segunda-feira, 30 de abril de 2018

CRÓNICAS DO VALE - cap 44




Carlos Costa é o meu representante e fac-totum na Figueira da Foz. Nele depositei a minha confiança. Mas como o prevenir não ocupa lugar é seguido de perto por um segundão, que tem ordens severas de se manter pouco ou nada visível. O Costa estava a postos, num pequeno escritório nas docas. Fez um relato sucinto das suas actividades e da anotação das verbas a que eu estava credor. Tudo credível em função das outras notícias que recebi por vias diversas. A sua actuação nas últimas três semanas foi aparentemente livre, embora tenha sempre uma agenda concreta para seguir e mantivemos contactosn periódicos via telemóvel (sempre o mais rápidos que nos é factível) Confirmou que as mercadorias  ali desembarcadas não tiveram problemas com a alfândega; que vinham com documentos tão correctos como era exigido a qualquer consignatário da praça. E que, após pouco tempo de repouso no armazém seguiram o caminho pré determinado, desta vez via terrestre. A maior parte seguiu do cais para o destino sem passar pelo armazém. Tudo encaixava com as outras informações.

Ainda na Figueira visitei a Filomena, que foi uma das minhas almofadas antes de me enganchar com a Luísa. Continua a ser uma bela fêmea, vistosa e com as carnes pertinentes. A Filomena julgou que eu vinha com a ideia de ficar um par de dias na sua companhia, mas tive que a desiludir porque a agenda para hoje e amanhã está muito recheada. De qualquer forma tenho a certeza de que está servida por outros amigos e beneméritos. Seria um desperdício ignóbil a deixar esmorecer sem o devido uso. Mesmo assim não escapei a uma queca ao chegar (nem eu queria escapar..) e mais uma rapidinha antes de partir. O que sossega é que esta noite não dormirei no Vale...

Nestas coisas do amor físico e do amor familiar, seja com o/a conjugue, filhos ou outros familiares directos a sociedade tem diversos padrões e conceitos a seguir, nomeadamente no que respeita a aceitar, sem alarido e compreensão, as tais facadas no matrimónio. Os maridos, como caso mais corrente, pretendem ter um livre transito, por assim dizer, para copular outras fêmeas além da esposa. Nisso somos equiparáveis, mesmo que com roupagem, aos tais animais ditos de irracionais. Custa a dizer e especialmente impossível de fazer aceitar pelas mulheres, porque, de facto, o homem quer ter o direito de aplicar a lei do funil, a tal que confere a parte larga, condescendente a alto grau, a ele e a fininha, estreita e desejada estar fechada a cadeado para a sua companheira.

Quando nos mostram reportagens do comportamento de grupos de animais, nomeadamente mamíferos, não nos surpreende o facto da existência de um macho dominante, cujo domínio reside, practicamente, na exclusividade no aparelhamento com as fêmeas do seu grupo. Uma visão que, apesar das normas sociais vigentes, é o sonho, ou pesadelo, de qualquer homem normal, que não esteja totalmente condicionado (não precisa de ser semi-castrado) por efeito das regras sociais, tantas vezes incumpridas. O instinto, quando consegue impor-se, pode levar a conseguir um serralho, mais ou menos povoado. Paralelamente a como funcionam os animais, o macho não admite tais liberdades às fêmeas a se cargo. Nem sequer e uma delas. Bem nem se põe em discussão que a fidelidade (não a que se escreve com maiuscula, que está ligada ao Grupo Segurador) da esposa. Não se aceita, em princípio, mas não se concebe ser taxativo. Recordemos a quantidade imensa de anedotas e histórias verídicas onde a acção principal reflete-se nos divórcios, separações, mortes e, resumindo, quase sempre ligado à imperdoável ofensa dos cornos.

Antes de chegar a Aveiro, e porque já eram horas de almoçar, telefonei a um amigo de Vagos para saber se estava disposto a me dar companhia numas enguias. Não que seja pessoa sem importância, pois que mesmo residente fora de Aveiro ele sabe muito mais do que as pessoas podem pensar. Entre nós fica a ser conhecido com o seu nome Chico Faísca, Chico por Francisco e Faísca porque durante muitos anos foi electricista embarcado no bacalhau e depois continuou com fios e fusíveis em terra, mas só em biscates porque o corpo não o ajuda para grandes trabalhos. Este homem sabe tanto ou mais do que os elementos da Guarda Fiscal de Aveiro, e, neste sentido é de suma importância para referir os dias de folga de uns e outros, dos que preferem olhar para o lado e dos que são uns cacaruços ansiosos por mostrar serviço, mas que, bem conversados, são mais úteis do que alguns gabarolas de quem não podemos por a mão no lume.

E o Chico Faísca sabe de tascas com boas enguias como ninguém. Mas não só, tem que ter um bom espumoso da Bairrada e mais umas febras grelhadas à maneira. Sempre foi um bom parceiro para petiscos. Bem haja.

Aveiro!, quem te viu e quem te vê! Recordo como era nos anos '50, em especial no comércio, nos cafés, restaurantes, cervejarias e creperias. Há um sem fim de novas actividades que ocuparam os antigos locatários, tal como nas restantes cidades de Portugal. Urbanizações e novas instalações industriais, mais o inusitado movimento de pessoas pelas ruas, lhe auferem um ar de cosmopolitismo que os de meia idade apreciamos. Os novos não podem fazer comparações, e muitos nem sequer são originários desta zona pois que ao instalarem um polo universitário nesta cidade alterou-se, profundamente o tecido humano, para melhor.

Mas eu estou aqui por trabalho, e tenho que demorar mais tempo do que na Figueira, pois aqui tenho mais assuntos importantes a controlar. Antes de me meter nas tarefas profissionais, pois que cada um tem a profissão que lhe calhou no sorteio, tenho que ligar para a Luísa.

Luísa? Olá. estou chegando a Aveiro, e tu onde estás? Também em Aveiro! Devo ter um sinalizador no carro! Eu ainda não tratei das minhas coisas  aqui, se bem que das outras vezes em que passamos nesta cidade, que teimam em chamar da Veneza portuguesa, pelo menos aqueles patriotas que não conhecem aquela que foi uma das cidades mais importantes do Mediterrâneo. Preciso de uma hora por aí. E tu, como estás de tempo e do teu programa?

-José. Já estava ralada contigo, mas não me atreví a telefonar para não atrapalhar os teus negócios. Eu não contava em nos encontrar e practicamente já tratei das minhas coisas de Aveiro. Mas gostaria de estar um bocado  na tua companhia, seja para um lanche ou um café, pois recordo que me falaste em que querias encontrar-te também, com não sei quem, em Águeda, a caminho de Viseu -como na cantilena famosa- que deve ser a bse de trabalho e noite antes de amanhã ires até à Guarda. Ve se podes marcar uma meia hora para mim nesta cafetaria-pastelaria nova que abriram perto do Salão.

- Com certeza querida esposa (gostaste do salamaneque?) Vou fazer o possível para despachar em meia hora. Vai lá ter, compra uma revistazeca destas para burras e finges que les, para não ficares com o ar de oferecida, pois sabes bem que os homens não tardam a mandar mensagens de olhos ou tentar abrir uma conversa com propósitos mais do que evidentes. Até já.


domingo, 29 de abril de 2018

CRÓNICAS DO VALE – cap. 43


- Luísa, esposa querida (a segunda com este diploma), não sei se captas a paz e bem-estar que sinto neste momento, em que podemos jantar a sós, sem companhia nem mirones. As minhas recordações recuam uns vinte e tal anos, quando à volta da mesa, sempre irrequietos e só sentados sossegados quando pressionados pelos pais, mas sempre mexendo-se como se tivessem lombrigas. Eu gostava de lhes dar a provar do meu prato, onde estavam condimentos que ainda não tinham saboreado. Coisa que a falecida Constança detestava e ralhava mesmo á frente das crianças. Não entendia o meu proceder, e como sentia a obrigação de lhes abrir o paladar para não se tornarem obcecados por um alimento em exclusividade. Recordo de um tio meu, dos que ainda moravam em Espanha, que todo a sua vida estava centrada no bife com batatas fritas e ovo a cavalo. Não comia outra coisa! Que desperdiço e desprezo perante a culinária!

- Meu marido, já usado e certamente que mais do que reusado. Mas deixemos estes pormenores, que devem ficar enterrados, para bem da humanidade!! Esta esteve boa. Não te vou descobrir nem ensinar nada, mas sabes bem que os costumes tem-se modificado muito, e que, até certo ponto, quase que retrocedemos. Quantos jovens haverá por aí que entre uma hambúrguer de fábrica e uma dose de cozido, ou feijoada com chispe, ou caldeirada de peixe, ou chanfana, não rejeitem toda a cozinha de tacho e tempo, de temperos honestos? Alguns, bem ensinados e que não se deixem arrastar pelas modas, mas serão poucos certamente.

- Enquanto falavas, tão acertadamente, recordei um hábito, que já foi banido por ser considerado como pernicioso, mas que eu, apesar dos ralhetes da mãe, por vezes dava como petisco aos meus filhos: uma fatia de pão caseiro, com um fio de bom azeite e polvilhado de açúcar, ou, em opção mais do povo, regado com um esguicho de tinto e igualmente polvilhado de açúcar. Deves ter a lembrança, se tiveste esta sorte, de que ambos petiscos, por assim chamar, eram merecedores de apreço.

- Pois sim- Mas daí a tornar isso como um mata bicho habitual, diário, como era costume entre o povo chão, vai uma boa distância. És ciente de que a má alimentação das crianças, começando com as tais “sopas de cavalo cansado”, era um dos factores que condicionavam a baixa estatura dos adultos. Que só com a melhoria da alimentação é que verificou, pelos registos dos quartéis quando mediam os mancebos que não conseguiam fugir da chamada, que a altura foi subindo, lenta mas progressivamente.

- Todos os exageros são prejudiciais, mas eu referi este exemplo, mal escolhido pelo que vi, mas a minha intenção de abrir aqueles paladares era mais centrada nos pratos que vinham a mesa do que em más tradições, que devemos entender e não estigmatizar só por estarem fora do que hoje é aceite.

Muitas vezes não paramos a pensar como e porque os hábitos tem mudado, e o nosso tempo de vida não nos fornece a experiência do tempo dos nossos pais e avós. Será que as gerações que nos seguem, a dos nossos filhos e daqueles netos já presentes e outros que esperam a sua vez de entrar, são conscientes de que os pobres, tanto no campo como nas zonas degradadas das urbes em crescimento, não dispunham de dinheiro para comprar farinhas e leites em pó, papas e até pomadas quando precisas, para assegurar o bom crescimento dos seus descendentes? Hoje nos incitam a que se deite fora um pacote, meio esquecido, de um alimento onde está impressa uma data de caducidade de semanas, poucas, atrás. E devíamos saber que estas caducidades não são taxativas, que aquilo se transformou, repentinamente, num veneno.

É que a educação ou ilustração, neste território onde vivemos, esteve estagnada por séculos. Que só no XIX é que a sociedade civil reagiu, com as iniciativas não governamentais, como foram as escolas financiadas pela maçonaria, tendo o Grandella como cabeça visível. Nas cidades surgiram escolas do estilo da Voz do Operário, e se imprimiram livros de ensino e pequenos opúsculos com divulgação de temas profissionais, técnicos e até de teor académico, em linguagem accessível para aqueles que se estavam iniciando na cultura. Iniciativas que os conservadores, sempre ciosos do modo como dominavam o povo, não gostavam. E estas “lanças em África” já vinham atrasadas em relação ao que na Europa central já estava consolidado.

- José, mais uma vez os nossos diálogos entram no campo do social, por não dizer da política, e nem eu nem tu somos políticos, que eu saiba. Só no estar por casa, como o robe sobre a camisa de dormir ou do pijama. E, por ser verdade, também em relação ao nosso comportamento e relações com o mundo que nos rodeia. Vamos continuar esta palestra noutra altura? É interessante e deve-se bater neste ferro, mesmo quando está frio. Mas hoje temos outros afazeres.

- Certo. Sabes que não espero que os rapazes, doutores ou simples agentes da autoridade, me sirvam as novidades em bandeja. Tenho que procurar saber quem pretende fazer-me a cama e tentar devolver a bola, com mais força. Posto isto vou sair para “o campo de batalha”.

Uma das tarefas que considero oportunas, e indispensáveis, é a de procurar localizar algum do pessoal de apoio, mais concretamente de cozinha e copa, que esteve nas últimas farras que se deram nesta zona, e que suspeitamos sejam destes eventos que se despacharam os dois mortos. Se conseguir falar com algum destes membros do pessoal de hotelaria, pois hoje é assim que gostam de ser referidos, o que me interessa saber é se as “meninas” que ali levaram para distrair os convidados eram portuguesas ou vieram de longe.

Também tenho que sondar os meus conhecimentos e alguns colaboradores, que não deves conhecer jamais, para concretizar o local onde se tem dado as tais bacanais com droga e mulheres, e também com serviços especiais para os que apreciam rabos de homem. Da primeira investida não dei muita pressão nesta identificação, que se tornou importante, pois seguindo o rasto da propriedade será possível lançar o anzol sem ser à sorte no mar alto. Hoje até os pescadores utilizam as técnicas de sonar para localizar os cardumes.

Tenho-me perguntado porque diabo, estes sacanas, escolheram as minhas terras? Será porque o tal mandarete que veio sondar a possibilidade de comprarem o casarão, quando contou da sua tentativa e da minha resposta ambígua, possa ter recebido ordens de “queimar” o local? Há gente muito retorcida neste mundo. Estou convencido de que seja o mesmo intermediário ou outro qualquer não tardará a bater à nossa porta, mostrando-se “menos interessado” na adquisição por causa dos acontecimentos, mas, mesmo assim, com vontade de nos ajudar a nos ver livres de uma propriedade que ficou assombrada, ou mal afamada.

sexta-feira, 27 de abril de 2018

CRÓNICAS DO VALE – Cap 42


Finalmente consegui meter-me a caminho para Coimbra. Mas a agenda que trazia em mente já foi alterada com a visita do inspector da P.J. Não me posso fiar demasiado nas doces palavras deste homem, pois antes de tudo é um polícia e desta feita deve estar debaixo de olho dos seus superiores. Esta bronca que armaram, uns desconhecidos que é imperioso identificar, vai ser vista com cuidado e procurarão um bode expiatório, escolhido num sorteio onde, pelo que pressinto, eu tenho alguns números.

Tenho que me por em campo e procurar saber mais do que simples deduções. E deduzo que por aí é capaz de ter entrado em jogo, sujo como é evidente, alguma das máfias dos países do leste europeu, que negoceiam e traficam, também em Portugal, como cão por vinha vindimada. Pelas notícias que transpiram até parece que as nossas autoridades não os apertam tanto quanto merecem. Consta que são diversos grupos, todos com origem entre a Ucrânia e a Hungria, passando pelos territórios conturbados dos Balcãs. Em primeiro passo necessita-se seleccionar quais são os grupos de traficantes de droga e mulheres que actuam na zona centro, concretamente em Coimbra e arredores.

A pessoa que me pode dar alguma dica, se estiver por aí virado, é o chefe dos de “etnia cigana” desta área. E digo isso porque sei o zelo com que sempre olham e defendem as suas áreas de actuação. E estes do Leste vieram alterar o equilíbrio. Daí que imagino que os ciganos da casa não devem ter muita amizade com os de fora, até porque não só lhes invadem o território mas porque alteram, para pior, o já instável equilíbrio com que sempre convivem com a autoridade, especialmente com a dupla GNR-PJ, sem contar com o grupo de Estrangeiros e Fronteira. Devo ter o telefone de Rafael ORTEGA, que creio é ou era o chefe dos calés desta zona. Este espaço livre é bom para parar e telefonar.

Senhor Ortega? Sim? Bom dia sou o José Maragato, passou bem? Gostaria de poder trocar umas palavras com o senhor. Pode ser? E donde está nesta altura? Em Aveiro, perto da feira, óptimo! Podemos ficar num café sossegado? Na Gaivota? Sei onde fica. Em dez minutos estarei consigo. Até já, e obrigado pela sua atenção e disponibilidade. Vou a caminho.

Temos que saber lidar com todo tipo de pessoas, e estes de etnia cigana são muito importantes. Circulam por aí sem travões e sabem imensas coisas que o cidadão comum ignora. A polícia, que desde sempre os tem tentado cercar, sabe que são imprescindíveis para troca de informações. E por isso é que conseguem ultrapassar as “rusgas”, mais a fingir e para inglês ver, tanto da PSP, da Municipal e até da ASAE. Só quando na droga ultrapassam os limites tacitamente aceites, em casos de cenas com tiros e até mortes, é que as acções de repressão são mais fortes.

Bom dia, mais uma vez, Amigo e Senhor Ortega. Vejo que está com um óptimo aspecto e, à vista desarmada, transpira saúde. Parabéns. Esta menina que o acompanha é sua filha ou neta?

É filha mesmo, e está no secundário aqui em Aveiro, com boas notas! Quando pode faz-me de secretária, pois já me acontece falhar a memória quanto a nomes e datas, e ela é uma agenda sempre actualizada. E então Amigo Maragato, o que o traz por cá?

-Desta vez não sou intermediário de ninguém, nem lhe quero apresentar uma personagem com interesses comuns. Sou eu que gostava de comentar um assunto preocupante e tentar que me orientasse. O tema é um pouco, bastante, muito até, rebuscado e atingiu-me sem saber porque, pois não tive arte nem parte activa nele.

É possível que já lhe tenha chegado a notícia do morto que despejaram num terreno da minha propriedade, que aliás era do pai da minha falecida mulher dona Constança, que Deus a tenha ao seu lado.

- Um morto ou são já dois?

- Isso é o que mais me traz ralado. Não sei porque cargas de água escolheram aquele local para se desembaraçar dos cadáveres. Cheira-me a coisas esquisitas. E mais porque, pelas minhas fontes, tenho quase a certeza de que o crime primeiro, e possivelmente o segundo está ligado ao primeiro, teve origem numa festança que uns desconhecidos (por enquanto não sei quem foram, mas desconfio..) deram numa grande casa isolada, na zona do Buçaco.

Espiolhando aqui e ali, e magicando por minha conta e risco, deduzo que por aí é capaz de ter entrado em jogo, sujo como é evidente, alguma das máfias dos países do Leste europeu, que negoceiam e traficam, também em Portugal, como cão por vinha vindimada. Pelas notícias que transpiram até parece que as nossas autoridades não os apertam tanto o cerco quanto merecem. Consta que são diversos grupos, todos com origem entre a Ucrânia e a Hungria, passando pelos territórios conturbados dos Balcãs. Para já, eu desconheço quase tudo sobre esta gente. Não sei quais são os que traficam drogas e mulheres que actuam na zona centro, concretamente em Coimbra e arredores. Mas naquela festa que refiro houve das duas coisas com fartura, e também travestis e paneleiros de produção nacional.

Sem tentar ser indiscreto, mas tampouco um anjo, deduzo que estes malandros que vieram de fora se estão intrometendo nas vossas áreas de comércio, e que apesar de alguns se identificarem como romis, se calhar não são aceites como parceiros e menos como competidores pelos da sua etnia, já estabelecidos na península. Mas que não estão isolados pelas fronteiras, pois que, pelo que de vez em quando aparece em reportagens de festas, existe, desde sempre, uma trasfega de pessoas entre as famílias de Espanha e Portugal.

Avançando: Chego a pensar que da vossa parte devem ter algumas incompatibilidades com estes invasores, que ainda por cima fazem alarde de contrabandear armas e outros artigos, como são as raparigas para eles, em grande escala. Estão levantando lodo que devia ser mantido parado. Se eu estiver certo, pensa o Senhor Ortega que podemos dar uma mão uns aos outros e ver se entre “os da casa” e as polícias, que nem sempre agem a tempo e horas, se pode conseguir dar-lhes na cabeça? Da minha parte estou pessoalmente interessado em me ver livre destas graças, sem graça nenhuma, e também estaria disposto a servir de elo de ligação entre as suas famílias, através do Ortega, e a Judiciária, que, como sabe é melhor os termos como “amigos” do que como cães de fila. O amigo Maragato está carregado de razão, tanto no que o molesta como no que aos meus companheiros e familiares afecta. Ficaria muito contente se esta malta do Leste fosse chatear para outro lado.

- Conte comigo. Mas neste momento só lhe posso dar isso: a certeza de que o ajudarei e entre os dois lavaremos as mãos. Deixe-me o seu contacto reservado e não tardarei em o procurar. É tudo por hoje? É que já viu que vieram procurar-me, com certeza que para dar sentença para alguma desavença.

CRÓNICAS DO VALE - cap XLIII

Um jantar a dois em casa. Que agradável é poder usufruiir deste sosego familiar. Faz-me recordar tempos de duas décadas atrás. Mas faltam as crianças a que dar a provar paladares novos, ensinar a comer nésperas e otras frutas de caroço. proporcionar que descubram como era bom mordiscar, com calma, uma fatia de pao caseiro, com umas pingas de tinto, sem ensopar ou mesmo ensopado, e polvilhado com açúcar. Esta iguaria, que o era, hoje está totalmente banida dos costumes, por considerar que induz as crianças a se tornarem alcoólicos, sem ponderar que não passaráo cinco lustros sem que lhes ponham na mão os tais shotts, que naqueles copinhos carregam mais destilado do que um litro de vinho. Temos muitas mentiras enquistadas, mesmo que se baseiem em exageros sem sentido.

- Mas tomar a parte pelo todo,ou ao contrário, pode levar a resulatdos nefastos. Digo isso porque não podemos esquecer o costume, em certas zonas e camadas da população, de considerar as tais sopas de cavalo cansado, que eram,nem mais nem menos, ou mais mais do que menos, uma tigela de pão troceado ensopado com tinto carrascão, que não era sequer de colheita de viticultor como agoara de tornou "bem". Não consideras isto como um costume prejudicial?

-Luísa, sabes perfeitamente que o nível de pobreza existenet no campo ainda era  muito mais elevado na nossa meninice do que hoje. Ou pensas que aqueles desgraçados, que vestiam farrapos herdados ou, quando muito, roupas usadas até o fio pelo anterior possuidor, tinham dinheiro para comprar farinha láctea? Ao mesmo tempo o nível de cultura estava abaixo de cão. Muitas famílias não tinham um elemento que soubesse ler e entender o que estava num papel. A decisão e iniciativas sociais, nomeadamente por parte dos governos ou de privados, que se tinham tido um início com Grandella e alguns outros maçõns de cariz filantrópico e humanista, não foram suficientes para conseguir uma evolução notável da população rural. Já com o operariado fabril, entre sindicalistas, anarquistas e revolucionários de outras capelas, se esforçaram e conseguiram iniciar a culturização dos mais pobres. Sempre com voluntariado e resistindo às embestidas, quantas vezes violentas e sangrentas, dos conservadores. 

- José. Sem dar por isso já nos metemos na política caseira, que só nos pode causar problemas. Sabemos que este jogo, quando se pratica honestamente e por "amor à arte" não é rentável, e aceito que nem se pretendia que dese frutos pessoais; antes deseja-se que os resultados positivos, se aparecerem, se reflitam em desconhecidos. Mas esta atitude é própria dos lunáticos, dos utópicos, dos que teimam em não avaliar as tácticas e modos de agir dos cínicos que se aproveitam por trás dopano e bem apoiados enter si. E que, sem dúvida, nos dão asco.

-Luísa

quinta-feira, 26 de abril de 2018

CRÓNICAS DO VALE – Cap 41




Zé, da conversata entre o inspector e tu, deixando de lado os galhardetes e o repetirem o que já sabemos, aquilo que me ficou na ideia é o ele referir que tens um dossier aberto na Judiciária. E que é bem antigo. Que a polícia anda com os Maragato debaixo de olho desde muitos anos. E se me tranquilizasses um pouco? Não seria mau do todo. Sei que desejas eu estar a Leste dos teus assuntos, mas fazer de boneca de borracha não é bem do meu feitio.

Não fervas antes de tempo. Já te disse e repeti que o melhor, para ti, é saber pouco das minhas andanças. É uma questão de prudência e bom senso. Pouco a pouco irás conhecendo as linhas com que me coso e que aprendi do meu pai e do avô. E ouviste que eles não deixaram pontas soltas.

Acontece que eu tenho interesses muito variados. Sou mais aquilo que te disse em tempos: UM FACILITADOR. Ou seja, eu preparo encontros, abro caminhos, coloco as peças no tabuleiro e depois sou remunerado escrupulosamente, pois os meus “clientes” sabem que podem voltar a precisar de mim. Aqueles que decidem mijar fora do testo, como se diz na gíria, depressa descobrem que erraram.

Um exemplo. Com a minha rede de conhecimentos, que insisto teve início nos tempos da monarquia espanhola, sei de muitos projectos muito antes do que os que depois se mostrarão interessados. Se o tema meter terrenos, por exemplo, eu procura comprar ou dar sinal de compra antes que outro se decida. Se o projecto pifiar, então me encarrego de incitar outra entidade para que, no mesmo local, tome a dianteira ou oriente uma outra actividade. O que é preciso é não perder a iniciativa nem o rendimento que nos cabe.

Nunca saberás que eu tenha muitas propriedades rústicas, a não ser na periferia das cidades. E estas muitas já as herdei dos Maragatos já falecidos, que mostraram ter uma visão de futuro. Prédios e naves industriais são sempre investimentos de valor. Só preciso de ter calma e colocar umas dicas no mercado. Rendem sempre, e sem passar totalmente pelo fisco, mas sempre deixando um bom punhado de milho para os pombos. Só quem insiste em ter a totalidade no seu bolso é que se encontra com que os bolsos rompem.

Imagino que não ficaste totalmente esclarecida, e nada satisfeita. Prometo que não tardarei em te contar um caso concreto. Isto é como o comandar uma nau. Temos que manter os olhos sempre abertos, pesquisar além do horizonte e ter uma tripulação (deves ler uma equipa de colaboradores) satisfeita e fiel. Sem um apoio forte mesmo ao pé, e na retaguarda, um capitão não se aguenta. Tem que se antecipar aos temporais.

E o perigoso da situação com estas mortes perto de casa é que pode ser uma táctica de um concorrente. De algum que me quer tirar o lugar. Por existir esta possibilidade é que tenho estado em contactos, muito discretos, com pessoas de confiança, uns da alta roda e outros da malandragem. No intuito de não os deixar avançar demasiado, a todos eles deixei, dito em entrelinhas, que se encontrar um traidor não aparecerá nos meus terrenos, que do lado do Buçaco ou mesmo na Serra de Montesinho, sem descartar o Gerês, existem lindos e tranquilos lugares onde e pode descansar.

Entretanto estou mexendo os cordelinhos para me adiantar à PJ, pois se eles tem acesso à Interpol, também pecam de lutas intestinas entre as diversas forças. É a diferença entre uma estrutura com uma só cabeça e o esquema oficial, com muitos departamento estanques e muita gente a querer ser o maior. Veremos quem chega lá primeiro. Não quero uma medalha, só quero parar estes atrevidos. Que vão chatear aos espanhóis, ou aos franceses e italianos. Por cá eles confiam na lenda de que somos moles, que sofremos dos brandos costumes. Tal vez se enganem. Não seria a primeira vez que levavam nos cornos.

E agora, mesmo que vigiado, acompanho-te até Aveiro e dali darei uma saltada ao Porto. Passarei a recolher-te no salão ou noutro sitio que me indiques, antes de ir jantar a casa. Portanto, terás que falar com a Idalina para que prepare uma sopinha caseira e qualquer coisa leve, que demasiadas calorias já enfardamos nestes dias.

quarta-feira, 25 de abril de 2018

CRÓNICAS DO VALE – Cap. 40

    - Não dei pela tua chegada, mas como me avisastes de que dormirias no Astoria, deixei-me dormir tranquila. Levantas-te-te cedo e daí imaginar que o tal serão de trabalho não foi muito prolongado, ou então que alguma ocorrência te fez sair da cama mais cedo do que o habitual.

  • - As razões foram duplas. Por um lado os temas que tinha a tratar estavam em bom andamento e depois senti que estava a ser seguido, e num caso destes o melhor é fazer de conta que não se deu por isso, mas reduzir as actividades no mínimo. Ou muito me engano ou esta manhã teremos uma visita oficial. Daí que te peço que te arranjes com uma certa celeridade e te prepares como se estivesses prestes a partir de viagem,por exemplo para Aveiro 

  • De facto convinha que desse um salto à capital do distrito; mas antes aguardarei a tal visita que prevês esteja quase a chegar. Vou dizer que me sirvam o mata-bicho na saleta. Até que convêm ver se a ajudante que contratei par aliviar a Idalina, que não tem idade para muita coisa, mas vale muito pela sua veteranice e dedicação. Quero ver como esta Amélia se desenrasca. Tive-a em observação quando da preparação do almoço, na atenção ao pessoal e recolher de pratos e copos, e me pareceu ser aproveitável. Parece ser uma moça educada, séria e com vontade de se adaptar aos nossos hábitos.

  • - Senhor Doutor, está um cavalheiro na sala de entrada, que eu recordo ser um dos convidados no domingo passado. Fica ali especado ou mando entrar?

  • - Deixe Amélia, eu vou atender.

  • - Zé, pareces bruxo!

  • - Olá Dr. Cardoso, faça o favor de entrar, estávamos num tranquilo pequeno almoço, mas a sua chegada sempre ajuda a quebrar este isolamento que pesa num casarão deste tamanho, sem filhos nem netos que acompanhem. A que devemos esta visita?

  • - Lamento que esta vez eu venha em missão oficial. Preferia que fosse por gentileza, e precisamente em sua atenção, Senhor Maragato optei por passar pela sua casa em vez de o convocar para uma presença, mais séria dizendo assim, na sede da PJ em Coimbra. E até que poderia ter sido fácil esta convocação, dado que soube que o Senhor esteve na cidade ontem, pelo menos durante a tarde e até depois de jantar. 

  • Não se admire de nos sabermos dos seus passos. Já sabe que a polícia só descarta alguém da lista de possíveis suspeitos depois de conferir e votar a conferir. De qualquer forma, e como o amigo Maragato deve saber, pois não é nenhum tolo, os Maragato tem uma pasta em vosso nome que já foi aberta no fim da monarquia. Sem que conste nela  terem aberto nenhum processo. Nem sequer uma multa de trânsito.

  • Indo para adiante. O terem colocado outro morto, que estamos certos de ter sido assassinado, nos seus terrenos e no mesmo local do que o anterior, nos obriga a ter uma conversa com o proprietário, mesmo que a nível de testemunha indirecto. Pois que, atendendo às circunstâncias, não se sinta que o Maragato seja culpado. Daí que por respeito e atenção, que desde o primeiro encontro me mereceu, pensei que uma conversa, até certo modo informal, poderia ajudar a vislumbrar o macabro panorama.

  • - Dr. Cardoso, tenho que agradecer a forma como me abordou, e dado que não temos testemunhas inconvenientes, a não ser, se me permite, a minha esposa, sua conhecida, apresentarei a minha visão quanto a este mais recente desacato, para não ser mais agressivo no adjectivar. 

  • Sem pretender ensinar a missa ao vigário, esta atitude com o segundo cadáver parece-me, além de um desafio duplo, a mim, sem ter entendido o porque, e também às autoridades. Além disso, a meu ver, mostra a mão de uma organização criminosa, pois que plantar este morto no mesmo local, e com pormenores de que nós ainda não falamos, mas que alguns deles já me chegaram aos ouvidos, há aqui uns avisos que mais parecem ter saído dos relatos de actividades mafiosas. Não são próprios dos hábitos tradicionais na nossa população. Que temos que admitir nem sempre se portam como anjinhos de altar.

  • - Amigo Maragato. Mais uma vez me mostrou uma percepção e análise quase que de profissional. Pelos vistos entendo que já tem algum indício de a quem corresponde este falso enforcado, e das suas palavras deduzo que sabe terem-no mutilado, na língua e no sistema urogenital. Daí que partilho consigo que estas mutilações, mais os sinais de tortura que encontramos no corpo, mostram que por um lado queriam saber o que procurava e possa ter encontrado este homem, E por outro lado mostraram que não querem linguarudos em volta do assunto. E mais nos dizem, que o castrarem depois de morto, como deixou escrito o médico legista, era mensagem endereçada aos invertidos. Os assasinos se gabam de serem machões!

  •  - O Doutor Cardoso tirou-me as palavras da boca. Sei, por ser dos livros, que deve ter informadores. As polícias sempre tiveram ajudas de colaboradores voluntários ou gratificados e também imagino que nem tudo aquilo que vos “vendem” serve, Mas na investigação é basilar ouvir, perguntar, conferir e voltar a procurar. Se eu fosse polícia estaria sempre jogando com vários baralhos. Isso por influência dos muitos romances policiais que li desde o liceu até já bem adulto. São formativos e os recomendaria.(1)

  • Seja como for, caso o Dr. entender que devo comparecer na vossa sede em Coimbra, sempre e tanto que possa entrar e sair sem ser com grilhetas, estou evidentemente disponível. Até pode ser que, para cumprir as regras internas que possam existir, mas que obviamente eu desconheço, convinha que a minha presença fosse notada. Até podia ir lá para denunciar o insulto de que nos sentimos vítimas, feito por desconhecidos.

  • - Tudo pode ser, Senhor Maragato. Por enquanto eu farei um relatório interno do que comentamos. Não de tudo e com os pormenores que são claramente de índole reservada, pessoal. Os meus superiores gostam muito de relatórios... Agora volto para o local da provocação, pois que nos parece ter sido noutro sitio onde cometeram o assassinato, dado que não encontramos o fluxo de sangue que era de esperar. E não o convido a me acompanhar, por razões que sei entende e escuso de discriminar.

  • - Se me permitem darei a visita por terminada. Minha Senhora, Dona Isabel, que esteve pacientemente nos acompanhando, muda e atenta, os meus respeitosos cumprimentos.

  • - Eu o acompanho. E não o abraço em público pelas mesmas razões que apontou.
  •    
(1) A.A. Fair, Agatha Christie, Ellery Queen, Georges Simenon, Mickey Spillane, e outros.

terça-feira, 24 de abril de 2018

CRÓNICAS DO VALE – Cap. 39




Ainda estamos de ressaca da iniciativa social. Nem sei como se conseguiu que tudo funcionasse tão a preceito. Só o segundo cadáver que nos ofereceram para sobremesa é que veio a ensombrar o que seria uma merecida pausa. Mas a vida não se pode controlar totalmente e nem sequer prever o que nos traz sem esperar. Dizem que as surpresas são o tempero da vida; algumas são de excesso de sal e pimenta!

Por enquanto não sabemos nenhum pormenor, pelo menos oficialmente. Mas quando fui tomar o pequeno almoço encontrei a Idalina na palheta com o Ernesto, ambos em voz baixa e com cara séria. Cheirou-me a que o tema era referente ao segundo cadáver. Pus-lhes a pistola ao peito, como quem diz, e eles não se atreveram a negar que eu acertara. E assim soube dos boatos que corriam entre a população local.

Convém sermos cautelosos ante de embarcar com instintiva convicção naquilo que nos chega através de fontes não oficiais, assim como tampouco devemos dar crédito ilimitado ao que nos transmitem pelas vias pretensamente sérias. O melhor é beber de várias fontes e escolher, sempre com reservas.

Dito isso o que me contaram é que este segundo morto, antes de que seja identificado pelas entidades competentes, deve ser aquele indivíduo bem falante que umas duas semanas atrás andava por aqui perguntando pelo morto que foi encontrado nos terrenos do Sr. Maragato. Ele dizia que o conheceu quando vivo, e que, de facto, está convencido de que era o Carlos Vicente, seu amigo de longos anos. Se calhar estas perguntas, e outras noutros lugares, é que lhe decidiram o fim trágico.

Nesta altura chegou o José e disse-lhe para nos acompanhar, com sinal de que só ouvisse. Já sossegados, o feitor e a veterana empregada fiel, retomaram o tema. Por suas bocas soubemos que o cadáver estava pendurado do carvalho, como se enforcado por suicídio, mas que tal não era possível porque tinha as mãos nas costas, com fio de cobre enrolado nos pulsos. Pior, tinham-lhe cortado a língua e toda a aparelhagem do sexo, visível porque estava nu da cintura para baixo. Os braços, peito e barriga estavam cheios de marcas, tanto nódoas negras, de pancada, como pequenos cortes e queimaduras. Aquele desgraçado foi torturado com sadismo. Um espanto que não recomendam ver.

Nenhum dos dois identificou a fonte original destes macabros pormenores. São coisas que se dizem por aí, sempre com boca pequena, citando as suas palavras. Apesar destas cautelas a Idalina referiu que muitas novidades chegavam ao Vale através da mulher de um GNR, que sendo ele de estatuto militar, sempre carregava uma certa má vontade em relação à polícia, digamos civil. Este homem, que em chegando a casa retirava a farda e gostava de se vestir como um cidadão civil qualquer, não era muito falador, nem era cliente frequente do café, onde as suas participações nas conversas limitavam-se ao futebol e ao tempo frio, quente ou húmido. Sempre teve fama de ser macambúzio. Daí que só depois dele ceder aos interrogatórios da mulher é que as notícias, poucas aliás, nos podiam chegar a umas escolhidas confidentes da esposa, todas elas de “confiança” e sempre jurando que não contariam a ninguém aqueles segredos. E depois, já se sabe... não demoravam nada a passar o mexerico aos quatro ventos.

E não insistimos mais. Cada um seguiu para a sua vida e nós não demos comentários a fim de evitar sermos referenciados. Ao ficar a sós, sem testemunhas, ambos mostramos o nosso espanto e temor pelo que tínhamos ouvido. Se, de facto, este indivíduo, foi vítima de maus tratos mais de profissionais do crime organizado do que de amadores, o que deixaram parece ser uma mensagem múltipla de aviso para que, daí em diante, não aceitarão que outros curiosos tentem mexer neste assunto. Sem hesitação captamos ter atingido um nível inusitado. Parece que, além dos elementos nacionais, que sempre agem a coberto de interesses e daí com alguma cobertura, é possível que já tenha entrado em campo aquilo que se refere como sendo as máfias a nível internacional, do crime organizado, seja de droga ou de clandestinos, se não de ambos campos, além de outros em paralelo. Temos que agir com muito cuidado!

- Isabel, nem é preciso que me avises para não ir até o local. Sei que tu não te apresentarás nem sequer pelos arredores, até porque não conheces a mata como eu. O mais prudente é aguardarmos pacientemente e ao mesmo tempo muito impacientes, que seja a GNR ou a Judiciária, nos procure, pois que como proprietários e já anteriormente “premiados” com outro morto, é inevitável o vir a ser incomodados, seja pouco ou muito. Entretanto vamos fazendo a nossa vida “normal”. Tu podes ir tratar dos teus salões e acertar contas com a dona Gertrudes e com os fornecedores de bens ou de serviços que ela encontrou e contratou. Não se pode esperar que fique com mais esta responsabilidade.

Pela minha parte vou até Coimbra, dar a novidade aos advogados e tratar de assuntos “não oficiais” que tu não deves conhecer, para teu resguardo e tranquilidade. Devo almoçar por lá e até ter que jantar e ter um serão “para trabalhadores”. Não te preocupes, que a vida continua, menos para aqueles que outros lhes cortam a sua estadia no mundo dos vivos. Ah! Mais uma coisa: gostaria que mantivéssemos os meus filhos e o teu irmão fora deste novo acontecimento, pelo menos antes de vir nos jornais. Não ganhamos nada, nem eles, em os preocupar com isso. Por enquanto aguardemos pelos acontecimentos.

- Avisarei à Idalina que não deve esperar por nós para almoçar nem jantar. Eu me arranjarei na Vila. Uma beijoca e bom trabalho, além de uma boa viagem. Se a noite estiver cerrada e com pouco transito se calhar é prudente ficares a dormir no Astória. Eu virei para o Vale ainda com luz de dia, mas ficava sossegada se me fores telefonando dando notícia de como vai a tua vida. Vai! Dá cá uma beijoca.

sábado, 21 de abril de 2018

CRÓNICAS DO VALE - Cap. 38




Desculpem que eu, Isabel, venha interromper as vossas conversas, que é possível que estejam agora mais centradas na notícia de última hora do que a reunião que nos juntou. Assim sendo, mais um morto matou a festa.

E a propósito de esta “festa” tenha sido apresentada com uma justificação bastante insólita já motivou a que, comentaristas com mais confiança, me abordassem com a dúvida, maliciosa, de se isso foi uma espécie de banquete de bodas, sem pastel nem leilão da liga e outras características habituais. Não foi assim que a concebemos; mas ao longo da preparação também imaginamos que surgissem este tipo de comentários.

Acontece que ambos já temos idade de ter juízo. Que eu não tinha pachorra nem coragem para me fardar de branco, a arrastar uma cauda, nem ter umas crianças vestidas à pajem com as cestinhas de alianças. Além de que esta propriedade, e a casa em especial, era o dote da primeira esposa do José, oferecida pelo sogro comendador. Tudo me agoniava para me sentir uma intrusa, e confio em que entendam as razões para não querer celebrar, claramente, a boda. Ambos sentimos que a vida íntima de cada um tem quase a obrigação de permanecer mesmo na intimidade. Coisa que nesta fase evolutiva da sociedade se está transferindo, sem recato, para as redes sociais.

Sobre este “pequeno pormenor” quero acrescentar, para terminar, que alguns convidados foram poupados de despesas em prendas, ofertas, e se não esperamos agradecimentos por isso, tampouco seria justo que o deixássemos passar em branco. E agora o meu marido, e vosso amigo José quer deixar um apontamento da actualidade.

-  Amigos. Lamento profundamente a notícia que minutos atrás nos chegou. Principalmente porque corresponde a mais uma morte da qual o único ligame que me une é o facto de ter sido utilizado um terreno desta propriedade para servir de depósito. Não tenho mais elementos que vos possa transmitir, porque o emissário parecia que tampouco sabia nada de nada, ou muito pouco. É possível que amanhã. Seja pela voz do povo ou pelos jornais nos apareçam alguns pormenores. Para já só tenho que agradecer a vossa comparência, o modo tão simpático como toda a gente mostrou o seu agrado e, também, desejar algo que é difícil, que este fecho do dia não venha a alterar o ambiente que mantivemos ao longo destas horas.

Não vos abro a porta para fugirem, e tampouco vos prendo contra vontade pois compreendo, por mim mesmo, como tudo se alterou. Mais uma vez agradeço a vossa estimada presença.

No dia seguinte

Passou por casa o inspector Dr. Cardoso. Só por uma questão de gentileza, pois estava já no serviço activo, dado que quando o comando da GNR deu conta da ocorrência, situada no mesmo lugar do crime de morte ainda não resolvido nem arquivado (está demasiado fresco para ser arquivado) a chefia o transferiu para ele, sem hesitação. Não podia acrescentar nada. Conhecia alguns pormenores escabrosos, com um nível de macabro pouco habitual entre nós. Mas é cedo para divulgar. E mesmo assim julgo que alguém de entre os membros da PJ e da GNR, mais os dos bombeiros e outros, dará com a língua nos dentes com os amigos dos jornais, em especial do Correio, que são avisados mais depressa do que as autoridades.

E o Dr Cardoso ainda acrescentou: logo de manhã no meu serviço, em Coimbra, mostraram dois jornais locais onde relatavam, com muitos louvores, a recepção que o Amigo José ofereceu a populares e outros cidadãos vossos amigos e familiares. Foi considerada a mais importante reunião civil, não oficial, que se deu, graciosamente (e sublinharam alguns dos adjectivos) nestes concelhos ao redor de Coimbra. Os jornalistas provincianos deviam ter saído bem comidos e bem bebidos, e com os olhos inflamados de ver tantas belezas desconhecidas, sem serem as habituais das revistas parvas. E tiveram que sair disparados para as redacções sem saber do novo morto. Fica para a número de amanhã.

Segue no capítulo XXXIX

sexta-feira, 20 de abril de 2018

CRÓNICAS DO VALE – cap. 37



TUDO OK – salvo o novo caso

Decidimos parar para respirar e confiar em que as decisões tomadas nos levariam a bom porto. Continuar a bater ferro,estando já frio, seria contraproducente. E além de mais ESTAVAMOS FARTOS, e convencidos de que os seguidores ainda mais ENFASTIADOS do que nós. Daí que passamos para a frente e farei eu, Isabel, o relato dos acontecimentos.

Chegou o dia e compareceram oitenta e tal pessoas. Uns convidados e outros penetras. Mas nestas coisas não se pode ter um porteiro como era a do Frágil. Surpreendentemente vieram os dois filhos do José e da falecida Constança, ambos acompanhados, tanto a parceira do Bruno como o acompanhante da Luísa, além de bem parecidos e educados, mostraram-se amáveis e afectuosos para mim, e simpáticos para os desconhecidos, que eram a imensa maioria.

Os dois amigos advogados de Coimbra, também aceitaram o convite, e com duas brasas de tirar os soluços aos mais impressionáveis. Não ficava atrás a companhia do Inspector Dr. Sílvio CARDOSO, que ao chegar pediu ao José que tentasse evitar ser apresentado como Inspector da PJ, pois veio a título pessoal. O José fez sinal ao Presidente Aníbal MEDEIROS, que trazia atrelada a sua esposa Noémia, para lhe transferir o pedido. Beijinhos da praxe.

Também veio o meu irmão Óscar, mais uma companheira que se identificou como Ruth, que trazia pendurado, ou melhor dizendo, pela mão um menino que, após lhe perguntar, me disse ter quatro anos e se chamar Carlos Manuel (outro Camané na forja!). A azáfama não deu para saber se este Carlitos era filho do Óscar ou vinha de uma fornada anterior. Teremos tempo, depois de tantos anos sem sabermos uns dos outros.

As minhas convidadas dos salões, radiantes, cabelos de revista e fatiotas de virar os olhos. Foram mais simpáticas do que eu mesma imaginava, mas tinha-as treinado no trabalho para isso. Por isso não podiam deixar de sorrir e dar beijinhos a torto e a direito. A Ivone não me largava. O que notei, sem esforço, é que os homens da terra, que nenhum se atreveu a comparecer sem trazer a sua guarda-costas, não tinham olhos a medir. Esta reunião “social” vai ser, sem dúvida, recordada durante bastante tempo.

Tal como previsto, quando chegavam os convidados eram atendidos pelas empregadas e empregados que trouxe a Dona Gertrudes, carregando bandejas com canapés, bolinhos de bacalhau, croquetes e rissóis, tudo em tamanho mini, outros com copos de verde fresco, cerveja para os clássicos e sumos para as senhoras tímidas. Como quem não quer deixei cair que tudo aquilo e mais os salgados que viessem no bufete, eram decisões da Dona Gertrudes, dona da restaurante A CALECHE, a quem depositei a minha inteira confiança e que me prestou uma inestimável ajuda.

Entretanto e como é habitual, foram-se cruando pequenos grupos de pessoas afins, uns conhecidos de antes e outros curiosos, desejosos de beber as palavras daqueles desconhecidos, alguns foram marcando os lugares que desejavam, com casacos, malas, echarpes, o que tivessem à mão. E chegou o aviso de que as travessas estavam no balcão e não convinha deixar arrefecer. Foi uma corrida à Carlos Lopes e à Rosa Mota . Os empurrões e cotoveladas poderiam ter sido mais, não fosse a previsão da Grande Chefe do Caleche que mandou situar de três a quatro travessas do mesmo petisco, distribuídas pelo balcão. Ao todo, então contei, eram de seis a oito pratos diferentes. Algumas das travessas tiveram que ser reabastecidas mais do que uma vez.

Fui à cozinha para comentar com a Dona Gertrudes se tinha precavido, ao que me respondeu que estava habituada a casamentos e saber como eram glutões se houvesse coisas de que gostavam e que nas suas casas raramente, ou nunca, apareciam na mesa. Ali dei com que uma das minhas empregadas, precisamente a recepcionista Sofia, tinha vestido um avental e estava lavando pratos, copos e talheres. Disse-lhe ao ouvido que ela, ali, era uma convidada, com a mesma categoria das outras que por aí se vangloriavam. Que tirasse o avental e se apresentasse na mesa para almoçar. Mesmo assim eu, pessoalmente, agradecia a sua boa vontade, e que também tinha visto que as outras suas colegas deram uma mão quando as coisas estavam com pressão.

Só terminaram de “enfardar” quando as travessas vazias já não regressavam com reforços e se anunciou a chegada de fruta, doces e café. Então, levantei-me da mesa donde estavam o Presidente, os advogados e o inspector, pedindo silêncio a fim de poder manifestar a minha satisfação e dever de amizade á Dona Gertrudes. Surgiu uma espontânea salva de palmas, em pé e com gritos de obrigado, parabéns, vivas. A Gertrudes veio agradecer e demos um abraço com mutuo sentimento. O José também quis um abraço (invejoso!), por não poder abraçar, em público, algumas das belezas que nos rodeavam. Bem gostaria ele, e não se ficaria pelo abraço. Se eu não o conhecesse.

Após bolos, que não sei como os conseguiram engolir, de tão cheios que todos deviam estar, e mais o café, o José e eu fomos convidando os casais maisbrepresentativos para entrarem na mansão do falecido Comendador. Naquele momento eu senti-me uma usurpadora, uma intrusa. Quem devia estar a fazer as honras da casa era a filha do Comendador, a Dona Constança. Mas o mundo dá voltas sem parar e tive que ocupar eu o lugar da falecida.

Levamos as visitas aos salões, reservando um canto para os fumadores, pois que dentro da casa as leis não se aplicavam com excessivo rigor. Para os deixar à vontade havia mesas de apoio entre os sofás e cinzeiros de grande capacidade, além de uma caixa de charutos cubanos, que o José referiu, com ar de gozo, "sirvam-se sem se cohibirem, pois são mesmo Cohibas.

Mesmo assim deixei a porta da varanda aberta. Acompanhei as senhoras para as casas de banho e mandei servir café, para quem desejasse, cognacs franceses, aguardentes nacionais, licores e tudo aquilo que o José se encarrega de manter na sua garrafeira particular.

E nesta estávamos quando

REBENTOU A BOMBA. TEMOS TROVOADA!

Ouvimos bater, desalmadamente, à porta e a Idalina, em passo de corrida, foi ver quem era. Regressou muito séria, assustada mesmo, fazendo sinal ao José para que se chegasse sem companhia indiscreta.

-Ai, menino José, diz aqui o rapaz que nos seus terrenos, mesmo ao lado da cova onde encontraram aquele morto, está um homem enforcado num carvalho. Mandaram-no montar na sua BTT para avisar os patrões e de seguida telefonarem à Guarda para que compareçam a dar conta da ocorrência.




quinta-feira, 19 de abril de 2018

CRÓNICAS DO VALE – Cap. 36




  • Parece que o grosso das questões já está em andamento. Só estamos encravados com a falta de resposta de algumas pessoas. Eu já falei com o Óscar e respondeu que virá com a sua companheira, ou mulher legal, não fiquei esclarecida sobre este pormenor, que é de somenos. E tu, já sabes dos teus filhos? E dos advogados, mais a hipótese do inspector da PJ?
  • Os advogados, como tu lhes chamas, responderam que serão uma dupla presença garantida, e até “ameaçaram” com a possibilidade de virem com companhias femininas, pois, segundo dizem “elas” apreciam conviver com rústicos. Espero que não lhes saia o tiro pela culatra, pois os que consideram de rústicos não são tão parvos como muitos urbanos.
  • Quanto ao inspector não lhes deu nem sim nem não. Julgam que deve estar na situação de ponderar se no meio dos naturais da zona, depois de bem comidos, possa encontrar quem se descaia com alguma pista. Não aposto nisso, nem tampouco em que se exponha a conviver com os inquiridos. E, por outro lado, neste crime admitem-se movimentos que não é prudente vasculhar.
  • Os meus filhos continuam a mandar bolas fora. Apostaria em que darão desculpas esfarrapadas de última hora a fim de justificar a sua “impossibilidade”. A última palavra, mais uma vez, caberá às senhoras que decidem pelos parceiros. E como não conheço a do Bruno, mas sei que a Luísa é menos transparente do que ela nos quer convencer, estes dois casais teremos que os incluir na conta dos lugares para imprevistos.
  • Seja como for,já ultrapasamos os sessenta lugares sentado, e creio que o mais prudente é apontar para uns possíveis setenta e cinco.

  • Já vistes as mesas da Junta?. A arrumação possível depende muito do tamanho e dos lugares que cada mesa comporta. As mais prácticas são rectangulares, que se podem associar em fila ou isoladas. As redondas limitam as escolhas. Era bom que pudesses dar um salto à Junta para nos orientarmos melhor. E como já ficou decidido servir em bufete serão necessárias mais umas mesas, que se colocarão corridas dando um lado para o serviço e deixando o outro para os convidados se abastecerem. Isso deve corresponder a uns oito a dez metros e mais uns oito na retaguarda.

Não nos lembramos das instalações sanitárias. Tens alguma ideia? Nem que seja para lavarem as mãos! Não creio que tenhas tempo de encomendar uma instalação nova, com trabalho de pedreiros e canalizadores, mais electicista. A propósito,diz-me como correu a conversa com o chefe dos serviços da Junta.

Tenho que voltar à Vila para deixar as indicações de funcionamento dos salões e, também, para ver se temos que tratar de toalhas para as mesas e talheres, copos e outros utensílios. Caso a Dona Gertrudes da Caleche não disponha do total de peças de faqueiro, vidros, loiças e atoalhados, combinarei que se comprem, a nosso encargo e para ficar de reserva na mansão. Só faltará decidir se vou eu às compras, se a Gertrudes que ser ela, ou se vamos “ambas as duas”

Para os cafés já está contratada uma cimbalino profissional, e e equipamento de cozinha. Tudo sob a orientação directa da dita Gertrudes, popularmente “Trudes”.

Creio que temos que aceitar a proposta da Caleche quanto aos doces e frutas de sobremesa. Tinha pensado encomendar numa pastelaria profissional, mas nem sequer me atrevi a referir esta ideia à Gertrudes, com receio de que se melindrasse. Não nos convêm nada que a senhora se ofenda. Por isso é pertinente andarmos sempre com muito cuidado. Com pés de chumbo, como usavam os mergulhadores não autónomos.

Pois eu digo que esta trapalhada em que me meti nos deixa estafados. O corpo pede uma folga. Ir até Coimbra e entrar num teatro ou num cinema, mas teremos que aguardar a que passe este temporal em que nos meteste.

Deves estar com a boca seca de tanto falar, e o telefone já está ao rubro, coitado. Eu já mudei três vezes de ouvido. Ah Ah Ah. Mas vamos ao que interessa. O capitão dos faíscas prontificou-se a dar a ajuda que pudesse ser possível; mas não tem muito pessoal disponível nesta altura. Já vi por onde orientava o seu choradinho. Por isso levei a conversa por onde ele queria e ficamos com que amanhã, ou mesmo esta tarde, viria comum oficial da sua equipa para verem o que é necessário fazer, nem que seja a título provisório. E eu acrescentei que comprassem o material necessário, em meu nome e me indicassem em que armazém teria que me dirigir para fazer contas, e também que seria óptimo que entre o chefe e o oficial pudessem contratar, para esta mini-empreitada os homens que entendessem ser necessários, atendendo a que não poderia ser feito com a calma aconselhável, mas mesmo assim cumprindo as regras do bem fazer.

A tua mais recente, e pertinente, lembrança de ter que dispor de uma instalação, dupla, de lavagem e despejos de bexiga, e não só mesmo que mínimos será coisa de perguntar a opinião deste chefe e do Ernesto, pois não posso ter este feitor posto de lado. Sei que na adega existe uma casa de banho, rudimentar, que poderá servir de base para a ampliação. E tanto loiças como portas já se encontram com facilidade, faltam as paredes e mais muitos outros trabalhos. ISTO VAI DAR CABO DE MIM E DE TI.

Seguirá no capítulo XXXVII, se tiver vida e espírito disponível.

domingo, 15 de abril de 2018

CRÓNICAS DO VALE – Cap. 35


Fofoquices

Enquanto jantamos não é de bom tom falar de trabalho, e menos de problemas, pois faz mal à digestão. E se não faz, acreditemos em que é preferível guardar estes assuntos para depois. E eu prometi que daria uns exemplos das intimidades que as mulheres , nem todas é verdade, mas muitas gostam de sacudir na janela, como quem diz. Por vezes se escondem com um “diz-se por aí”, “não sei de quem se trata” e outras tácticas de disfarce tão pueris que ninguém duvida que as conhece em primeira mão.

Uma história aparentemente incrível, mas que mais tarde fiquei a saber que é mais frequente do que os bem intencionado imaginamos, foi-me contada, em privado, sem que mais ninguém ouvisse, por uma senhora muito respeitável, bem na casa dos 50 para 60, que me chamou de parte a fim de desabafar de algo que lhe pesava tanto na sua cabeça que sentia a necessidade de contar a outra pessoa, mas que fosse de confiança. Via-se bem que o assunto lhe era penoso, tão pesado que chegava a dar pena, e mais quando vi que os seus olhos se tornaram rasos de lágrimas, mesmo que ela conseguisse que não derramassem em cascata.

Disse-me ela que durante décadas aguentou a cruz por um habito do seu marido, cavalheiro que certamente eu conhecia de vista e que tinha todo o aspecto de ser uma pessoa de respeito. De estatura acima da média, sempre impecável, com boa figura e extremamente educado com os conhecidos e vizinhos com quem se cruzava.

Pois a sofredora esposa me informou que mal o marido chegava a casa, depois de largar o emprego na cidade, onde mantinha uma posição de topo hierárquico, mudava de roupa e, servindo-se do enxoval pessoal que tinha num roupeiro e numa cómoda, vestia-se, de cima a abaixo de mulher, incluindo a roupa interior, que era sempre vistosa e cara, de marcas de nomeada. Maquilhava-se a preceito e usava uma das várias perucas que guardava em cabeças de manequim, das que se podem ver nalguns cabeleireiros.

Mas jamais saia de casa com este preparo. A não ser que tivesse um outro ninho onde mudar de roupa, reservava esta dupla personalidade a mim. Por sorte não tiveram filhos! Um dia, em que não podia ficar silenciosa, engolindo a vergonha, e se lamentou desta situação, lhe respondeu que ela era feliz na sua santa ignorância pois que havia um grande número de indivíduos com este hábito. Que havia clubes. Que comunicavam entre si e conheciam-se por contactos de telefone e mais recentemente pela tal Internet. Algumas vezes reuniam-se com a desculpa de participarem em congressos ou reuniões profissionais.

Depois de desabafar a boa senhora suspirou, como se tivesse afastado um fardo das suas costas. Pediu-me sigilo e nos separamos com um afectuoso abraço. Tu és a primeira pessoa a quem refiro esta confissão. Mas não te esclareço de quem se trata, por respeito ao sofrimento de uma senhora esposa.

Outra história, que corria no salão de Aveiro era de uma desavergonhada, com boa figura, sempre bem vestida e pintada de loiro, que se vangloriava de que tendo o marido embarcado num grande navio de cruzeiros turísticos, não sei se inglês ou americano, mas certamente que navegando com bandeira de conveniência, passava longos períodos de tempo no mar, sem vir a casa.

E uma mulher, em bom estado e ardente como dizia dela mesma, não podia ficar sem ser atendida eternamente. Daí que tinha sempre um galã no activo, que se encarregava de a servir ao longo do dia. Quando o marido avisava que iria chegar, carregado de prendas, ela dava folga ao querido e tratava de apertar a sua crica.

O método que ela dizia lhe dava resultado consistia em moer um bocado de vidro, fosse de copo ou garrafa, no almofariz até ficar num pó quase impalpável, como o pó de talco. Depois misturava duas colheres deste pó num litro de água fervida e dava uma lavagem no seu interior. Era milagrosa esta receita.

E mais outra história. Bastante diferente, mas que também mete sexo duro e clandestino. Foi-me relatada de forma “sigilosa”, mas de tal modo clara e perceptível que até uma criança do primeiro ciclo era capaz de deduzir de quem se trata. Uma senhora, bonitona, com uns 30 e tal anos, casada com um político local, bem instalado na hierarquia, e que deve ter, pelo menos, uns vinte e tal anos , se não trinta, mais de idade do que ela. Aconteceu aquilo que se diz que é dos livros. Mas em grau superlativo, pois afirmam que toda a gente sabe ela ser insaciável nos afazeres de cama. Que mantêm contactos de primeiro grau com vários malandros que se dedicam às mulheres casadas.

O mais notável nesta história é que os encontros tem lugar na casa do casal, e daí que se diga que o marido é corno convivente. Chegam a relatar que sabe-se que a esposa, fiel como a balança da justiça, quando espera visita coloca um sinal no cortinado da sala que é visível da rua. Dizem que é um lenço de seda vermelha ou uma lâmpada, também vermelha, caso for de noite. Assim o esposo não entra e vai dar uma volta, sob os olhares indiscretos da vizinhança, que tanto gostam destas notícias. Quem são os membros deste casal? Como dizia a empregada da limpeza “é na sei!”

Continuará no Cap. XXXVI

sábado, 14 de abril de 2018

CRÓNICAS DO VALE – Cap. 34




. Finalmente estamos outra vez cara-a-cara e poderemos contar das nossas tentativas de arrumar os problemas que nos pressionavam. Se não te importas farei um resumo, mas explícito, do que consegui arrumar.

- A seguir teve lugar umaconversa particular com a Dona Gertrudes da Caleche.  . Pedi que se sentasse connosco e expus o sarilho em que nos metemos. Foi, como sempre tem sido e previa para este caso, muito atenciosa e prestável. Não tive necessidade de pedir nada, pois avançou com a proposta de tomar conta das comidas e fechar o seu restaurante aquele sábado. FORMIDÁVEL. Irá todo pessoal da Caleche até a adega da mansão Maragato.

Practicamente lhe dei carta com total liberdade para que decidisse a ementa, mas ela entendeu, e bem, que mesmo assim era bom fazer um esquema ali mesmo. Ficamos com que os que fossem chegando seriam atendidos com uns aperitivos, uns populares e outros mais “da alta”, acompanhados de um verde leve e fresco ou refrescos sem álcool, segundo quisessem. Nada de Porto, que está um pouco posto de lado pelos nacionais ultimamente, a não ser um Porto branco seco, bem gelado. Se tu quiseres fazer um brilharete juntamos umas garrafas de Raposeira bruto.

Já tinha dito, antes desta formidável proposta, que se calhar, em vez de os comensais terem que esperar a serem servidos e porque não era possível ter um empregado para cada pessoa, como nos banquetes do Palácio de Belém, opinei que se fornecesse em auto-serviço, e assim cada um escolhia aquilo que lhe enchia os olhos. Ficou assim decidido.

Sem te perguntar já decidi que não teríamos lugares marcados, para não fazer separações nem indiciar preferências. Enquanto tomam o aperitivo irão encaixando e preparando os grupos a seu modo.

Sinceramente não sei porque motivo as pessoas se mostram tão cooperadoras contigo, ou até comigo, mas quando lhe perguntei a quem deveria pedir orçamento para reforço de equipamento de cozinha, tal como fogões, frigoríficos, etc, a Dona Gertrudes levantou a mão e disse que, tendo ela muita experiência no ramo, se encarregaria de contratar todo o equipamento necessário, e que o colocariam na adega na sexta feira.

Também ela se encarregaria de abastecer de matérias primas para a cozinha. As bebidas é que teriam que ser a nosso cargo.

Fiquei atrapalhada, apesar de muito aliviado de problemas. O mínimo que me ocorreu, para não ficar como uma abusadora sem vergonha, foi deixar na mão da Dona Gertrudes um cheque dos meus, com um montante considerável, a fim de constituir um sinal tranquilizador. Já sabemos que desde que os fenícios inventaram a moeda, segundo reza na história o dinheiro é um bom argumento para mostrar agradecimento.

E creio que, assim de repente, é tudo. Agora, entre outras coisas, é preciso que telefone ao Óscar e saber se falaste com os teus filhos, e advogados coimbrões.

Já temia que não me deixasses entrar nos NOSSOS assuntos, pois conheço bem a tendência das senhoras em se tornar donas exclusivas dos assuntos caseiros (e não só!) O destaque com Nossos não foi casual.

. Bem. O mais importante das minhas andanças foi o programa de tentar deixar minimamente decente a adega. O Ernesto creio que ficou ciente do que lhe pedi. Em princípio estou descansado.

Depois fui à junta para ver se conseguia uma orientação para melhorar a instalação eléctrica da mesma adega. Parece que amanhã terei a comparência do chefe das oficinas e verei o que me aconselha. Também consegui, sem o pedir, mas insinuei como um pedinte envergonhado, mesas e cadeiras do armazém da Junta. Mas só depois de termos o total de presenças, e pensar em mais uns oito a dez que chegassem ser se anunciar, e que poderei pedir o mobiliário que me ofereceu o Medeiros.

Não tenho apontamentos, mas ao jantar e com as tuas dicas sei que mais temas surgirão. Estou esperando por isso, mas antes um banho saberá divinamente. E com certeza que me acompanharás. Assim espero.

- Pois vamos ao banho. Antes te posso avançar que trago algumas fofoquices que soube na Vila. Certamente sabes que nos cabeleireiros as mulheres daí rédea solta ás intimidades, próprias e alheias. Dizem que, quando fora de testemunhas masculinas, são piores do que os homens.

Continuará no Cap. XXXV, onde surgirão relatos picantes.

sexta-feira, 13 de abril de 2018

CRÓNICAS DO VALE – Cap. 33




- José, por donde andas? Eu estou quase de regresso para o Vale e tratei de bastantes coisas. O assunto vai adiantando. Com sossego os temas vão-se compondo. Já estive nos dois salões da Vila, mas terei que te explicar com pormenor. Também fomos às compras de não perecíveis, e agora, a Dona Idalina e eu, mais as duas encarregadas, entraremos para almoçar na Caleche, que é o nome do restaurante típico onde comemos com o Medeiros. Quero sondar umas hipóteses com a dona, a senhora Gertrudes, pois além de a conhecer de outras alturas sempre me pareceu pessoa honesta e de confiança. Até logo. Uma beijoca.

- Estava admirado por não teres telefonado; mas também pensei que andasses atarefada com os capítulos que te atribuíste, e que agradeço a tua ajuda, preciosa. Eu já falei com o Ernesto, e ele me dará a sua lista amanhã de manhã. Entramos na adega. Aquilo é grande que chegue, mas implica bastante trabalho de limpeza e arrumações, além de que, como tu pensaste, vai ser imprescindível, além da limpeza, dar uma caiação geral. O Ernesto toma conta destas duas empreitadas, mas, vai precisar da ajuda de mais um ou dois homens, que ele mesmo escolherá. Daqui a pouco vou cair na Junta para falar como Medeiros, em especial para lhe pedir opinião,ou ajuda, quanto ao reforço de potencia na adega, pois que ali há umas miseráveis lâmpadas penduradas que, à noite devem fazer ver fantasmas e blisómens, como dizem os do campo

À noite telefonarei aos meus filhos, para marcar presença e lhes falar no almoço popular. Se eles quiserem aparecer, sem que isso os dispense da tal prevista reunião familiar, teremos muito gosto de que nos acompanhem, mas nada de obrigação. Entendes? E tu, deves ir tentando falar com o teu irmão Óscar.

- Amigo Medeiros, pode atender-me como Presidente da Junta?

- Com certeza, Amigo Maragato e em primeiro lugar como pessoa amiga que é, depois, também como Presidente da Junta naquilo que lhe puder ser útil. Para si, esta porta admito que estará sempre aberta.

- Obrigado e uma bacalhauzada de cumprimento.

- Já tenho aqui uma minuta como nome dos que me acompanharão; só tive que inserir mais um por causa dos melindres. Trata-se do chefe das oficinas, um tal Camilo Pereira, que é homem que se sente muito importante e é, pois dele depende o funcionamento de muitos sectores imprescindíveis. O pessoal da ferrugem e das faíscas são bastante ciosos das suas capacidades.

- Foi bom o Medeiros ter-se lembrado a tempo, pois aquilo para que lhe venho a pedir orientação pode ser que vá tocar nos serviços deste seu funcionário, que provavelmente é mais antigo na casa do que o próprio Medeiros. Acontece que depois de analisar os múltiplos capítulos que é necessário decidir e afinar, além de que recordando que situação na origem esta a promessa de uma adiafa como complemento compensatório ao que paguei pelo trabalho de limpeza da mata, nós, o casal, concordamos em que se o almoço de convívio se pudesse fazer no nosso terreno era muito simpático.

E creio que já lhe falei na hipótese de aproveitar a antiga adega, que por ora está practicamente inactiva, mas não totalmente vazia. Hoje mesmo estive no interior, mais o nosso feitor, e combinamos a necessidade de fazer uma forte limpeza geral, uma arrumação das alfaias, deitar fora o que não servir para nada, nem para se mostrar como antiguidade, e darem uma caiação geral. Como imagina há trabalho para uma equipa de esforçados trabalhadores. O feitor se encarrega de organizar este pequeno exército.

E, em complemento, pensamos em que não podemos confiar no facto de que os dias já estão mais longos. Todos sabemos que depois de um repasto agradável -que esperamos seja- as conversas são sempre demoradas e não é de bom tom abrir a porta e dar a entender que queremos que o pessoal se despache para a sua vida. Não se pode convidar ninguém com prazo certo; não é um contrato de trabalho. Posto isso temos que garantir uma iluminação capaz, e até o ter potência para um bom frigorífico, mais uma arca de refrigeração, uma máquina de café quase profissional e um par de micro-ondas se forem necessários. Tudo isso tem que funcionar com garantia de que a rede da adega aguenta o consumo, ou a carga sendo mais correcto.

E para nos precaver, antes de procurar um especialista na Vila ou em Aveiro, pode ser de boa política pedir a opinião do vosso Camilo Pereira, se a si lhe parecer bem. Se este senhor estiver disponível, amanhã a uma hora que ele determinar, gostosamente o viria procurar e o acompanharia ao local “do crime”. Nada de confundir com o crime do já identificado desgraçado.

- Meu caro amigo, isto é mais do que normal. Vou já ligar para as oficinas e veremos se podemos contar como Pereira. Mas antes de que o Maragato siga para os seus pequenos ou grandes afazeres derivados da sua prometida adiafa. Caso seja esta a primeira vez em que se meteu a organizar um ágape para bastantes comensais, já deve estar vendo que está metido numa camisa de onze varas.

- É precisamente o que dizemos um ao outro, lá em casa.

- Por isso quero perguntar-lhe se, por acaso, tem mobiliário, digamos mesas e cadeiras, suficientes para sentar a tropa toda, pois se for necessário teremos muito prazer em ceder algum do equipamento que temos em armazém, que nos tem servido para mobilar o pavilhão em ocasiões semelhantes.

- O Amigo Medeiros parece que adivinha. A Isabel e eu já pensamos em se deveríamos alugar mobiliário a uma destas agências que preparam casamentos. Mas, segundo nos informaram estes empresários querem todo o serviços completo, até propõem erguer uma tenda! Acontece que a Isabel prefere encarregar-se pessoalmente da ementa de comes e bebes, sem depender de estranhos, e de encomendar, por separado, os serviços pontuais para os que não temos habilitações nem equipamento. Logo que fale com ela, e saibamos o total de presenças procurarei o amigo Medeiros e se for factível possivelmente aceitarei a sua oferta.

Continuará no Capítulo XXXIV