sábado, 31 de março de 2018

CRÓNICAS DO VALE - Capítulo 23


Já dispostos a comer e pouco falar.

Continuo envergonhada pela atitude que tomei enquanto o caminho entre a estação e o restaurante. Fui estúpida, atrevida e fora do senso, sumamente atrevida e fora de senso. Um verdadeiro e indesculpável desastre. Dos três que me calharam neste sorteio, nem um, nem sequer o Zé, mordeu o anzol. E ao longo do almoço os únicos comentários ficaram restritos à qualidade da comida, a oferecer uma partilha e, sensatamente confesso, naquele nível de falsa confiança que colocamos nas conversas entre estranhos. Pode-se afirmar, sem contraditório, que nesta mesa só tem coisas em comum o pai e os filhos. Eu sou, de facto, uma penetra, que entrei por via uterina. A cara não me caiu de vergonha porque está bem agarrada ao corpo. Se fosse uma caraça já estaria pisada e repisada debaixo da mesa.- 

- Meninos, e Isabel, tenho que comunicar que não consigo meter mais nada -por enquanto- pela goela abaixo. O arroz com bife estava tão bom que não recordo jamais ter sido servido com a mesma qualidade. A vossa escolha de local, quanto a mim, não podia ser melhor.

- Em meu nome e da Luísa sentimos sumamente agradados por saber que vos, orientamos satisfatoriamente. Não é, mana? E a Isabel, que só petiscou uns retalhos das nossas travessas, qual é a sua sentença.

Comecei ajudando a Luísa na sua guerra contra aquela enorme cabeça de garoupa. Em verdade, a cabeça trazia agarrada uma boa posta do cachaço. E vi que as duas gostamos daquele petisco que fica nas bochechas do peixe. Isto não obstou a que, mais os acompanhamentos, em especial referir uns grelos que devem ter vindo de bem longe, pelo tenros e saborosos, e umas batatas certamente nacionais, ficamos ambas demasiado recheadas. E digo isso por mim, sem antes ter pedido opinião à Luísa. Tenho que apresentar um pedido de desculpa ao Bruno por não ter partilhado devidamente da sua travessa. Mas não me cabia mais nada.

Já que falam de mim, além de confirmar da frescura, cozedura e acompanhamentos da cabeça de peixe, sinto-me na obrigação de referir a qualidade do azeite. São poucos os locais onde este condimento, tão importante e que tão de boa qualidade se produz neste país, igualem a selecção que hoje nos colocaram na mesa. É um daqueles azeites que, pingado sobre uma tosta, fazem um bom aperitivo antes da refeição.

Parece que nem sequer estive na mesa. Deixam-me para o fim, e não consegui arranjar quem me ajudasse a consumir o que vinha na travessa. Paciência. Estive quase disposto a pedir que me preparassem uma lancheira para levar para casa. Mas tive vergonha e também pensei, como apareço agarrando um saco no bufete?

- Então,o capitão do batalhão, comprovando que a tropa está satisfeita e sem baixas, decide que devemos pensar na sobremesa e no café. Eu abro as hostilidades pedindo uma mousse de manga, que vi no balcão quando fui lavar as mãos. Prefiro o sabor desta fruta tropical ao do chocolate, sem desmerecer desta, que antevejo também ser de produção própria, e esmerada. E fecho com uma bica cheia e quentinha.

- Sou da geração do capitão. mas um pouco mais nova, como pertence nos casais. A minha contribuição é, com boa vontade de acompanhar, e com esforço, uma salada de frutas frescas, sem aditivos nem açúcar. E, claro, também alinho numa bica cheia, que no Porto seria um cimbalino.

Acompanho, em tudo à Isabel, nova integrante oficial do pelotão -e já era tempo disso, pois o pai não devia passar as noites de inverno sem uma companhia em condições- Ou seja, salada de frutas e café, bem cheio.

E eu fecho a encomenda, com uma dose de torta de laranja e café. Sem charuto nem sequer um triste cigarro de pacote, sem referir a cigarrilha que sabe tão bem. A lei manda e o cidadão, respeitoso à força, obedece.

- Já chegou o café e também o saco com a metade do que vinha na travessa do Bruno. Foi uma gentileza do dono, ou da casa se preferirem. Não podes desprezar este cuidado. E agora, atendendo que tivemos o desplante de vir incomodar num dia de trabalho dou autorização aos dois elementos com vida profissional activa que, depois de beber o seu cafezito, partam para os respectivos compromissos. A contabilidade, como habitualmente, fica ao encargo do velho. É uma prerrogativa que a idade nos oferece.

Não ponham cara de que desejam continuar com estas duas jarras. Luísa deves ter tarefas importantes na tua mesa. O ser assistente da cadeira não é coisa só honorífica, tens responsabilidades, e os pais não podemos impedir o trabalho dos filhos. Tu, Bruno, tens que comparecer no bufete onde te aceitaram devido ao teu currículo académico. Mesmo que não exista um horário rígido não te podes baldar sem mais nem menos.

Ficaram muitos assuntos por falar entre nós. E nem todos se devem comentar ao longo de uma refeição. Temos que coordenar as nossas disponibilidades, de preferência num fim-de-semana ou num destes feriados com ponte que são de tanto agrado da população em geral. Combinem entre os dois e digam-nos do que decidiram. Nós somos donos de nós mesmos, e todos os dias são bons.
E agora, beijinhos e abraços. Creio que estamos todos satisfeitos deste encontro. Sigam. A nossa bagagem está toda neste saco de viagem, bem pequeno, e ainda não decidimos se regressamos a Coimbra ou procuraremos um hotel onde descansar.

Adeus e até breve!

Felizmente o ambiente entrou numa acalmia que não esperava, pois que a minha entrada, e repito, foi desastrosa. O ser impulsiva empurra-me a não ponderar as consequências. Julgo que todos ficamos a ganhar, ou pelo menos “bem na fotografia”.

sexta-feira, 30 de março de 2018

CRÓNICAS DO VALE - Capítulo 22

NOTA PRÉVIA - A partir deste capítulo abandonamos o título inicial de O FESTIVAL, pois que se nos primeiros capítulos estava previsto atender uma solicitação do Presidente da Junta de Vale do Rio
quando o tema tropeçou com pressões oficiais, e, por se fosse pouco, surgiu um cadáver nos terrenos do protagonista, tudo mudou de rumo. Espero a vossa indulgencia e compreensão.

Chegamos ao restaurate

Mudos como túmulos. Parece que, subitamente, os quatro membros da equipa foram atacados de um vírus que os petrificou. Pelo menos nas cordas vocais.

- Então Bruno, conheces este sitio? E recomendas?

- Dadas as condições que o pai nos colocou, a Luísa e eu, não duvidamos de que este era o local indicado. Nós, que já repastamos neste local anteriormente, apostamos em que vai ficar satisfeito.

- Sendo assim entremos e, sendo conhecido da casa, pede uma mesa sossegada, para poder falar à vontade .

- Boa tarde Senhor Camilo. Ainda chegamos a tempo de pedir?

- Boa noite doutores e sua companhia. Gosto em os ver. Os atenderei pessoalmente e se me perguntarem o que recomendo garanto que não serão aqueles pratos que convém à casa, como em geral se faz.

Estamos batidos nestas sugestões. E mesmo assim, quando temos pressa caímos na tentação de perguntar no que está pronto a servir. Mas hoje queremos escolher, se bem que contaremos com a sua proverbial colaboração.

Para já distribuo a ementa e podem ir lendo. Se tiverem alguma dúvida não se acanhem de me fazer sinal.

.

Isabel, já encontraste o que te parece ser do teu gosto?

Se queres que te diga com sinceridade (um bocadinho amanhada) não enjoei na viagem, mas mesmo assim sinto-me um pouco agoniada. E não estou de esperanças! Para ter meios irmãos já bastou comigo. Respondendo directamente depende do fartas que sejam as travessas, caso não venham com os pratos servidos desde o balcão. E se alguém dos presentes quiser fazer uma vaquinha... Dito de outra maneira: esperarei pelo vosso jogo.

Pensou bem a Isabel. Aqui servem em travessa e até em excesso. Eu vou pedir o cabrito no forno,com os acompanhamentos habituais. E se a Isabel quiser petiscar, chegará para os dois.

- Obrigada Bruno.

Pois eu, que apesar do ginásio, tenho que ter cuidado com a boca, que descarrega tudo nas ancas. Vou avançar para a cabeça de garoupa cozida com legumes. E também posso oferecer parte à Isabel se preferir.

Também agradeço Luísa. Isto vai ser parecido como quando com o vosso pai comemos fora e constantemente saltam bocados de um prato para o outro.

- E Bruno, que pedes?

- Já tinha dito antes dos outros, e mantenho a escolha, meia dose de cabrito no forno, que depois tenho que trabalhar e se comer em excesso fico com sono. Além de que, com moderação, beberei um pouco daquele tinto especial.

Sou o último a deitar trunfo à mesa. Mas quero pedir opinião ao dono. Este rosbife é garantido? E traz os acompanhamentos certos ou fica-se pelo arroz e um bife à casa?

Esta graça é nova, para mim. E de facto é um trocadilho à portuguesa. Gostei. E respondendo direi que a carne é de vitela barrosã, enviada directamente da região transmontana. Vai ficar satisfeito. E já agora, atrevo-me, por os ver conversar sem preceitos esquisitos, são familiares seus?

É o meu pai e a esposa, que não é a minha mãe, pois ficamos sem ela ainda muito novos.

Desculpem o atrevimento. Vou já direito à cozinha, e enquanto os pratos não cheguem vou mandar umas reduzidas entradas para petiscarem.

Tudo bem, mas não exagere nas quantidades pois mesmo os jovens já não tem o apetite da adolescência. E, já me esquecia, se algum prato ficar pronto antes que os restantes, pode servir, pois nós nos roubaremos uns aos outros, como bons familiares sem preconceitos.

- Pai, queria que me contasses da situação do problema com aquele cadáver que plantaram no nosso terreno. A julgar pelo seu tom de voz quando falamos disso pela última vez, fiquei com a impressão de que receava uma tentativa de lhe pendurarem este crime. E tenho a certeza de que jamais cometeria tal loucura, e menos a falta de senso no que tocava a fazer desaparecer o corpo do delito.

Pouca coisa posso acrescentar. Os advogados de Coimbra, que são o meu apoio habitual, tem conhecimentos na Judiciária; digamos que pela porta do cavalo. E as últimas notícias, como se previa, é que neste assunto parece que estão implicados muitas personagens importantes. Nada interessadas em que os seus nomes apareçam nos tablóides. O que se prevê é que tudo vá entrando em marcha muito lenta e que, no pior dos casos, se não arquivarem o processo, procurem um desgraçado a quem lhe pendurem o crime. 

Temos que entender que os rapazes da Judiciária sofrem pressões, e que desta vez são múltiplas e de altura. Podem estar habituados a pedidos e cunhas, mas desta vez a coisa fia com muito cuidado. Dizem-me que fique tranquilo, mas estes organismos nunca são de fiar.

- Mas chegou a altura de trincar algumas destas coisinhas que o dono nos enviou para entreter, Os pratos podem demorar uns minutos; entre um quarto e meia hora, pois não me pareceu que nos impinjam comida requentada. 


Bem me parecia ainda no carro. Educados sim, mas não sou do seu meio e entre pai e filhos farão a festa. O mais conveniente é não meter a colher; sorrir e acenar com a cabeça enquanto estivermos juntos. Felizmente não deram saída às minhas tentativas de “entrar a matar”.

quarta-feira, 28 de março de 2018

CRÓNICAS DO VALE Capítulo 21



Isabel, tem calma!

Agora que parei “para respirar” verifico de que o resto dos passageiros se mantêm mudos e quedos. Isto leva-me a pensar que entrei com excessiva vontade de gerar confiança e que eles são ovos de outro ninho. Que as suas vidas, apesar de mais curtas do que a minha, pois são bastante mais novos, tem seguido percursos muitíssimo diferentes do meu. Estou aborrecida comigo mesma. Fui burra sem desculpa, e tanto à vontade quis mostrar que os afastei, possivelmente por uma boa, ou mais concretamente má, temporada.

Tenho idade e experiência mais do que suficiente para saber que nem todas as pessoas aceitam, instintivamente, descer dos seus pedestrais. Os enteados que nos acompanham são ambos possuidores de cursos superiores e eu, sem me envergonhar, criei o meu mundo, a partir do quinto ano do liceu, lavando cabeças num cabeleireira de vão de escada e ir galgando degraus com o meu esforço e interesse.

Estou ciente, farta de saber como se diz, que aquilo que estudamos e que tínhamos que provar saber em exames, fosse na quarta classe, no segundo ou no quinto ano do liceu, que foi onde eu parei, hoje, que é o tempo dos doutores, ou falsos doutores, são desprezados aqueles que ficaram nas bases. Adquiriram uns conhecimentos que hoje são vistos como sem préstimo. O que não esconde que se podem encontrar jovens, já com o primeiro e até segundo ciclo actuais, que se descontarmos o domínio que têm na manipulação de telemóveis, tablets e computadores, a sua bagagem de cultura geral é muito inferior à que nos era fornecida anteriormente, inclusive no nível da primária.

Todos tivemos oportunidades de conhecer chefes de repartições cujo diploma de estudos era do quinto ano. Hoje são todos doutores, ou pelo menos exigem ser tratados com esta categoria. Por isso o meu comportamento foi muito atrevido e excessivamente descontraído. Entusiasmada com o encontro esqueci que as mudanças sociais por vezes são menos profundas do que imaginamos. Que a democracia social ainda não cristalizou. Como podia pensar, se pensasse, que de repente iríamos comer todos do mesmo prato, eu e aqueles doutores?

De facto sou mesmo burra e nem sequer aplico as regras que imponho nos meus estabelecimentos. Se as empregadas, e também eu, damos o tratamento de doutoras a troche-moche, e raramente a dama cameliada avisa que não tem este canudo. Ou, em substituição, tratamos muitas parolas endinheiradas por madama, vou eu e penso que, sendo uma madrasta recente, posso entrar no seio destas pessoas. Se as coisas correrem bem será preciso aguardar algum tempo.

Portanto, Isabel, vamos ter calma e atribui o teu silêncio a uma pontada de ar que apanhaste na janela aberta quando te sentias afogueada.

segunda-feira, 26 de março de 2018

CRÓNICAS DO VALE - CAPÍTULO 20

Chegamos a Lisboa

- Nem sempre as coisas funcionam mal no “pequenino” Portugal, para não dizer portugalito porque é um termo mais depreciativo do que jocoso. O comboio pode-se dizer que está cumprindo o horário e dentro de momentos terei os filhos ao lado. Já tinha saudades deles, e tu vais ser apresentada formalmente, mesmo que eles já saibam da tua existência. Cá estão eles, ambos sorridentes.

- Deixem que vos abrace. Primeiro a Luísa,apesar de ser a mais nova, mas o seu sexo lhe aufere prioridades indiscutíveis. Como está, minha filhota?

- Como podem ver estou em forma. Ando quando não estou apertada de tempo e sempre consigo encontrar uma pausa para ir ao ginásio, onde não quis ter dia nem hora certa. E tu, paizinho, como sempre te nomeei quando criança, tampouco te vejo mal, e menos se atender à idade. Esta senhora que te acompanha deve ser a Isabel, minha madrasta, que por sinal não mete medo.

- Venha um abraço e uns beijos, “mamá” Isabel. O José Maragato é muito mau de aturar? Imagino que dirá que nem por isso. Que outra coisa seria possível que dissesse numa altura como esta? Lá chegará a altura em que existirá mais confiança. A minha mãe, que eu recorde, só se queixava das ausências do marido, que ele tentava justificar como sendo devidas a negócios sigilosos. Certamente que um eufemismo para não os chamar de escuros, se bem que quando fui crescendo e apanhando uma palavra aqui e outra acolá fiquei com a convicção de que ali aconteciam coisas um pouco fora das linhas.

- Luisinha! E se parasses de falar? Sempre foste uma gralha sem travão na língua. Apanhaste a Isabel em exclusiva e nos deixaste, a mim e ao Bruno, pendurados, como se fossemos moços de fretes, que por sinal parece que deixaram de existir.

- Como podem verificar o vosso pai é especialista em fazer calar, menos aos mortos. Dito isto vejo que este homem, feito e direito, é o meu recente enteado Bruno. Alto! Não me estendas a mão, que não mordo nem ofereço maças envenenadas! Quero um chi-coração de menino, mesmo que estejam longe os tempos de meninice, e uns beijinhos faciais para dar uma entrada simpática nesta vossa família.

E tenho que vos avisar de que estou muito curiosa por saber tudo, tudo, mesmo tudo, das vossas vidas e aventuras. Se não for hoje, será noutro dia, nem que eu tenha que vir a Lisboa de propósito para vos puxar da língua. Não se riam, que isto é coisa séria, pois que o vosso paizinho, quando quer, e é quase a todo momento, é muito calado, um túmulo egípcio! E vos garanto que destes seus descendentes -não sei, nem quero saber, se tem outras ninhadas por aí- tenho poucos elementos para conseguir retratos idóneos. É pá, esta tirada saiu catita. Não vos pareceu?

- Já que se apresentaram e como não enjoamos na viagem, que decorreu sem descarrilamentos nem choques com outras composições, creio eu, como chefe de Clã, que é o momento de nos dirigir para um local, que vocês dois já devem ter decidido, onde se possa tomar um ligeiro repasto, devidamente sentados e sem muito barulho ambiental. Mas! Atenção! Recordo que avisei que não estava pelos ajustes de me meterem num Avillez ou semelhante. Somos de hábitos antigos e apreciamos a boa mesa, mas clássica. E agora Bruno, agarra-te ao leme e leva-nos a bom porto. Entretanto ligarei para o hotel confirmando que estamos na cidade, mas que não sei a que horas daremos entrada.

- Suponho que sou tão faladora quanto a Luísa, e já vi que podemos confiar nas dotes de condução segura do Bruno, pelo que me atrevo a sugerir que podemos dialogar enquanto ele nos leva à certa. E dou a palavra à minha filha, recém aperfilhada mas já bem crescida. Conta-me o que tens feito até agora e o que imaginas que será o teu caminho daqui em diante. Depois interrogarei o Bruno, sempre aplicando as artes de fazer falar que treinei enquanto exercia a pouco nobre profissão de cabeleireira, e depois como empresária de salões de beleza. Por enquanto são dois, e bem afreguesados.


sábado, 24 de março de 2018

CRÓNICAS DO VALE - Capítulo 19



- Isabel, há um tema que não temos comentado, ou muito ao de leve. Eu porque entendi que ao não te referires a ele era, sem dúvida, porque preferias que ficasse na sombra e tu, se não errei, precisamente não te sentias com vontade de tratar de tal assunto.
Dias atrás contaste como, ficaste sem pai após saberem que ele tinha falecido “ao serviço da Pátria”, em Timor. Uma qualificação solene dos factos que pouco contribui ao bem estar de uma viúva e de uma criança de tenra idade. Referiste que andaste na escola, mas pouco mais sei desta tua juventude. Não é que seja excessivamente curioso, mas após estarmos casados a convivência entre os dois entendo que deve ficar noutro patamar, mais abrangente, mais comum. Estás de acordo?
- Disse, se não me falha a memória, que a minha tia Fernanda, irmã do meu pai, sabedora do aperto que existia na casa dos meus pais e irmãos, se ofereceu a nos dar guarida na casa de habitação que ficava no andar acima da farmácia. Que era o modo de vida do casal. pois que o marido, então tio Ricardo, tinha habilitações, com diploma, para ser responsável, e dono da botica, onde a tia após ser treinada por ele passou a ser uma ajudante. Entre os dois atendiam a clientela, mas sempre com a responsabilidade do titular.
Poucos dias depois da nossa chegada; provavelmente no dia seguinte ou no outro, pois vimos que a tia trazia o esquema bem estudado, popós ao marido que a minha mãe poderia vir a ser de muita utilidade ajudando no atendimento, pelo menos nos dias de mercado, se bem que a afluência de pessoas, consoante mais gente se radicava nas redondezas, ia em aumento. Também deixaria de se sentir um peso morto, um carrego, para a irmã e marido. E assim aconteceu. As duas irmãs completavam-se e revezavam-se em harmonia.
Decorridos uns três anos da nossa estadia na casa da tia Fernanda, aconteceu uma desgraça que nos apanhou de surpresa. A tia foi para Aveiro, com o propósito de fazer umas compras, combinar de um vestido numa modista e ainda tratar de papelada nalguma repartição oficial. Passadas umas horas da GNR telefonaram para a farmácia com a notícia de que a tia tinha tido um acidente grave, muito grave, na linha do caminho de ferro. De facto viemos a saber que tinha tido morte instantânea; que ficou esquartejada e que as testemunhas afirmavam que não foi uma queda acidental, mas que, sem dúvida, tinha-se suicidado.
A notícia caiu como uma bomba no lugar. A freguesia não falava noutra coisa, salientando o bom carácter, amabilidade e seriedade da Fernanda. Eu, já garotita, e como é normal um pouco pispirreta tentava não perder pitada daquelas conversas, e menos das que se faziam em voz baixa. Uma das vantagens das crianças é que os adultos esquecem quão atentas estão aqueles anjinhos quando lhes cheira a esturro. Fiquei com a mosca atrás da orelha acerca do interesse que o tio Ricardo tinha pela minha mãe, mais nova do que a tia e, quanto a mim, muito mais bonita. Qualquer desculpa servia ao tio para vir ao balcão e roçar-se pela minha mãe com se não houvesse espaço por trás do balcão. Nunca quis saber se havia ali um adultério familiar. A prudência é a mãe da ciência.
O que te posso dizer é que, tal como dizem no campo que é tradicional, o cunhado fez o possível, e conseguiu, casar com a minha mãe. E eu passei a ter um “padrinho”, que uma forma menos agressiva de referir um padrasto. Já quando estava no liceu em Aveiro, as colegas conhecidas insinuavam, descaradamente, que a minha mãe era culpada da morte da tia. Nunca estes boatos chegaram a ser motivo de quezílias, e com o tempo foram-se apagando. Do casamento resultou o meio irmão Óscar, que meses atrás eu tinha pensado propor para meu padrinho de casamento. Mas tu fizeste tudo à pressa e a teu belo prazer. Não valia a pena impor uma ideia que, de facto, pouco ou nada alterava.
Bolas!! Agora caio em que falaste no teu irmão Óscar. Passou-me por completo, não liguei. Podes desculpar? Não foi por mal e muito menos me passaria na cabeça o desatento a um dos teus pedidos e este era totalmente importante. Estou deveras envergonhado

Continuará

sexta-feira, 9 de março de 2018

CRÓNICAS DO VALE – Capítulo 18




O relato interrompeu-se no Capitulo. XVII, em 20 de Julho do 2017. Tentar resumir os acontecimentos descritos desde início, sendo possível que aqueles que estejam interessados possam ler tudo na “hemeroteca” do Google, creio ser desnecessário. Apesar disso e sem recorrer à estafada citação de que aconteceram muitas coisas, até porque nem sequer foram muitas, vou retroceder um pouco.

No capítulo anterior a este “interregno”, numa reunião em Coimbra entre o José Maragato e os advogados Vítor Meneses e Raul R. Rodrigues, deu-se como muito provável que o cadáver encontrado, e já identificado, nos terrenos do palacete familiar dos Maragato no Vale, deve ter sido assassinado, ou teve morte acidental, no decorrer de uma festa-bacanal nalgum local sito, provavelmente entre o Buçaco e o Caramulo. O morto, antes de o ser, era um homossexual que exercia, civilmente, como cabeleireiro e como travesti vocacional, dando espectáculos privados e participando, no Carnaval, em desfiles.

De todas formas tudo estava numa nuvem, a não ser para os directamente implicados., que continuavam a ser desconhecidos de Maragato e seus amigos. Os três “conspiradores” decidiram agir com muita cautela em função do pressuposto de que o esquema que imaginavam, caso coincidisse com a realidade, o mais certo é que tocaria em grupos sociais muito poderosos, não só no âmbito social como no económico e político.

Ao se encontrar com a Isabel, já esposa legal pois que aproveitaram a estadia em Coimbra para formalizar o estado, bem maduro, de ambos, lhe disse que tinham poucos minutos, no máximo meia hora, para arrumar um rodinhas para cada um, que deixariam o resto da bagagem no quarto uma vez que ficaria por conta deles. A Isabel tinha que, com um telefonema, prolongar a situação da sua ajudante como gerente substituta do salão, contando somente que viajariam para Lisboa e voltaria quanto antes. Beijinhos da praxe e adeus.

Segundo disse o José viajariam, de comboio, para Lisboa e ali se encontrariam com os dois filhos, Luísa e Bruno, até agora órfãos de mãe e já com uma madrasta a caminho.

- Enquanto as personagens principais viajavam pela Linha do Norte, confiando, sem demasiada fé, em que não houvesse algum deslizamento de terra ou outras eventualidades, mais ou menos costumeiras nesta importante via férrea, espinha dorsal das comunicações lusitanas, os seguidores podem visitar as instalações sanitárias, lavar cuidadosamente as suas extremidades superiores, e na cafetaria de bordo beber um gintónic, ou um café Expresso do Oriente. (Não esqueçam que também temos um crime entre mãos. Só nos falta a Gata Cristas)

O percurso ferroviário não se fez muito longo porque a conversa entre ambos, num puxa-daqui-puxa-dali os entreteve. E sempre tudo centrado em temas sérios, pois que de fosquinhas e apalpões já tinham a sua dose esgotada, a não ser quando decidiam brincar a fingir de jovens entre lençóis ou sobre a mesa da cozinha, ou donde calhasse, que gaita! Então não tinham direito a brincar? Brincar até morrer!

- Zé, penso que já estou ao corrente de tudo o que tem acontecido ao longo dos últimos meses. Pelo menos das coisas mais importantes. Mesmo que tenhas guardado alguns pormenores para os sacar na altura que entendas ser conveniente. Mas esta reunião súbita com os teus filhos tem agenda estruturada ? (esta é para mostrar que a Isabel lê alguns jornais e revistazecas).

- De facto eu tinha este encontro programado, pelo menos em mente, como a tal LEI MENTAL da nossa História Pátria, e tinha como peça de fundo a nossa relação, que entretanto se oficializou sem a presença dos filhos, o que pode ser tido como uma falta de respeito com eles, e que ambos temos que nos esforçar para neutralizar. Não quero, de modo algum, criar atritos e quezílias irresolúveis entre nós, ou seja tu e eu, e os meus filhos.

Todavia os recentes acontecimentos no perímetro da digamos quase casa solarenga na Vila, tampouco os posso manter escondidos deles, até porque não tendo, oficial ou oficiosamente, nada com isso, a não ser o ter sido descoberto um cadáver nos meus terrenos, de cuja morte não tenho a mais mínima responsabilidade, não deixo de estar referido pelo menos como dono do terreno. Tenho, ou temos pois que vamos em par, que procurar que esta porcaria não nos salpique. Tanto eu como os meus amigos de Coimbra, não temos a mínima dúvida de que esta história cheira muito mal, é uma porcaria que nos pode prejudicar.

- Mas tu dizias-me, em muitas ocasiões, que tinhas muitos e bons conhecimentos nas altas esferas. Não contas com isso? Se fosses um desconhecido …

- Certo. Mas aqueles que supomos podem estar envolvidos neste crime e na sua desastrada ocultação, é muito provável que tenham assessorias de alto gabarito, e que, caso se vejam em risco de aparecer em cena, tentarão passar o bestão a outro. E neste sorteio eu tenho muitos números, demasiados, que não comprei.

- Já entramos na estação da Expo. Aquela coisa tão bonita que serve, em primeira função, para possibilitar constipações e até pneumonias aos que tenham a ousadia de aguardar nos seus cais. E o perigo é maior se ficarem de boca aberta apreciando a ousada arquitectura do seu afamado criador.

- Não vale a pena que procures neste cais, pois fiquei com os filhos que nos encontraríamos na estação da padroeira dos dentistas e das cáries.´uma tal de Santa Apolónia, e não Polónia dos polacos. Dali iremos jantar num local que eles decidam. Lembra-me de puntualizar que não quero entrar num dos antros de moda onde brincam às cozinhas de autor. Fui criado com travessas fartas e estou velho para entrar em novas modas.