em direcção a Coimbra, almoçar no caminho ou na cidade, e depois passear tranquilamente, se bem que eu tentarei encontrar alguns amigos meus, antigos colegas de estudos ou mais seriamente de farras, para ver se ganho avanço aos profissionais da PJ, sem ser uma corrida declarada. 

- Tudo bem, eu já estava a par destes teus projectos, sempre complicados, como é teu hábito. Mas suponho que telefonaste por outros motivos.

- Sempre estás com um olho no burro e outro na estrada. Ainda bem que não dormes na formatura; mas se não fosses assim já teríamos acabado muito tempo atrás. Retomando os planos. Tanto podemos ir até à minha casa para dormir como ficar a noite em Coimbra, num bom hotel, e antes de parir amanhã dar um salto ao Registo Civil. Ah! Que cabeça a minha! Desculpa. Baralhei a ordem das coisas. Uma vergonha! QUERES CASAR COMIGO? 

- Tu és um caso sério, para não te chamar de burro. O que esperavas para fazer um pedido formal? Com anel e tudo! Lá porque fazemos Ó Ó juntos desde uns anos a esta parte, devias dar mais atenção ao que uma dama valoriza. Se esta situação me acontecesse vinte anos atrás, com outro sujeito certamente pois nem te conhecia naquela época, eu o mandava às urtigas, ou mais adequadamente à merda. Sabes? Estavas e estás convencido de que eu estou presa pelo beicinho. NÃO ABUSES ZÉ MARAVILHAS! Toma e embrulha, desta feita levas com a alcunha, ou pensavas que não a conhecia?

- Tens razão. como sempre. Ponho-me de joelhos, -simbolicamente falando, pois que estou no carro desafiando a GNR com o telemóvel- não só para pedir a tua mão, pois a outra parte essencial do teu corpo já me foi dada com a devida, ou não devida, antecedência, mas também como sinal de arrependimento sincero. 

- Deixa-te de histórias, e conta o resto! 

- Queria avisar que seria bom preparar, além das roupas de senhora e artigos de beleza, que já deves ter arrumado no teu rodinhas, um saco com roupas informais, e sapatos rasos mas fechados, próprios para andar no campo, para percorrer a propriedade e fazer-te a entrega, simbólica e efectiva, da zona de jardim rústico que rodeia o casarão. 

- E será que estás convencido de que só tu é que sabes planificar? Tudo isto que propões já foi seleccionado e está num saco próprio, que viajara juntamente com o rodinhas, mas que não subirá ao quarto do hotel. E mais umas surpresas que aparecerão nos momentos adequados.

- Falando em hotel, eu gostaria de ficar no Astória, que não é novo mas foi restaurado. É aquele que está numa esquina bicuda junto ao Mondego e com um quarto estupendo neste bico, de donde se vê a ponte de Santa Clara e a Praça da portagem. Telefona para lá, já! E teima para que nos reservem este quarto. Não aceito outro! Tens que te habituar a que vou mandar. Isto de casar de papel passado tem as suas vantagens e obrigações. E desligo, que tenho outras coisas para tratar. Não demores, malandro!

- Estou feito! Ainda não fomos ao cartório e já a ovelha passou a fera. Mas terei que aplicar as técnicas próprias para que as coisas funcionem nos conformes.

Uma vistoria aos trabalhos

Senhor Ernesto, podemos dar uma volta aos resultados da empreitada? 

- Com certeza Doutor. 

- Já lhe disse, em várias ocasiões, que se em Coimbra eu fui, e continuo a ser, tratado por Doutor é mais por um costume da terra, que neste aspecto é tão aldeia como aqui o Vale, e não porque tenha direito legal a este tratamento. Recordo ter explicado que andei nas faculdades, em três, até que apesar de sempre ter passado o ano, decidi que aquilo não se ajustava ao que eu pretendia fazer no futuro. Também lhe contei que, em Portugal, há muitos doutores e engenheiros que não são tais. Uns nem sequer chegaram a licenciados. Mas a nossa sociedade gosta destes tratamentos, uns de os receber e outros de os oferecer.

Enquanto conversávamos fui vendo que, de facto, e como esperava de si, sendo o orientador, fizeram um bom trabalho. E as contas? Tenho que pagar o serviço, nem que isso implique hipotecar a propriedade. 

- O patrão não diga uma coisa dessas, que fico arrepiado. Verá que não irá para pobre, e o dono da máquina ficou satisfeito por o termos chamado, pois que conta poder apresentar o que fez como referência, se não se importar. 

- Tudo isso é agradável de ouvir. Mas, insisto, e as contas? 

- Amanhã terei tudo arrumado e pronto para si.

- Outro filme, amigo e feitor Ernesto Carrapato: Já lhe disse que penso casar? Depois de tantos anos de viuvez creio que não ofenderei ninguém, nem os filhos, crescidos e já voando soltos, poderão dizer que lhes ponho uma madrasta pela frente. 

- Se o patrão não leva a mal, entendo que esta sua decisão só peca por ter demorado demasiado. Uma esposa faz sempre falta numa casa e, se for a senhora que penso, tem fama de ser pessoa de respeito, trabalhadora e simpática. 

- Credo, como vocês exclamam. Nestas terras não se pode dar um traque sem que logo todo o pessoal saiba.

- E postos a saber. Por acaso alguma vez ouviu falar deste Carlos Valente que nos deixaram de prenda no fundo da propriedade? 
- Se for aquele que se falava desde que ele era moço, pois que é de uma terra perto do Vale, mais virada para Penacova do que destas bandas, dizia-se que tinha maneirinhas. Não sei se o patrão entende. E que nos carnavais da Mealhada sempre se mascarava de vedeta brasileira, pintalgado a preceito, com pestanas e mamas postiças, dançando o samba com muita habilidade e requebros. Ninguém diria que era um rapaz. Mas pode ser que não seja este Carlos. Aquele que conto tanto lhe chamavam de Carlitos como de Carlota. Mas, como disse, pode muito bem ser que o morto seja outro, pois daquele jamais ouvi nomear os apelidos de família. Sabe que sempre se disse que Marias há muitas, e Carlos deve haver menos mas bastantes.


Antes que esqueça. Quando terminarem de arrumar esta empreitada queria que, com o rapaz que o ajuda quando é preciso, darem uma olhadela, reparando estragos se os houver, na conduta que traz água da serra até o depósito das regas. Limpar este tanque e verificar se a bomba e os canos estão a funcionar como deve ser. É que, já que a nova esposa vai ocupar, pelo menos legalmente, o lugar da falecida, mas não esquecida, Dona Constança, que tinha a exclusividade na orientação, escolha, manutenção e disposição das verduras da zona ajardinada, sempre em estilo rústico, sem canteiros, vou dar esta incumbência à Dona Isabel. Será com esta senhora que terá que se orientar. A sua ajuda sempre será bem recebida. 

- Eu me encarregarei disso. Seria uma surpresa de viermos a saber que esta nova patroa percebe de plantas, sem ser aquela margarina dos anúncios.

terça-feira, 11 de julho de 2017

CRÓNICAS DO VALE - cap. 13



Já deram nome ao morto. Vamos casar.

Fui tomar o meu frugal mata-bicho ao café, como de costume, e ali mesmo folheei o jornal das notícias escabrosas, aproveitando que o dono da casa o coloca à disposição da excelentíssima clientela. Como esperava, logo na capa vinha a identificação do cadáver de Vale do Pito. Nunca esta aldeia terá sido tão referida como vai ser com este achado. Eu bem tentei colocar a terrinha no mapa com alguma acção no âmbito do erotismo escandaloso. Mas mataram a excelente ideia! Uma morte anunciada.

Escrevem no periódico, (que de facto é um jornal dado que aparece, sem falta, quotidianamente). Foi, como se previa, por meio dos dentes que se encontrou a identidade, pois que conseguir impressões dactilares naqueles restos, mais do que roídos, era muito difícil, ou mesmo impraticável. As técnicas mais sofisticadas de ADN e outras ainda mais modernas, dados os custos que implicam, reservam-se para casos mais bicudos. Usando uma linguagem habitual nestes comunicados, a identificação, que correu a cargo dos técnicos que se encontram nos quadros das faculdades de ciências medicas e técnicas avançadas de Coimbra, onde se misturam laboratórios clássicos, a cromatografia e os espectros de diferentes comprimentos de onda (esta saiu-me excessivamente pretensiosa) chegaram a encontrar correspondência, após intensa pesquisa (bateram às postas dos dentistas da praça, pensando que seria necessário ir até os do Porto, Aveiro, Viseu e outras zonas populosas. Tiveram sorte. No terceiro consultório estava a ficha daquela dentadura) Não havia a mais mínima possibilidade de engano, os restos mortais pertenciam, ou pertenceram, a um tal de Carlos Valente dos Santos. E nada mais de importância dizem. O resto são hipóteses, repetidas até enjoar, dos jornalistas “no terreno”. Já vimos que o que não sabem, inventam, descaradamente e sem receio de ser repreendidos pois são cientes de que da edição seguinte haverá mais lixo para entreter.

Antes de almoçar, depois de dar uma inspecção aos trabalhos no terreno, irei até a Vila e, acompanhado pela Isabel, avançaremos para Coimbra donde tenho a intenção de procurar alguns “rapazes da minha criação” com o propósito de tirar alguns nabos da púcara. É que este morto deixou-me um cheiro muito intenso, e não de cadaverina propriamente dita. Ainda não decidi onde almoçar. Dependerá das horas e da vontade de comer que se consiga resistir.

A Isabel sei que gosta de ir até à Bairrada, por causa do leitão, que é um petisco difícil de rejeitar, mas que traz com ele uma cativante gordura que depois se incorpora e custa a largar. Eu, prefiro ir até à baixa coimbrã e abancar num dos restaurantes ditos populares, mas escolhido por mim, pois que muitos já se abastardaram para turistas ignorantes. Aquele ambiente informal é largamente compensado chamando a todos de doutor, incluindo os caloiros não praxados. Faz bem ao meu ego aceitar um pouco de toleima sem valor.

- Então senhor Ernesto, como vai o serviço. Deve estar quase pronto, se não me engano. 
- Boa tarde Senhor Maragato. Pois é como diz. Mesmo com o transtorno que nos causou aquele morto, o trabalho correu bastante bem, A lembrança que o patrão teve de contratar uma máquina foi de uma grande ajuda. Vale bem o que custaram as horas que aqui trabalharam. E depois, espalhar aquelas aparas nas terras foi o melhor. Creio que até amanhã ao almoço teremos tudo terminado. Só faltará que o homem das lenhas apareça para carregar os troncos. Mas este trabalho será por nossa conta, já que o patrão nos ofereceu a lenha. Nós decidimos que parte das horas gastas com as árvores não lhe seriam apresentadas. Como por cá se diz uma mão lava a outra.

Assim chegamos ao momento em que tenho que abrir os cordões da bolsa. 
- Se, quando terminar o dia o amigo Garrapato tiver tempo e paciência para preparar um apontamento das horas de pessoal, e suas, pois que esta tarefa é um extra que não conta na mensalidade habitual, mais também o que devo ao dono da máquina, de manhã tratarei de levantar dinheiro no banco da vila e fechar este assunto da melhor maneira, Certamente com a satisfacção de todos, - O patrão não se apoquente, o pessoal confia em si, e se não receber amanhã será no dia seguinte. Esteja descansado.

- Bom dia, dona Idalina, bons olhos a vejam, que são os meus! Como vai? Suponho que com estes calores o reumatismo não a deve ter incomodado. 
- O doutor está muito enganado. As noites tem estado frescas e as madrugadas nem lhe digo, estas diferenças de temperatura e mais o nevoeiro que cai do Buçaco dão cabo de mim. Mas tenho que aguentar, que a vida nos traz sempre sacrifícios para poder alcançar a glória eterna ao lado de Jesus (esta mulher tem arrancadas do século XVIII. É assim que os poderosos gostam de ter o povo, e não digo mais para não ofender)

- Pois desta vez tenho novidades. Vou convidar a minha namorada a passar uns dias aqui, na casa de família. Creio que um luto de mais de quinze anos é suficiente, e um homem não é de ferro. Digo-lhe, que eu sei, nem todos os padres, frades e demais elementos da igreja são tão respeitadores e castos como eu tenho sido. 
- Doutor, não seja exagerado. Nem oito nem oitenta. Todos sabemos que tem uma “namorada” na Vila, e ninguém o critica por isso. E agora diga-me. Onde dormirão? Pois dou como certo que não ficarão em quartos separados, seria um despropósito sem jeito. Cá por mim, que conheci e estimei a Dona Constança -que Deus tenha na sua Glória- não entendo que a estas alturas, em que até as crianças sabem mais destas coisas do que eu, se justifique não usarem a alcova principal.

- Tudo depende de como encarar isso a noiva que trarei. Ela também tem as suas manias e preceitos, como pode imaginar sabendo o que a dona Idalina sabe a nosso respeito, e que até hoje nunca pisou esta casa. Pelo sim pelo não tenha este quarto e outro semelhante preparado. Não se preocupe pelo jantar de hoje; chegaremos servidos e amanhã começaremos a lhe dar trabalho a partir do pequeno almoço. Sugiro, se assim entender, que mande vir aquela moça da aldeia que a tem ajudado quando é necessário, especialmente nas limpezas e polimento de chão e peças de valor. Mais uma coisa. Conforme correrem as contas com o pessoal, gostaria de oferecer uma adiafa de agradecimento. Nem sei quantos serão para almoçar, mas pode contar, além de os dois da casa -pois o mais provável é que casemos em breve- trago na cabeça de convidar o presidente da junta e mais dois ou três elementos da equipa dele. Caso esta ideia, maluca, seguir em frente já combinaremos o dia e a ementa, mas a dona Idalina sabe perfeitamente do que este pessoal gosta para encher o papo.


domingo, 9 de julho de 2017

CRÓNICAS DO VALE Cap. 12



Quem seria a pessoa que habitou naquele corpo morto ?

Já passaram practicamente dois dias após a descoberta do corpo abandonado nos limites do meu terreno. Da minha parte só agi em função das circunstância actuais, que sem ser com espaventos limitavam os meus movimentos Era uma decisão inevitável avisar aos que estavam decididos a vir até Vale do Pito, assim como aos que por mim foram ou como é o caso dos meus filhos, dizendo que tudo ficava em suspenso, pelo menos até que as investigações em curso me notificarem que posso continuar, sem reservas, com os meus projectos. De imediato ao alarme, e antes de que me viessem com “ordens superiores” enviei o meu feitor Ernesto Garapato, com a sua equipa, para o lado oposto do local que os levou aos restos mortais.

Dos noticiários televisivos, que, tal como o jornal que dizem ser o que detêm a maior tiragem neste País, e que partilha, inclusive com um canal próprio, a distribuição de fofoquices, pouco ou nada pude saber que sirva para avançar nesta situação, insólita por aqui. Pelo que se subentende os organismos policiais e de investigação ainda não colocaram muita coisa em cima da mesa para que os necrófagos se alimentem. Mas tal não tardará, se procederem como lhes é habitual, a dar uma dicas por baixo da mesa e com isso incitar aos possíveis conhecedores de factos relevantes a que mostrem o seu desejo de ser ouvidos e conhecidos. É um esquema velho, embora obrigue a um trabalho exaustivo para poder separar aquilo que pode ser relevante das simples conjeturas de mentes fervilhantes.

Fartei-me de rir, a sós e sem enviar gargalhadas para o ar, ao recordar o ar maroto e, simultaneamente de desprezo, com que o chefe do grupo de investigadores se despediu de mim. Sem me dizer na cara que eu pensava ser mais astuto e conhecedor do que eles, e ter mostrado a intenção de explicar a missa ao vigário. Levei-os ao canto que queria. A partir daquele momento era provável que me deixassem tranquilo. Por enquanto ainda andam por aí, tirando mais fotografias e esperando o momento de chegar à conclusão de que naquele lugar não há mais nada que pescar, E só então tirarão as fitas, tão bonitas, que nos colocam numa ribalta de popularidade.

Os polícias da judiciária, que se converteram em donos exclusivos deste assunto, andaram pelas casas da aldeia, principalmente nos cafés e outros estabelecimentos comerciais, fazendo as perguntas óbvias, mas sem jamais se descaírem a responder caso se atrevessem a perguntar. Até agora deixaram sair, sempre através dos meios de comunicação social, que se tratava de um homem, com idade entre os 25 e 35 anos, e que pelos sinais encontrados nos despojos admite-se que foi alvo de crime violento.

A Isabel tem estado muito nervosa com esta novidade, e insiste em que chegou o momento de nos assumir como namorados. Não fala em casar, e menos de véu e grinalda pois ela é respeitadora do simbolismo que sempre esteve anexo a uma noiva vestida de branco. 
- E com estes temas de índole pessoal já esquecia de te contar que, tal vez uma hora antes de chegares, apareceram dois sujeitos que se identificaram como sendo da judiciária -andam sempre aos pares como os Hélder?- e, sem serem demasiado inconvenientes, fizeram algumas perguntas, a teu respeito, das que sabiam as respostas. Só te digo que sabem mais das nossas vidas do que imaginamos. 
- Não te apoquentes. A polícia é assim, e só te digo que para evitar que metam demasiado o nariz temos que ser mais vividos e manhosos do que eles. A receita eficaz é dar “milho aos pombos”, ou seja, muitas banalidades com aspecto de serem coisas importantes mas que, no fundo, como dizemos na contabilidade, é deixar alguma palha para se entreterem, e com isso atafulhar o processo individual. Ficam satisfeitos e até pode ser que soltem sonoros arrotos.
- Não consegues tratar esta língua? Deves estar convencido de que ainda es un estudante estroina lá nas Coimbras, que tantas saudades te deixaram.

De positivo a Isabel propôs, com ar de não ser discutível, que desta feita me acompanharia à casa de Vale do Pito, e ficarmos ali durante uns dias, pelo menos ao longo desta semana. Sem me deixar respirar acrescentou que já tinha distribuído as marcações das clientes, e recordar as tarefas a cumprir entre as suas funcionárias, deixando a Ivone -que conheço-, como encarregada geral, com autorização de telefonar sempre que entender que carece da sua opinião para decidir. E terminou afirmando que já tinha o seu rodinhas preparado. Aquele com que me acompanhou a Lançarote, nas Canárias, na fase em que estava encaprichada em ver os locais por donde andou o célebre e mal encarado Saramago, de alcunha ou pseudónimo por ele escolhido.

Nestes dias de descanso eu já fui preparando, sem a escrever, a minha linha de investigação pessoal. Tenho um palpite de que será, ou seria, o morto que me ofereceram sem passar cartão na entrega. Quero esperar a que os serviços técnicos da PJ nos anunciem que, graças aos seus especialistas, já identificaram, pela ficha dental, de quem se trata. Ou seja, aqueles restos já não serão de um desconhecido. Falta descobrirem o resto. Eu, atando algumas pontas soltas, creio que sei de quem se trata, pelo menos de nome, pois que não reordo de o ter visto e menos de ter falado com ele. Mas posso estar enganadao e ter o tal, cujo nome ianda não transpirou, no meu arquivo morto, à espera de uma faisca que o traga aos meus olhos interiores, numa visão.

É quase certo que terei que dar uma saltada a Coimbra e conversar com antigos colegas e companheiros de viagem no intuito de me confirmarem, ou não, aquilo que eu magiquei. Entretanto não me escapo de aceitar a companhia, imposta, de Isabel até a mansão que não conhece. Vai ser uma surpresa, fingida por quase todos, pois que o desporto geral de especular na vida de cada um já deve ter colocado, na fila de espera, o facto inevitável de que eu apareça com a estrela dos salões de beleza.

sexta-feira, 7 de julho de 2017

CRÓNICAS DO VALE - cap 11

EDIÇÃO ESPECIAL

Os derradeiros acontecimentos, ou mais propriamente sucessos de que sofreremos as consequências, deram uma machadada, que até pode ser de carácter final, aos projectos de conseguir organizar algum festival na freguesia de Vale do Pito. Sinto uma pressão interior para mudar o título desta espécie de crónicas para qualquer coisa como CRÓNICAS DO VALE.

Pode ser que esta ideia não seja a mais positiva, mas tampouco me satisfaz o insistir num festival morto antes de nascer, abortado se preferirem. Seja qual for a forma de encarar a situação é pertinente recordar, assimilar, que tudo não passava de uma brincadeira, que ajudou a oferecer, gratuitamente, uns bocados com boa disposição ligados a pensamentos e visões eróticas. A minha experiência me avisa de que é possível que alguns dos presentes saísse com tanto entusiasmo que, sem tardança, procurassem concretizar ao vivo e a cores as cenas que visualizaram mentalmente. Terão sido semelhantes às que conduziram às visões do trio da Serra dos Candeeiros.

Não esqueço aqueles cidadãos desta freguesia, e não só, que por se considerarem pessoas sérias, respeitáveis e respeitadoras da moral e bons costumes, rejeitaram tudo de imediato, em bloco. Além de terem acesso directo ao Reino dos Seus (deles) pode ser que após as próximas eleições, que é provável que ganhem os de costume, lhes ofereçam algum lugar onde receber remuneração sem suar.

Enquanto meditava e escrevia fui observando as movimentações das autoridades. Estão lá todos. É um fartote. E todos, a julgar pela gesticulação e movimentos labiais, consideram-se capazes de dar opiniões a ser tomadas em linha de conta. Só os da Judiciária e mais os da equipa de criminologistas, que se juntaram aí pela hora que antecede, é que não passaram cartão a todos os sabedores. Mas não julguem que estes se sentem diminuídos. São impermeáveis.

Cá vem os judiciários! 
- Boa tarde, Senhor Maragato, já nos apresentamos e, como sei que sabe, sendo o proprietário do local donde depositaram o cadáver aufere da primazia na tentativa de esclarecer esta morte. O que nos pode dizer, falando como nos romances, em sua defesa?. Mas acompanhando a pergunta com um sorriso amigável (nunca fiando!).

- Para os apontamentos que, sem dúvida, têm que fazer, digo que depois do susto que devem ter sentido aqueles homens que encontraram os despojos humanos, fui eu quem mais se surpreendeu. Não recordo ter ido, jamais, para aquele canto da propriedade. E, no meu entender, nunca teria enviado para ali uma equipa de desmatadores se soubesse da possibilidade de encontrarem esta surpresa. Tive outras razões, ou motivações, que me induziram a contratar esta brigada de operários. Os fogos que, anualmente, nos devoram as florestas e terras de cultura, além de causarem mortes que não deviam acontecer, fez despertar em mim os sentimentos cívicos e, principalmente, a necessidade de proteger o património familiar.


- Não tem uma ideia, mesmo que leve, de quem poderia ser o cidadão que vivia naquele corpo? 
- Até agora desconheço os detalhes ou características que os senhores já conseguiram observar. È possível que ao longo das horas os venha a conhecer pelos noticiários, sempre ávidos de casos com potencial de morbidez e mistério.  -Só querem vender papel e minutos de audiência, enquanto nos dificultam a vida zumbindo como moscas brejeiras à nossa volta, sentenciou o que devia ser de graduação mais alta entre os polícias e inspectores.

 -Voltando ao meu discurso afirmo que, por enquanto, nem sequer sei se se trata de um homem ou de uma mulher, e que possível idade teria enquanto vivo, ou quanto tempo terá decorrido entre a sua morte e o terem encontrado os restos. Nem tenho a ideia de ter sido uma morte natural ou provocada por outrem. Digamos, se houve crime. Vou poupar-lhes a pergunta seguinte: apesar de viver nesta aldeia, e conhecer uma boa percentagem dos seus habitantes, não creio que este corpo pertença a algum dos cidadãos aqui residentes. Não me consta que se fale nalgum desaparecimento súbito. Os que saíram, em migração para o estrangeiro ou para procurar melhor vida nas cidades, habitualmente comunicam periodicamente com os familiares que cá ficaram. Mas de isto tudo, e mais, já vos terá informado o Presidente da Junta de Freguesia, que embora sendo uma pessoa reservada, como pertence a quem ocupa este pelouro, tem mantido alguns diálogos comigo e nunca referiu nada que se pudesse ligar com este sucesso.


- Quanto a mim, este crime, se o for, e penso existirem fortes indícios de o ser, pois de outro modo não teriam -caso os envolvidos fosse mais do que um- atirado este desgraçado para uma cova, como quem de desfaz de um eletrodoméstico fora de uso. E este vício de tornar os terrenos alheios em lixeiras é, como sabem, um hábito muito geral. 
- Eu pesquisaria na Vila, na Sede de Concelho e nas terras com um número de habitantes suficiente para ter probabilidades não só de velhacarias como de que algum cidadão tenha observado alguma coisa a que não prestou importância mas que, se inquirido com saber profissional, pode vir à superfície. Eu ficarei de olhos e ouvidos atentos e com vontade de poder ajudar para esclarecer esta situação.

- Senhor Maragato, agradecemos a sua colaboração espontânea. Foi um prazer o ouvir, e pergunto, com curiosidade profissional. Alguma vez pertenceu a um corpo de investigação? Teremos que ver a sua ficha com atenção. Mas digo isso com respeito, e, mais uma vez, agradeço a sua colaboração.



No capítulo seguinte tentaremos saber mais pormenores

CRÓNICAS DO VALE cap 10



Temos máquina. E alguma correspondência.

E UMA NOTÍCIA ALARMANTE !!

Bom dia patrão Maragato. Temos novidades, e espero que boas, acerca da máquina trituradora. Ontem indicaram-me um sujeito deste concelho que tem um equipamento destes e que o aluga a quem necessitar. Falei com ele e não quis ajustar preço antes de fazer uma demonstração na sua propriedade. Mais disse que a sua máquina come tanto e tão depressa que é difícil ter material preparado para ela. O costume é fazer o trabalho possível e partir para outro cliente. Volta quando o avisarmos, e assim anda de um lado para outro. Não cobra as deslocações; mas deve incluir no preço da hora trabalhada, se não ia à falência. Dada a urgência disse-lhe que, caso fosse possível convinha que viesse esta tarde.

Entretanto avançaremos no trabalho de desmatagem e corte das árvores mais perigosas. Já me esquecia. Disse-me que habitualmente os seus clientes depois de feito o trabalho de trituração, espalham aquilo pelo terreno a fim de adubar e evitar que as terras não seqem tanto ao sol de verão. Com as chuvas integram-se na terra e é muito favorável. Creio que é tudo.

Excelente senhor Ernesto. Eu não conseguiria fazer melhor. Aguardaremos para ver como se comporta esta máquina tão voraz. Enquanto continuem no trabalho em curso. Eu vou tratar de alguma correspondência.

Ainda bem que o “primo” Leonardo teve a ocorrência de me dar o seu endereço de correio electrónico, pois que as coisas se complicaram no sentido de ter o local apresentável, mas por outro lado parece que estamos num bom caminho. E antes deste encontro tenho que falar, desta vez a sério, com a Luísa e o Bruno, nossos filhos.

Primo Leonardo. Desde ontem a situação na residência de Vale do Pito alterou-se. A brigada de trabalhadores, que para os meus adentros chamo de Brigada Victor Jara, compareceu em força e já estão com as mãos na massa na desmatagem rasteira e no corte das árvores que cresceram demasiado perto do caminho de entrada para a propriedade, e à volta da casa. Não imaginam a barulheira e poeirada que existe neste sitio. E ainda não é nada do que se espera, pois deve estar a chegar uma máquina trituradora, montada sobre uma camioneta, que vai transformar matos e ramagens em pequenas aparas biodegradáveis, que servirão para adubar as terras e refrear a erosão que as chuvas causam quando o terreno está nu.

Por isso tenho que vos pedir uns dias de espera até ser mais conveniente e o ambiente mais sossegado para vos poder receber condignamente. Todo o processo de venda da propriedade ficará congelado, para todos os pretendentes, e antes de tomar qualquer decisão vos ouvirei atentamente e com agrado. Evidentemente a família tem prioridade.

Um abraço do Primo José Maragato

E agora para vós, filhos:

Queridos Luísa e Bruno.

Desde muitos anos atrás que ambos vos manifestastes pouco, ou nada, interessados em vir a receber este casarão. Entendo, sem problemas, que a vossa vida foi orientada noutros hábitos e necessidades. E se tivésseis a noção do que custa manter esta casa e seu terreno envolvente, o mais provável é que gritásseis, bem alto, livre-se deste ogre devorador! E não conheceis da missa a metade.

Entre as despesas caseiras, de manutenção, de um mínimo de pessoal, que fica resumido a uma senhora, já com meio século às costas, que se encarrega da cozinha, mesmo que a maior parte das refeições as faça fora, de tratar das minhas roupas e de uma limpeza sumária nas divisões que habitualmente ocupo, que são menos da décima parte do total. Está disposto que duas vezes por ano, a fim de que tudo não apodreça, tenha a ajuda de duas raparigas para dar uma volta geral. Tenho, a nosso encargo, um caseiro a tempo inteiro. Todos eles descontando, eu, para a segurança social.

Juntem a isso o IMI, o IRS, os seguros de acidentes do pessoal, de incêndios e catástrofes, a electricidade e as botijas de gás, mais os materiais consumíveis do dia-a-dia e as reparações que o caseiro não pode resolver, e despesas imprevistas que sempre surgem, e então os vossos olhos se abririam de pasmo. Por isso fiz uma sondagem de mercado para ver se esta propriedade teria aceitação no mercado dito imobiliário. E apareceram interessados, entre eles um grupo de primos da vossa falecida mãe, que pretendem criar uma espécie de sociedade par comprar isto. (Nem imaginam no vespeiro em que se meteriam) Querem visitar a casa e a propriedade, possivelmente dentro de 8 a 15 dias. Junto cópia da carta que lhes enviei hoje mesmo. Até agora foram só conversas telefónicas.

Preciso de saber a vossa opinião para poder avançar ou recuar. E até gostaria que no dia da “visita de estudo” da família Sousa, pudesse vos ter ao meu lado. Não me sentiria como esbanjador dos bens familiares. E seria uma oportunidade de reverem os dias da vossa infância.

Beijos do pai

A missiva segue para os vossos, dois, endereços de correio electrónico.


NOTÍCIA DE ÚLTIMA HORA

As duas horas que antecedem este anexo tem sido, inesperadamente, insólitas, alarmantes e exaustivas. Neste momento só posso dizer que nos trabalhos de desmatagem, e já nos limites do nosso terreno, encontraram um corpo, practicamente desprovisto de roupas, abandonado numa pequena cova e dando mostras de ter sido pasto de animais necrófagos, desde corvos a cães abandonados e raposas. A GNR estabeleceu um perímetro de segurança e aguardam os peritos forenses e agentes da Judiciária.





quinta-feira, 6 de julho de 2017

CRÓNICAS DO VALE - cap 9



Sobre a prevenção dos fogos, e outros temas.

Senhor Garrapato, tive assuntos que me prenderam e não o pude acompanhar devidamente, como era minha intenção. Creio que deixei bem claro que o comando desta brigada está entregue a si, mas que eu tenho o direito e a obrigação de actuar como o comandante na retaguarda. Numa retaguarda nada longe, mesmo perto de si, e assim poder dar apoio quando for necessário. Dito de outra forma, temos que “lutar” costas com costas.

Quando lhe encomendei este trabalho cometi um erro sem perdão. Fiz uma avaliação em cima do joelho, mais impulsiva e afectada pelos recentes incêndios do que coerente com a realidade. Recorda que lhe disse para juntar e transferir as ramagens e limpezas do mato rasteiro para outro local, que não pude definir por desconhecer cabalmente a orografia desta serra. Agora vejo como, passadas poucas horas de extenuante trabalho, o volume de material a eliminar é assustador. Temos que orientar isto de outra forma.

O Garrapato já ouviu falar, ou viu, máquinas florestais, móveis, montadas sobre camionetes ou reboques, capazes de reduzir a pequenas lascas, e em poucas horas, montes de material semelhante ao que temos, e mais teremos? E, por acaso, conhece de alguém que tenha uma equipamento destes e o alugue, incluindo o maquinista?
Temos que encontrar esta ajuda mecânica. Pergunte aos seus conhecidos sobre esta possibilidade e, caso lhe indiquem quem, vamos entrar em contacto para saber quando poderá comparecer e quanto nos custaria o aluguer, tal vez por uns dias ou mesmo uma semana. Eu tratarei de procurar no computador, pois o que antes funcionava com as páginas amarelas agora é mais rápido e eficaz por via electrónica. Mesmo assim não dispenso de uma referência pessoal.

Não lhe perguntei quantos homens estão trabalhando. Podia ter olhado e contado. Nem as horas que já se fizeram. Pareceu-me que tinha duas equipas separadas, uma tratando da limpeza rasteira e outra no corte de árvores, lenheiros por assim dizer. Muito bem. O que decidiu corresponde ao valor que, desde anos, lhe fui atribuindo. Estamos na tarde de terça feira. Estou aguardando visitas e gostaria de ter bastante trabalho feito para poder mostrar como nos preocupamos e agimos. Amanhã, sem falta, nos voltaremos a reunir para decidir a quem e por quanto tempo e dinheiro vamos alugar a trituradora que necessitamos. Eu devia ter pensado e decido isto antes de lhe encomendar o trabalho, e o estar com a cabeça noutros assuntos não me livra de culpas.

Desculpe, tenho que atender um telefonema. Volte ao seu serviço se faz favor. Estou! Quem fala? Ah, é o primo Leonardo com quem falei ontem, dos Sousas de Santo Tirso, se não estou enganado. Eu mesmo, em verdade era primo, em não sei se segundo ou terceiro grau, da sua lamentavelmente falecida esposa Constança. Recordo, um pouco vagamente, de ter estado na vossa casa de Vale do Pito -mas que nome bizarro!- numa reunião de familiares organizada pelo seu sogro Comendador Serafim de Sousa. Tenho em casa algumas fotografias, de caixote, tomadas naquele dia. Se não foi no dia do vosso casamento não seria muito longe. Eu era um gaiato que ainda não tinha dez anos.

Pois, mais ou menos já me tinha dado alguns elementos desta sua ligação familiar. Assim como me disse que souberam que coloquei a propriedade no mercado, por razões pessoais fáceis de explicar e de entender. Se ouvi bem, quando me ligou antes, ao comentar esta novidade junto de um grupo de familiares, numeroso pelo que disse, imaginaram a possibilidade de montar uma espécie de propriedade em comandita e adquirir esta residência. Não sei bem como se montaria esta “sociedade familiar” mas havendo, como é provável, advogados entre vós seria só questão de escolher a melhor das opções legais possíveis.

É practicamente isto. O primo, apesar das dificuldades de ligação telefónica que nos vitimaram aquele dia, entendeu mais do que esperava. Também lhe falei no interesse, se fosse possível, de visitarmos a propriedade, tantos quantos estiverem disponíveis, para este fim de semana. Estamos na terça feira, e antes de sexta ou na manhã de sexta, confirmaria e lhe pediria ajuda para encontrar um local para almoçar, que conheça e recomende. Pode ser?


Em princípio podem contar com isso. Eu estou só e ando só, com os filhos em Lisboa ou nalgum país “erótico” como eu gosto de trocadilhar com exótico. Peço, sim, que não espere pela sexta para dar notícias. Vá dando novidades no intervalo, e assim eu montarei o esquema com mais acerto.

quarta-feira, 5 de julho de 2017

CRÓNICAS DO VALE cap. 8


VAI VENDER A MANSÃO?

Que me diz deste tinto? Uma excelente pomada, usando um termo do tempo do meu pai. E o presunto? A cura deste produtor, ou dos produtores espanhóis de primeira linha, é excelente. Observei como sabe fatiar em doses muito estreitas e finas, com aquela faca longa e delgada. Será que este corte ajuda quanto ao paladar? Dizem que sim, que ao ser em pequenas doses e muito finas, quase transparentes, a carne oxigena-se e liberta o seu aroma. Mas não lhe garanto que isso seja de facto assim. Só sei dizer que esta peça é muito apaladada e que com a ajuda do vinho nos tornamos sibaritas(1) sem ser conscientes de tal. De facto nem as avelãs torradas, de que sou louco apaixonado, conseguem neutralizar a qualidade tanto do vinho como do presunto.

E agora, Senhor Presidente, quer dar uma volta à casa? Hoje não posso aceitar. Tenho uma marcação com o Secretário da Câmara e não quero que fique à minha espera. Deve vir com o mandado de verificar que, nesta freguesia, se estão portando nos tais conformes, depois da barracada em que se estavam a meter. Sem que entendessem que aquilo era só fogo de aparas. Dito de outra forma. Que perderam as veleidades de infringir as regras dos bons costumes. É bem possível que venha para isso, mesmo que de entrada saque de um papel qualquer, já conhecido e sem importância, para disfarçar. Estes emproados de casaco e gravata estão, sempre, convencidos de que os das aldeias e lugares são uma espécie diferente, ao nível dos pretos das sanzalas. Uma cambada de estúpidos que não merecem ser respeitados. É como diz, tanto assim que de se mirarem ao espelho lhes acontece como ao deus grego Narciso, que olhando-se refletido na água de um lago se enamorou de si mesmo.

Não lhe gabo a sorte. Estes cargos políticos, e quanto mais dependentes de chefias pior, devem ser difíceis de aturar para quem sinta que já se devia ter terminado com hábitos do tempo do Salazar, e não digo da outra senhora porque não aceito estes eufemismos. A constituição da República diz, preto no branco, num artigo qualquer sem importância uma vez que nunca é cumprido, que é a-confessional, ou seja, que não deve dar tratamentos de favor nem aceitar imposições por nenhuma igreja. É o que se vê. Por estas e outras razões, as minhas convicções, se bem que com uma amplitude notável, não aceitam que misture a vida pessoal com o poder. Fui sondado por diversas vezes, e por indivíduos cujo comportamento é bem pior do que o meu, mas eu prefiro ser independente e, a ser possível, os ter a comer na minha mão. MANIAS.

Já na porta da rua não quero partir sem lhe perguntar se já decidiu vender a propriedade e a quem. É que, cedo ou tarde, esta decisão irá parar à minha mesa. Mas preferiria vir a saber directamente de si, Senhor Maragato. Eu o informarei logo que decida. Fiz correr a voz pelos meios mais reservados; nada de jornais, nem sequer do orgulhoso conservador Expresso, e os interessados apareceram quase que imediatamente. De algum já lhe falei, e não escondi que não me cheirou bem. Embora saiba que nesta coisa dos negócios uma vez que a propriedade deixe de me pertencer, não tenho nada que ver com o futuro que lhe destinem. Mesmo assim, e por respeito à minha esposa e aos meus sogros, todos eles já falecidos, não me satisfaz a ideia de converter a sua mansão numa casa de jogo e prostituição.

Ainda anteontem procurou-me um primo afastado da minha falecida esposa dizendo que em criança tinha estado um ou dois fins-de semana nesta casa, e que lhe ficara uma agradável memória, mesmo que vaga. Que, conjuntamente com outros familiares, pensaram na hipótese de adquirirem a propriedade. Assim lhes apresente um preço razoável. Já sabe como tentam apanhar o vendedor desprevenido com argumentos sentimentaloides. Se me pagarem o que eu quero, e apresentarei um preço alto, incluindo o que gastarei na prevenção de incêndios, para depois descer até onde desejar aceitarei vender ao tal, imaginado, sindicato familiar.

Ficou em virem em dois ou três carros, num jeito de excursão, para ver se, de facto, se interessam. Daí que não se admirem se virem um correpio de gente desconhecida. Aqui, entre nós que ninguém nos ouve (mas que depressa fará correr a novidade, quadrilheiro como é) suspeito que, no dia da escritura, apareça o fulano do casino e entrem, eles e ele, num acordo. Mas se assim for não terei problemas de consciência.

Bem, tenho que voltar para a Junta, mas antes quero deixar testemunho de que gosto imenso de poder falar consigo. Que vou sentir a sua falta, pois é a única pessoa com quem posso trocar impressões e pedir opiniões sem compromisso. Uma pena só termos iniciado esta amizade quase nas despedidas. Até a próxima, Amigo Maragato.

E agora tenho que dar uma olhadela, como patrão, ao trabalho destes desmatadores. Senhor Garrapato! Como está, e como vai o trabalho?


(1) habitantes da antiga Sibar. Fig. Pessoa dada ao luxo e aos prazeres.


Próximo capítulo; Sobre a prevenção dos fogos.

terça-feira, 4 de julho de 2017

. CRÓNICAS DO VALE cap. 7

(este capítulo foi revisto e corrigido)

José Maragato vai vender a sua casa e abandonar o Vale do Pito

Quem bate à janela? Será chuva, será vento, neve não é certamente. Já vou! Senhor Presidente, que grata surpresa. Creio que é a primeira vez que se chegou a este canto e bateu à porta. Seja bem vindo, faça o favor de se sentar e proponho que bebamos um copo de reserva para celebrar esta ocasião especial. A que devo esta sua visita, caso existe algum motivo, pois que de cortesia seria uma dupla surpresa?

Nada de especial, Amigo Maragato, só que ontem deixou-me com o bebé nos braços, com todos os presentes aguardando que lhes desse novidades. E não tenho as suas capacidades para cativar os ouvintes. Não se lamente, Senhor Presidente, cada um amanha-se conforme pode e sabe. Se os seus amigos de partido, aqueles que o colocaram na cabeça de lista, não lhe proporcionaram um cursozinho de oratória e dialéctica deve ter sido porque consideraram que, para lidar com os seus fregueses, não era necessário gastar muita pólvora.

Não seja mau, Amigo Maragato. Sabe que a malta aguardava outro projecto, que aliás tinha anunciado com algum avanço. 

Mas eu dei-lhe todas as linhas gerais do programa de gastronomia à base de frangos criados à antiga. E até lhe deixei umas frases de publicidade. A partir dali eram vocês que deviam manobrar o barco, e até juntar algumas iguarias já pouco habituais mas que as pessoas mais velhas ainda recordam com saudade. E antes de que me tente convencer é bom que pense que eu dou espectáculo quando me apetece, e como não recebo pagamento tenho total liberdade para desaparecer do palco. Os valerianos ou pitéus, pois não sei como devem ser identificados estes vizinhos, são adultos, capazes de dar uma sacholada na cabeça de um vizinho quando as coisas se torcem, e daí que seja absurdo que esperem sempre ser guiados à semelhança das crianças do jardim-escola quando as levam a passear.

Sabe perfeitamente que sem a sua orientação não haverá semana gastronómica, nem qualquer outra actividade que altere a vida de pasmaceira desta gente. O máximo em que se metem, com entusiasmo, é as festas do santo padroeiro e os bailes com quermesse e febras grelhadas a céu aberto, dantes regadas com tinto carrascão, mas onde agora primam as cervejas, vinho engarrafado e muitos refrigerantes carregados de açúcar, por mais que se avise à população em geral dos perigos, comprovados, dos excessos de sal e açúcar. Mas eu vinha por outro motivo.

É sabido que nesta pequena aldeia, e sucede  a mesma coisa nas outras, incluindo vilas e pequenas cidades, nada acontece que não seja visto e comentado por todos, ou quase todos. Sendo assim não deve ser surpresa para si que comentem ter tido, ultimamente, visitas que não pernoitam nem lhes são servidas refeições (até os peidos são notícia!) e que chegam, seguindo o seu carro, em viaturas de topo de gama, o que não é habitual se ver entre nós. Direi que dá ideia ser de índole profissional. O pessoal está muito curioso. E a mim deixa-me com a mosca atrás da orelha. Alguma coisa traz em seus planos o Amigo Maragato. E se não for um abuso da minha parte, ou um segredo de estado, apoiando-me na confiança, e até alguma colaboração, que me tem dado nestas semanas mais recentes, gostaria de saber por si, directamente, em vez de aguardar pelas vias informais.

Afinal quando está encarreirado num assunto mostra ter oratória q.b. Pois bem, vou satisfazer a sua curiosidade, não totalmente mas o suficiente para o tranquilizar -por assim dizer- pois que referir ser simples curiosidade pode interpretar-se como agressivo, e longe de mim tal pretensão. Como sabe herdei a casa onde resido neste Vale, com a morte prematura da minha amada mulher. Os filhos cedo foram enviados para crescer e estudar em casa de familiares na capital, pois aqui teriam um horizonte mais limitado do que aquele que desejava lhes poder oferecer. Quando vinham de férias, só se agradavam caso viessem acompanhados de uma numerosa tribo de citadinos, que se comportavam mais como selvagens do que como gente educada. É sempre assim. Entretanto os filhos cresceram, como é normal, e deixaram de se interessar com esta aldeia e com a casa. Preferiram viajar à boleia, no interrail e agora em aviões a preço de saldo. Ver lugares e pessoas mais exóticas, a ser possível, do que os habitantes do Portugal profundo. Que faço eu nesta casa?


Por outro lado, e imaginando que todos sabem, tenho um escritório, quase sempre fechado na Vila, e também mantenho, desde uns anos a esta parte, uma amizade, que inclui o carnal, com uma senhora respeitável. Agora vamos fazer um pequeno intervalo, sem publicidade, para poder reabastecer os copos e eu tratar de encontrar alguma coisa para picar. Pode ser umas lascas de jamón serrano, autêntico? É de etiqueta negra. Juntarei umas avelãs torradas, também do lado de lá, daquelas que largam a casca e que por aqui não sabem como as preparar. O ter uns mililitros de sangue espanhol ajuda-me na pesquisa de petiscos, e como é corrente na vox populi as fronteiras nunca me incomodaram, antes pelo contrário. É um hábito familiar.



SEGUE NUM PRÓXIMO CAPÍTULO oitavo

VAI VENDER A MANSÃO?