quinta-feira, 17 de maio de 2018

CRÓNICAS DO VALE – cap. 60




Já preparados para ir até Coimbra e enquanto tomamos o pequeno almoço lembrei-me de uma anormalidade que senti no salão, aliás nos dois pois a experiência repetiu-se em ambos. As clientes juntavam as cabeças para cochichar e exclamavam aqueles “não me digas”, que traduzido o eufemismo quer dizer conta mais que isto é saboroso, e seguidamente agarravam no telelé para distribuir a novidade, tapando o bocal com a outra mão e assim fingir estar segregando. Passados uns minutos perguntei às empregadas o que acontecia de tão importante. Enviaram-me para a Ivone, que tu sabes ser a minha chefe de plantão quando eu não estou.

A Ivone tentou deixar passar a bola, mas quando lhe apontei o entusiasmo que reinava entre as galinhas (são as clientes, caso não soubesses) teve que abrir o jogo e contar-me que se tinha apresentado, na Câmara Municipal, uma brigada mista das Finanças e Judiciária para ver e estudar ao detalhe a documentação de alguns serviços. A reacção imediata dos curiosos foi a de que esta presença inesperada devia ter alguma ligação com os mortos da casa do Vale. Eu disse-lhe que não parecia ter nada a ver uma coisa com a outra. Que os assassinatos não acostumam a ficar documentados nas Câmaras. Que isto deve ser consequência de alguma denúncia. Tu tens ideia do que se está a passar?

Ouve Luísa. Sabes que eu nunca quero saber de política e de políticos, e em quase todas as Câmaras Municipais, para não dizer que em todas pois não quero carimbar sem conhecimento de causa, surgem assuntos que podem levar a denúncias. Os eleitos foram apoiados por algum partido, e nas estruturas existem sempre interesses, sejam pessoais ou de negócios. Depois surgem os compadrios e os concursos amanhados, ou decisões tomadas sem concurso, desdobrando as empreitadas para não atingirem patamares com exigências legais que se for possível vão fintar.

Ou seja, com as decisões camarárias, nem sempre pode-se evitar que os preteridos se sintam ultrajados, e daí a fazer reclamações e denúncias. Numas mais e noutras menos eu creio que será o pai-nosso-de-cada-dia, especialmente naquelas Câmaras com orçamentos vultuosos. Neste caso, comparativamente, pode tratar-se mais de uma quezília pessoal do que de montante elevado. O que te garanto é que eu, José Maragato, nada tenho que me ligue a esta inspecção, nem tenho nem tive qualquer negócio ou contencioso com a edilidade.

Luísa, esquece. Isto não é coisa nossa e o melhor é ouvir e calar, pois qualquer comentário teu ou meu, pode ser deturpado. São assuntos que não nos dizem respeito.

Esquecendo esta novidade, eu, depois da conversa com o Dr. Cardoso, sinto-me mais leve, mais descontraído, mais confiado. Deixou-me a impressão de que, pelo menos no seu serviço, estão tomando este assunto dos mortos plantados mais seriamente do que eu temia. Isso não obsta a que certos capítulos permaneçam ocultos, em sigilo confidencial. Mas como a imagem que temos acerca das pessoas que se movem nas altas esferas já está mais do que feita, não os desprezaremos mais nem menos, humana e socialmente falando. Antes de ir visitar o Cardoso vamos passar pela agência de viagens onde eu, anteriormente, tratava de passagens, hotéis e trajectos.

  • Boa tarde, Dona Isaura. Como tem passado? Pelo seu aspecto, cada vez mais jovem, deduzo que a saúde, felizmente, não lhe tem dado cuidados de maior.
  • O Doutor Maragato sempre tão amável. Mas garanto que em mim também pesam os anos. Por enquanto não sofro de grandes desgastes, mas sei olhar para o futuro observando as pessoas com quem habitualmente convivo. Mas diga. O que é que o traz por cá, e tão bem acompanhado...
  • Desculpe o meu descuido, Dona Isaura. Devia ter começado por lhe apresentar a minha esposa, de seu nome Luísa Maragato depois de papel passado. Um apelido que não soa muito bem,mas é aquele que herdei de família.
Ao que íamos, ou viemos. Pensamos em aproveitar umas semanas de sossego antes dos calores estivais para dar um passeio pela Europa. Num esquema meio de grupo e meio por conta própria. Nós ainda não definimos grande coisa. Por exemplo: gostaríamos de passar uns três dias em Paris, incluindo um passeio pelos castelos do Loira (que não são como os nossos castelos, antes grandes mansões apalaçadas). Depois saltar para Bruxelas, outros três dias. E depois Berlim, outra paragem. Daí saltar para Viena, dois dias ou três. O percurso pelo Danúbio, que é tão afamado, a mim, pessoalmente, não me entusiasma, pelo menos se for longo; com uma escala e passar para terra já ficaria satisfeito. Mas com um bom livro e umas bebidas sou capaz de aguentar sem me atirar à agua. Visitar Budapeste é fundamental.

Aconselho a não se prender demasiado com estas minhas etapes. A partir destas linhas, que se podem alterar com pareceres fundamentados ou outras vontades da Luísa, eu vos deixo. A Dona Isaura se tiver paciência dé uma ajuda e carregue a esposa de folhetos. Depois, em casa ela fará a sua análise, que discutiremos (sem pelejar). E nos próximos dias voltaremos para formalizar a encomenda. Agora eu tenho que visitar um amigo na Polícia Judiciária, que penso estarem instalados ai perto. Até já. Não me demorarei, espero bem.

  • Boa tarde, Aqui está o meu Cartão de Cidadão para me identificar. Será possível saber se o Dr. Sílvio Cardoso se encontra no serviço, e caso afirmativo poderia perguntar, se fizer este favor, se me pode atender um momento?
O Dr. diz que o pode atender de imediato. Eu o guiarei pois sinto que não conhece o interior desta casa. Faça o favor de me acompanhar.

  • Dr. Cardoso, desculpe o importunar no seu trabalho, mas surgiu um tema que, não estando ligado directamente com o processo que nos levou a ser partes integrantes, de lados diferentes mas não opostos, segundo eu avalio. Pois bem, como ficamos mais tranquilos quanto à evolução oficial do inquérito, pensamos, a Luísa e eu, se poderia ser aceite que tomássemos umas férias antes dos calores estivais, e viajássemos pela Europa durante umas três semanas. Sei que, por enquanto, não estamos qualificados como arguidos, mas não queria “desaparecer” sem dizer aquilo do água vai! Daí que antes de avançar com o plano de viagem quis saber se existia algum impedimento oficial. O que me diz o Dr. ?

  • Vão descansados e desfrutem. Todavia e na previsão de qualquer imprevisto que os possa implicar, se o Amigo Maragato, quando tiverem o plano de viagem definido, com dias e estadias marcadas em hotéis com telefone e o resto da modernidade, seria bem visto que nos deixasse uma cópia. Se bem que hoje basta saber o indicativo do País onde se encontrem para que com o telemóvel os poderia contactar.

  • Obrigado Dr., E recordo uma sua pergunta que, por estar pendente de outro assunto, deixei passar sem resposta. Estranhou o nosso apelido de família Maragato. É o mesmo esquema do que acontece com aqueles que carregam, oficialmente, com o apelido Algarvio, Alentejano e outros. Sem ser uma cristianização de judeus ou se calhar até teve a sua origem nestas conversões forçosas, o nosso Maragato vem apenso ao facto de que a origem da família estava na Maragateria, uma região espanhola de cariz rural. E todos os que dali se deslocavam para outras regiões, eram apelidados de maragatos, como aqui os bimbos, por exemplo.


Segue no capítulo LXI

quarta-feira, 16 de maio de 2018

CRÓNICAS DO VALE - cap. 59


  • Luísa, finalmente chegaste. Demoraste mais do que eu imaginava. 

  • E também te digo, isto de estar em casa é como estar enjaulado. Depois de dar umas voltas pelo jardim e pela adega, que ainda está quase de pernas para o ar, duvido de que alguma vez aquilo possa ficar arrumado. De qualquer modo fui-me embora e encontrei-me com que não sabia para onde ir.

  • Falando na adega, por lá existe tralha de décadas, histórica. Alguma até é possível que tenha sido incluída na compra da fazenda pelo meu sogro, pois vi alfaias mecânicas que se não eram da monarquia seriam da primeira república. Sem motor, com tracção de sangue, são anteriores à chegada do futuro Conde do Vale, pai da Constança. Curiosamente hoje, em que a modernidade nos está dando a volta à cabeça, quem se encontra com velharias destas pela frente custa-lhe desfazer-se delas. Criou-se uma memória dos tempos recentes e como resultado são muitas as terras em que instalaram museus etnográficos. Já abriram tantos que não há moscas que cheguem para os visitar. Dito de outra forma: nem sequer estão às moscas.
Retomando o relato. Estas voltinhas caseiras ocuparam pouco mais de uma hora e encontrei-me perdido,sem me decidir a fazer outra coisa que não o de esperar por ti. Sentei-me na sala com um livro. Logo na segunda página enfastiei-me. Fui escolher outro. Com o mesmo resultado, apesar de me esforçar por terminar o primeiro capítulo. E quando lá cheguei senti que não me lembrava do que tinha lido. Nem sequer do ambiente que o escritor descreveu. Fechei e procurei alguma das tuas revistas. Se até aqui a tentativa foi má, com as revistas da fofoquice conseguiu ser pior. Terminei em frente da televisão, como um doente ou reformado. Adormeci com a publicidade sem fim e programas de lixo. Acordei quando ouvi a tua voz ao chegares. Não lembro de outra situação como esta na minha vida.

- Zé, não te apoquentes. Deve ser um reflexo dos assuntos penosos que nos tem enervado. Fiz mal em não esperar por ti antes de ir dar as minhas voltas. Desculpa o abandono. Mas pensei que o Inspector preferia falar contigo a sós, sem sequer a minha presença. Quando terminará esta treta? Ou será que alguma vez terá um fim como nos filmes? Pelo que me tens contado prevejo que muita coisa ficará escondida no nevoeiro, como aconteceu com o embuçado, que esperaram por ele durante mais de cem anos, sem entenderem que tudo tinha terminado com a cumplicidade silenciosa da casa real.

  • Acompanho-te na tua previsão. Soube, e não te devo contar -para o teu próprio resguardo- que, oficiosamente e com exigência de sigilo total, a P.J. Sabe mais coisas do que aquilo que aparece nos jornais, e que foram dadas ordens de caçar os criminosos, ou melhor os executores dos dois crimes. E, certamente, deixar o processo arquivado para não inculpar os mandantes.
    Mais. Foi-me dado a entender, que a quadrilha de bandidos, todos eles não nacionais, não chegarão a ser deportados, nem julgados. Nas entrelinhas sinto que não tardaremos em saber que desapareceram do mapa (digamos dos vivos). Aí existem duas hipóteses, ou aparecem mortos, baleados, num ermo ou numa praia e se atribui este desfecho a um ajuste de contas (?) entre bandos rivais, ou simplesmente os fazem desaparecer mais profissionalmente do que aqueles dois desgraçados. 

  • Eu optaria pela primeira solução, pois com ela podiam dar um aviso,um exemplo bem claro, de que aqui não são aceites intromissões de máfias de fora. Com os nossos malandros já chega e sobra. Somos umPaís pequeno, masmuitocioso das nossas regras e costumes.


Teremos que esperar para ver. Mas o sossego campestre voltará, disso não duvidemos. E se acontecer alguma morte macaca de algum turista confiado na sua sorte num dos seus périplos históricos, como não foi o primeiro nem será o último, será esquecido, tal como foram os anteriores nas mesmas circunstâncias. Afinal é um turista entre milhões... não interessa nem conta no totobola. Todos temos a morte como certa, e se foi em passeio é melhor do que numa doença incurável. Daí que só não se consola aquele que não quer. Haja futebol! E circo.

  • Já percebi. O que nunca me explicaste é quem era o segundo morto, e porque foi tão maltratado, torturado mesmo.
  • Pouco ou nada se falou deste homem. Ele foi morto porque sendo um colega do primeiro, Carlos dos Santos, Carlitos ou Carlota, se recordas, teve a infeliz ideia de pretender agir como detective amador, e começou a percorrer pistas, perguntando aqui e acolá, a este e aquele. Havendo como há bufos de um lado e outro os assassinos souberam desta intromissão. Caçaram-no e lhe deram tareia, e mais até, para que contasse o que sabia e com quem tinha contactado. Esta gente não aceita a mínima intromissão nos seus assuntos.
  • E mesmo que depois dos interrogatórios vissem que não passava de um pobre diabo, sem contactos, mas excessivamente preocupado com o fim o amigo e colega, entenderam que o melhor seria envia-lo para os anjinhos, aproveitando a sua carcaça para avisar outros curiosos e faladores, além dos gays do clube. Por isto e porque são gente sem respeito para ninguém é que lhe cortaram a língua -mensagem para os curiosos e boateiros- e as peças do seu sexo inicial -mensagem para os gays das festas, que devem participar mas não partilhar-
  • Satisfeita com o explicação? Demasiado crua, mas não procurei adoçar esta pílula, amarga q.b. E agora gostava de te apresentar uma ideia que ao longo da tarde foi germinando e crescendo nesta minha cabeça.
  • E se fossemos dar um passeio, de duas ou três semanas, pela Europa fora, na viagem de boda que não chegamos a fazer?

  • Vejo que o sorriso voltou à tua face. Mas é necessário preparar as coisas, desde o plano da viagem, as bagagens e, principalmente obter a permissão, tácita, da PJ para não parecer que escapamos, que fugimos de alguma responsabilidade. Não é coisa de hoje para amanhã.

  • Precisamente amanhã irei a Coimbra, ou iremos juntos se quiseres. Primeiro procurarei o Dr. Cardoso e depois iremos a uma agência com a qual já tratei de outras viagens, e começaremos a estudar locais, dias, transportes e o mais que for pertinente.
  • Óptimo marido! Mas veio-me à memória aquele carrão que te ofereceram no dia do casamento. Um Lamborguini se não estou confundida. O que foi feito dele, que nunca mais te vi com ele nem te referiste a tal carro?
  • Estava a espera que falasses nisso. É uma história rocambolesca que não te quis contar na altura. Quem era o dono real do carro era um industrial de Guimarães, cheio de guita, e com um filho estroina que o moía pedindo um Lamborguini. Como era uma quantia muito elevada pediu-me que o ajudasse numa manobra, legal, para o desvalorizar. Nós o comprávamos, fazíamos a rodagem, que já não se faz, mas esqueçamos o pormenor. Ao estar matriculado e sair do stand, e ficar com o meu nome no livrete ficava imediatamente desvalorizado. Ao regressar entreguei o carro num vendedor, que fingiu outro dono e a conseguinte desvalorização. Deixaram passar o fim do ano, e o livrete ficou mais desactualizado. Então o meu amigo, e cliente de outras manigâncias, o comprou para o filho. E eu meti umas massas para o bolso além de passeamos como ricaços. Mas nunca quis nem quero carros vistosos nas minhas mãos. Não me convêm alardes.
NOTA . O meu processador de texto continua a fazer das suas, e hoje não tenho pachorra para corrigir. Se conseguirem ler, bom. Se não, paciência.

Continua no cap. LX

terça-feira, 15 de maio de 2018

CRÓNICAS DO VALE – cap. 43


Um almoço de trabalho

Cavalheiros, podem avançar para a sala de jantar? A mesa está preparada e na cozinha já aguardam ordem de marcha. Ainda tem tempo de visitar e usar as instalações sanitárias.Cá estamos

Cá estamos, e da minha parte com algum apetite. E não é porque chegue ai o cheiron vindoda cozinha.

- Sentem-se. O Dr., se não se importa, à minha direita e a Luísa à esquerda. Passo a palavra à dona da casa.

- Em primeiro lugar peço aos cavalheiros que protejam as suas vestes com estes enormes guardanapos que estão sobre o prato. Os molhos não respeitam nada nem ninguém, e eu não gostaria de deixarbsairvdesta casa umconvidado enfeitado com uma "medalha" indiscreta. Do José nãodigo nada, pois nuns dias é sumamente cuidadoso e noutros... não digo

- E a seguir uma pertinente nota prévia: quando nos surgiu, ontem, a hipótese de ter um almoço, civil por assim dizer, tive que matutar o menu. Aliás todos os dias combino o almoço e jantar com o nosso braço direito, a governanta que herdei da falecida sogra e depois da precedente esposa. Depois de umas hipóteses a selecção ficou restrita a um ligeiro consome , ou preferentemente uma canja tradicional, mas pouco encorpada. E depois socorrer-nos da capoeira onde a Idalina cria, à maneira tradicional rejeitando farinhas industriais, coelhos, frangos, galinhas poedeiras e algum peru para o Natal ou Ano Novo. Em chegando a este ponto ficamos no meio de um dilema: preparar um fricassé ou uma cabidela, em denominação mais rafiné frango à bordalesa, Por saber que há pessoas que nem sequer podem olhar para um prato onde impere o sangue, mesmo que cozido e negro, ,como é o caso da lampreia, optei pelo fricassé, com o qual o saber e experiência da Idalina nunca falhou.

Agora entrará a terrina e depois, sem demora, a travessa. Cada um se sirva, e repita se agradar. A selecção de bebidas esteve a cargo do José Maragato, aqui presente.

Findo este breve repasto, incluindo o arroz doce de sobremesa e umas peças de fruta, vai entrar o café. E eu vou deixar os cavalheiros, pedindo que desculpem esta ousadia, mas tenho uns compromissos profissionais na Vila e em Aveiro, que não posso descurar. Já sabem, o trabalho e a responsabilidade obrigam.

- Sentiremos a sua falta, Senhora Luísa. Mas tampouco demorarei entre o café e um cigarro. Tenho horário livre, mas tal não impede de que o peso das obrigações se sinta. Uma boa viagem e até outro dia. Obrigada, assim espero. Especialmente que passem depressa estas núvens negras.

- Doutor Cardoso. Se me puder dispensar uns minutos ficaria sumamente grato. É que há um capítulo neste problema que creio deixei de lado. Mas é muito provável que o seu serviço se tenham debruçado nele. Interrogo-me acerca do porque estes simpáticos assassinos decidiram deixar as suas vítimas nas minhas terras? Tem que existir uma razão, qualquer coisa que os empurrasse até aqui. E não tenho a certeza de ter deduzido nada credível. Por outro lado, a partir dos boatos e até do que o Ortega me disse, parece que, de facto, o local onde ocorreram os crimes não foi aqui perto. Existe a hipótese de que esteja situado a norte do Buçaco E existindo naquelas matas serranas muitos locais  idóneos para fazer desaparecer corpos. Em vez disso meteram,emdias diferentes, cadáveres em viaturas, deslocaram-se por distâncias de quilometros, arriscando-se a ser parados por uma patrulha da Guarda, para mos oferecrem de prenda.

A única ligação que posso coneber é a visita daquele estranho agente imobbiliário que disse ter um cliente interessado em adquirir uma propriedade com as características da nossa (?) Para já este prédio rústico, incluída a mansão, é mais dos meus filhos do que meu. mas deixemos isso. Este sujeito não se identificou correctamente; não deixou um cartão, nem um endereço ou umtelefone. Nada de nada. E não especificou para que desejavam adquirir este "mono". Logo a seguir, passados poucos dias, nos deixaram um cadáver mal enterrado. Será coincidência? não acrediro em coincidências tão evidentes. Mas não tenho os meios da Judiciária para tentar descortinar o que está por trás disto tudo. E ando nervoso, intranquilo, com esta situação, daí que me atreva a pedir a sua opinião. dentro doslimites do processo, bem entendido. 

- Amigo Maragato. Inicialmente tanto eu como os meus colegas e ajudantes  também ficamos  desnorteados com esta proposta de compra. Confesso que não lhe demos muita importância. Já com a descoberta do falso enforcado as coisas mudaram muito de importância. Foi decidida uma equipa mais numerosa, com colegas de Lisboa e Porto, de diversos serviços especiais. Rápidamente chegamos, tal como fez o Maragato, à possibilidade de existir uma ligação entre os assassinatos e a misteriosa proposta de compra. Uma dupla de crimes violentos forçosamente deveria levar a uma desvalorização da propriedade. O mercado imobiliário é muito rápido nas subidas e descidas dos preços. E isso dava uma boa oportunidadepara os interesse sde alguém, ou de um grupo, que então intuíamos mas desconheciamos.

Hoje já se identificaram algumas peças deste grupo nacional. Que não lhe posso revelar pois que recebemos ordens, restritas e severas, de que ficasse num dossier altamente reservado. Pelo menos até nova ordem. Conhecendo o Maragato sei que sabe da existência de poderes ocultos da alta política e da alta finança. Só deixam passar para a opinião pública umas páginas, escolhidas, ao jeito das Selecções, e que se possam neutralizar em pouco tempo.

Também soubemos quem era este agente de compra-venda. Nem sequer era isso. Trata-se dum funcionário de meia importância que um graúdo utiliza como mandarete. Não creio que volte a aparecer por aí. Mas, quando as águas amainarem é possível que venha outra proposta, possivelmente através de uma dama ainda jovem, atraente, bem vestida e bem falante. Preparem-se!

Caso o grupo mantenha o esquema de ter uma segunda casa de festas, mesmo que inicialmente com outros moldes, posso alvitrar que um local, reservado e fora de portas, agradável e com espaço suficiente, incluída a adega para resguardar viaturas de olhares indiscretos, poderia ser visto como adequado a um casino clandestino, onde uma clientela seleccionada possa jogar forte e ter uns momentos de lazer, digamos carnal. Mas menos badalhoco do nível em que já tinha degenerado no tal local que, insisto, não lhe posso identificar. Nem sequer confirmar aquilo que diz saber de fonte credível.

E agora tenho que voltar à base. Tudo isto que aí fiz é trabalho, e o trocar impressões ajudou a clarificar o ambiente. Pensar a dois é melhor do que magicar a sós. E até preferível a estar numa mesa com muitas opiniões diferentes e sobrepostas. Todavia, o relatório desta visita será muito sumário; muita coisa do que falamos só ficará na nossa memória.

Próximo capítulo LIX

O que mais pode acontecer?



segunda-feira, 14 de maio de 2018

CRÓNICAS DO VALE – cap. 57



encontro com o Dr. Cardoso

Luísa, ontem eu estava não só distraído como absorto com este problema, duplo, que nos colocaram sem que saibamos a razão. E, mesmo com o café carregado, não consegui dar-te a atenção que merecias quando, a meu pedido, me contaste como tem andado os teus negócios. Não duvido de que me contaste explicitamente, mas não entrou cá nada. E como o meu interesse era real, não um pró-forma, que não teria sentido entre nós, tenho que te pedir que me dês uma segunda dose do mesmo, Tão explicadinha ou mais do que a de ontem.

Aquilo que menos desejaria é que, pelo facto de me acompanhares, aquele trabalho que começaste sozinha e conseguiste erguer com o te saber e sexto sentido, sofresse um declínio por minha causa. Ficaste ofendida com este meu bloqueamento

- Não sejas tonto. E pensas que não notei que tu estavas noutro mundo. E eu te acompanho nesta tua preocupação. Os salões felizmente continuam em bom rumo e, como sabes, visito sempre que tenho um tempo disponível no matrimónio, até agora não deram sinais de declínio. Antes parece que as responsáveis querem mostrar mais empenho do que eu mesma.

Quando chegarem as férias de verão, terei que gratificar, com magnanimidade, estas mostras de lealdade, sem esquecer que com as idas das clientes à praia, entrem ou não nas águas gélidas, há mais fluxo de trabalho nalguns períodos do dia, entre cortes e reposição de penteados. Tenho que programar bem esta fase, pois este ano, atrelada a ti, não tenho a mesma possibilidade de tapar buracos, ou faltas de pessoal, como noutras alturas. Para já vou pedir a opinião às duas encarregadas sobre se entendem ser conveniente contratar alguma cabeleireira extra para o verão. È possível que elas conheçam alguma profissional que tenha deixado de trabalhar no ramo, mas que lhe convenha ganhar umas horas para atender a despesas anormais. Tudo se vai encaixar, podes ter a certeza. Cá vem a Amélia com algum recado.

- Dona Luísa, Senhor Doutor, está um Senhor na entrada que perguntou por si. Deixei-o na saleta ao pé da porta. E agora a Amélia traz um recado.

- Fizeste bem. O meu marido vai receber o visitante. Que supomos saber de quem se trata. É um amigo nosso que certamente viste no dia do almoço.
- Dr Cardoso. Passou bem? Mentiria se dissesse que este encontro é uma surpresa. Desde a notícia do falso enforcado que tenho andado ansioso para poder trocar impressões com o
Doutor. Cheguei a estar tentado para lhe pedir que me atendesse no seu gabinete de trabalho em Coimbra. Estava eu nervoso como um adolescente. Mas consegui refrear os impulsos, ultrapassando o bom entendimento que, pessoalmente, criamos e avaliando que o seu trabalho e a sua hierarquia não tem o mesmo nível do que falar numa repartição qualquer.

- Fez muito bem o Amigo Maragato -um dia tem que me explicar, se sabe, onde diabo se iniciou este nome de família- Pois, de facto, eu prefiro poder dialogar consigo, frente-a- frente, sem todos os preceitos que imperam na Polícia Judiciária, mesmo tendo como tema de conversa um assunto profissional de que ambos temos algum conhecimento. E ontem nos informaram, da GNR do Vale, da sua denúncia contra terceiros, desconhecidos. Fez muito bem, apesar de ter demorado demasiados dias. Dizem que nunca é tarde quando chega.

- Não sabe a satisfacção que sinto por ver que travei a tempo e aguardei a ocasião que entendeu ser propícia. Das suas palavras deduzi que os seu serviço já encontrou alguns pontos de interesse no sentido de esclarecer o sucedido. E, dando seguimento à sua última frase, de facto demorei demasiado a reagir. Fiquei baralhado com o segundo cadáver. Tenho magicado, sem sossego, à procura de razões para estes crimes e até, sem ter meios para isso, tentar imaginar quem terão sido os autores e se agiram por iniciativa própria ou a mando de alguém que está resguardado à sombra. São muitas perguntas sem resposta para um cidadão sem poder oficial.

- Já supunha que o Maragato não estava sossegado “à sombra da bananeira”, e por lhe reconhecer a astúcia e possuidor de uma intranquilidade congénita, mantive-o não só vigiado mas também protegido. Além de o considerar como uma possível fonte de novos caminhos de investigação. Isso não impede de que o considere como um atrevido quando me informam que mete-se em meios perigosos e com as mãos a abanar. Pois sim, soube que esteve reunido, em duas ocasiões e em Aveiro, com um cabecilha de etnia cigana. Deve estar ciente de que na Judiciária, seja directamente ou por meio de informadores, tentamos seguir todas as pistas e o Maragato, mesmo que estamos convencidos que é uma vítima secundária, tem que ser acompanhado.

- Já imaginei que sabia, e até o disse à minha mulher. Mas sou crescidinho e atrevido, além de que conheço um leque de gente muito mais amplo do que a maioria dos cidadãos. Mas fiquemos por aqui, se não se importa. Todavia, como não podemos andar com segredos, vou contar como e porque procurei o tal rei dos ciganos desta zona.

Através de pessoas que conversam com uns e outros, que espalham boatos falsos mas que também acertam à tangente, soube que naquela festa onde admito ter estado presente o primeiro morto, e depois o segundo também teve alguma ligação. Aquele que andou por aqui fazendo perguntas e com esta iniciativa deve ter ganho que lhe cortassem a língua, soube o que era de imaginar sem esforço. Naquela Rave ou Bacanal houve muita droga dura, e dizem que foi fornecida por uns forasteiros bastante estranhos.

Ora, por estas bandas todos sabemos, desde a PSP, passando pela GNR e a PJ. Que a ciganagem é uma das fontes de distribuição de droga, em despique com os africanos. Daí que deduzi, mesmo com risco de errar, que os da tal etnia especial deviam estar bastante chateados com a intromissão de novos fornecedores. Conhecia, de bastantes anos atrás, ainda os dois éramos rapazes, o Rafael Ortega, que certamente tem ficha no vosso serviço. Pedi um encontro, que foram dois.

No primeiro contei-lhe os meus problemas, ou até insultos recebidos por parte de desconhecidos com o depósito de dois cadáveres nas nossas terras. Ele sabia -sabem mais coisas do que nós, os civis caseiros imaginamos- e lhe disse que, da minha parte, pensava que ele tampouco estava satisfeito por lhe pisarem o terreno (metafórica-mente falando). Que eu meditei que estes atrevidos podiam ser gente do Leste e por isso lhe pedia que se pudesse passar palavra à sua gente, e viessem a confirmar as minhas suspeitas, me informasse.

No segundo encontro já me pode dizer que eu tinha acertado e que, de facto, eles estavam muito danados com esta intromissão. Mas que não se atreviam com aquela gente, que diziam ter treino militar e armamento pesado. E até, naquilo de que palavra puxa palavra disse-me que dentro das capacidades da sua gente, hábeis em se infiltrarem e disfarçar ao que iam, podia ser que, indirectamente, através de mim, pudessem dar uma ajuda para poder engavetar ou afugentar de Portugal estes bárbaros. E não lhe posso dizer mais porque não há mais.

- O Amigo Maragato, mais uma vez não me desiludiu. E, através dos meus informadores, pois que também dentro dos ciganos temos quem nos mantenha ao corrente, posso dizer, com satisfacção, que o seu relato encaixa perfeitamente no que tenho nos meus apontamentos. É evidente que, com os meios nossos e porque já entramos em contacto directo com a Interpol, sabemos da identidade do grupo de bandidos, misto de albaneses e romenos que actuam por esta zona do litoral e centro. Os nossos serviços centrais estão preparando, com a ajuda de Coimbra, uma redada para apanhar não só estes que agiram nesta festa rija, como outros que sabemos estão ligados aos clubes de prostituição.

Pode dizer ao seu conhecido Ortega, se lhe vier à mão, que sabe da incorporação de gente dele na vigilância permanente, onde se revezam homens e mulheres, incumbidos de os termos localizados. Tal como o Amigo deduziu, isto de que Uma mão lava a outra, é uma regra de ouro no nosso ofício, não a podemos descurar. Claro que os favores pagam-se, em geral fechando os olhos em assuntos menos importantes. È a vida!

Se me permite um conselho, o Maragato já fez mais do que qualquer cidadão comum teria feito. Já lhe disse que é um atrevido. Deve ter herdado do seu pai e avô. Mas nesta altura não me convêm, e a si muito menos, que interfira. Não faça ondas. Entretenha-se como se tudo tivesse passado, faça jardinagem, plantem novas espécies arbóreas e arbustivas. Mas pode ter a certeza de que eu o irei informando, na condição de que aquilo que ouvir não pode ser transferido. Aqui também se aplica aquilo de que O segredo é a alma do negócio.

- Agradeço, profundamente, a sua visita e a abertura na troca de impressões. Receava estar a interferir, mas não esquecerei as suas recomendações. E com isto chegamos à hora de almoçar. Se puder acompanhar este casal, isolado no campo, gostosamente partilharemos uma refeição caseira, sem pretensões, mas com garantia de qualidade. E faremos o possível para não falar dos temas em aberto!

- Agradeço a vossa hospitalidade, desta vez a nível caseiro como disse. Assim aproveitarei para conversar um pouco com a sua simpática esposa.

Seguirá no cap. LVIII


domingo, 13 de maio de 2018

CRÓNICAS DO VALE - cap. 56




    - Senhor Ernesto, onde lhe calha melhor que o deixe?
    - Se puder ser ficarei ao pé da adega. Tenho umas coisas para arrumar e também deixei ali a minha motoreta, que utilizo para as voltas mais próximas. Em tempos, sendo eu mais novo e sem as artroses que me consomem, cheguei a ir até Lisboa com ela. E antes de ter esta velharia,naquela altura nova a estrear, até fui à capital de bicicleta, naquelas estradas nacionais que hoje poucos usam. Eram menos os carros e camionetes, e andavam mais vagarosos e muitas bermas estavam descarnadas; era uma aventura arriscada tanto com ciclomotor com na pedaleira. Hoje nem sei como me atrevi a tanto e como fui e voltei inteiro, numa peça.

  • - Pois aqui o deixo, mas eu levo o Sr. Presidente da Junta até casa ou mesmo à Junta, onde ele preferir. Até já ou até amanhã.

  • Antes de mais, Senhor Presidente, e sem testemunhas, agradeço a sua companhia e gostaria de tomar um café para dar à língua, no sitio que lhe pareça adequado.
    - Podemos rumar para aquele café que está à beira da estrada para a Vila e onde só param madeireiros e caçadores, quando podem caçar! A estas horas deve estar deserto. Ali há um canto, afastado do balcão e da porta que é bom para conversar. Eu tratarei de fazer o pedido. Como gosta do café? Eu peço sempre bica cheia.

  • - Terão que ser duas.... Pois os PJ, dada a deslocação de forças devem ter reagido de imediato, com alarme bem fundado, ao receberem a descrição sumária da GNR do que e como encontraram este segundo cadáver. Não lhe parece Amigo Medeiros?

  • - Com certeza. Quando ouviram da língua cortada, da castração e dos sinais de tortura, em Coimbra devem ter saltado todos os alarmes. Se o primeiro morto podia ser atribuído, levianamente pelo que se seguiu, a um desencontro entre homo-sexuais e outros elementos do mesmo entorno, agora as coisas ficaram muito mais bicudas, assanhadas. Por isso não admira que o inspector Cardoso se mantenha em reserva.

  • Isso já deve ter ultrapassado a delegação de Coimbra, e julgo que tanto de Lisboa como do Porto já estarão procurando a forma de descobrir os culpados directos e, se não me engano, manter resguardadas as personalidades que habitualmente se movem na sombra nestes “festivais de droga e sexo sem regras”. Ordens superiores, chamam a estas cautelas.

  • - Pois eu, em linhas gerais, formei uma ideia muito semelhante, quase coincidente. A principal diferença estava no imaginar odeia, possívelmente erradamente, que a malandragem nacional não se atreveria a tais atrocidades. Considero serem mais imediatistas, mais no género domeia bola e força!
    Imagino que por aí é capaz de andarem gentes do Leste Europeu, que não conheço nem tenho interesse em conhecer, mas que diz-se dominam quase por completo o tráfego das drogas duras e das mulheres loiras e esbeltas que eles traficam como se fossem peças de gado. E, acreditando nos boatos, estes acontecimentos estiveram ligados a uma festa rija deste calibre.
   - Tem graça, a Noémia, que passa o dia lendo romances policiais e vendo as séries de crimes na televisão por cabo, logo que a mulher que vai ajudar na lida da casa lhe fez o relato do que se dizia acerca deste segundo morto, mais pendurado do que enforcado, pensou logo nesta possibilidade e assim me vendeu o seu juízo. Estou a ver que a minha esposa faria uma boa dupla consigo, amigo Maragato.


   
    - Não fico admirado. Sei que as mulheres tem uma mente mais fértil do que a nossa. E são mais atrevidas quando abrem a caixa de Pandora. A que tenho em casa, a Luísa, se a colocasse à par da sua Noémia, despachariam este problema em pouco tempo, sem necessidade de interrogatórios nem tantos especialistas. Ah! e sem escreverem relatórios! Tudo verbal, de viva voz e alguma gesticulação.
E já é tempo de o deixar no seus afazeres, mas antes tenho que lhe agradecer a companhia e o tempo que me dedicou. Vou para casa, e peço que transmita os meus cumprimentos à Dona Noémia. Até lhe pode dizer que imaginamos a mesma participação de estrangeiros . Até breve, Amigo Presidente.


    - Finalmente apareces! Tenho aguardado no alpendre horas a fio porque tenho um recado para ti. Telefonou o Dr. Cardoso, o da Judiciária, dizendo que necessita ter uma conversa contigo. Informal acrescentou ele, juntando que não me preocupasse. Mas era um tema reservado e por isso preferia um encontro na nossa casa em vez de te solicitar a comparência na delegação de Coimbra. Pensa passar por cá a meio da manhã.
       
  • - O recado está dado e entendido. Mas por agora já me chega deste assunto. Só te peço que amanhã, pelo sim pelo não, tenhas um almoço preparado para três, nós dois e o inspector como convidado, informal.
Agora gostaria de ouvir das tuas andanças e decisões como empresária. Fala-me dos teus salões e das tuas funcionárias, e se já tens novos projectos nesta tua cabeça. E jantar os dois em sossego, tomar um café e digestivo na sala, com a TV ligada ou não, pois prefiro uma música suave e quase inaudível para nos acompanhar, até chegar o João Pestana. Está de acordo?

  • Eu? Se soubesses quanto anseio por ter um serão a dois!! Estávamos mais tempo na companhia um do outro antes de casar do que agora. Parece que fiquei a perder com esta legalização! Anda, não amues!Mereces uma beijoca de língua. Espero ter mais ocasiões de calma e sossego entre os dois. Por enquanto temos andado numa roda viva, sem um descanso capaz. Já estava cansada e desanimada.

Segue no capítulo LVII

encontro com o Dr. Cardoso



sábado, 12 de maio de 2018

CRÓNICAS DO VALE - cap. 55



Senhor Presidente, ou Amigo Aníbal Medeiros posso entrar? De facto já entrei. Como está de saúde e disposição? E a Dona Noémia? Confio em que ambos estejam em óptimas condições. O tempo está a melhorar e muitas flores abriram e árvores já mostram folhas novas, assim como os pássaros já tratam dos seus ninhos. Posto que a Primavera traz sempre boas novas à mistura com ventos frios, mesmo assim podemos dar o inverno como terminado.

Mas a visita de hoje, além de renovar o agradecimento pelo apoio logístico e pessoal que nos ofereceu quando da caprichosa festa-convívio, que recordaremos por terminar tristemente, hoje trago uma proposta, muito ligada aos acontecimentos da mata, que lhe queria apresentar.

- O Amigo Maragato não tem que se preocupar com prelúdios e introitos, seja o que for que o traz aqui, a ser possível, estarei ao seu lado. Portanto agradeço que refira de que se trata. Desde aquele "fim-de-festa"btão abrupto, e como sabe, surgiu uma segunda violação do terreno, Desta feita comum cadáver pendurado e com a língua e testículos cortados. Eu só fui ao lugar dos depósitos, por assim dizer, uma vez; logo no dia seguinte ao da primeira oferta macabra. Deixei o assunto nas mãos da GNR e depois da PJ, e preferi ficar na reserva, sem que pudesse ser interpretado como uma fuga, um me esconder.

- Entretanto tive outros afazeres, mas nunca deixei de pensar nestas mortes violentas. E ontem, apesar de terem passado até semanas, decidi ir fazer uma denúncia na GNR por invasão e depósito de cadáveres num terreno da minha propriedade. Convenhamos que devia ter feito esta diligência no dia seguinte ao de terem encontrado o mal enterrado. Mas não fiz! Tinha a cabeça noutra órbita.

E hoje decidi chamar o meu feitor, que conhece aqueles terrenos muito melhor do que eu, para que me orientasse numa espécie de “visita guiada”. E, em sequência, pensei em lhe perguntar a si, como Presidente da Junta, caso tal não lhe causar um atrito na sua autoridade, se nos quer acompanhar.

- Não tenho qualquer inconveniente, amigo Maragato. Estava na sua casa quando surgiu a primeira noticia do mal enterrado, e acompanhei o sargento da GNR quando ele foi dar a inspecção sumária. Nunca mais voltei. Nem sequer quando soube que tinham pendurado um falso enforcado quase encima da cova do primeiro assassinado. Não chove e se, como diz, já tem a ideia de ir até lá agora, eu vos acompanho. Não digo por gosto mas tampouco com relutância.

- O meu feitor, que já conhece, Ernesto Carrapato, diz que estamos perto, mas que, por recomendação da PJ, devemos continuar a pé, a fim de não alterar algumas pistas que tenham ficado.

- É o que me recomendaram, não só quanto a minha pessoa mas que procurasse afastar os curiosos. Eu já andei por aqui mais do que uma vez, depois de partirem as polícias, mas sem companhia. Parece, pelos sinais do chão, que o segundo morto, aquele que penduraram naquele carvalho fingindo que se tinha enforcado -mas num teatro muito mal trabalhado, que nem um cego poderia acreditar- Pelo rastro de um rodado de carro de mão com uma roda de borracha penso que deixaram a viatura ali em baixo, numa clareira onde pelos muitos rastros de pneus devem parar os namorados.

Subiram até aqui por este caminho de cabras, e, pelas pegadas que se viam na minha primeira vez e que hoje estão todas misturadas por tantos que por aí já passaram, devem ter sido três os artistas que se encarregaram de enforcar o morto. Mas isto é o que eu penso, e eu não sou inspector graduado, nem polícia de giro ou guarda republicana. Sou um simples camponês, que só sabe, e mal, de coelhos, cobras e cabras, por assim dizer.

- O que é que pensa disso o Medeiros? Eu confesso que, ignorante das primeiras letras de investigar a sério, até me parece que as palavras do Ernesto tem bastante credibilidade. E desconheço até onde chegaram as pesquisas da Judiciária. Se calhar o Medeiros está mais a par.

. Lamento ter que o desanimar. Os homens da PJ, que quando do primeiro morto pareciam muito abertos, perguntavam e tomavam notas, desta feita andavam mais sisudos. Também fizeram perguntas a uns e outros, quase como se falassem da bola, e sempre fechados em copas. Mesmo a mim, que em princípio sou uma autoridade, de baixo nível mas eleito e aceite, não me fizeram a mínima confidencia. Aquele inspector Cardoso, que esteve na palheta connosco no almoço e depois na sala, no dia seguinte fingia não me conhecer.

- É possível que fosse para não mostrar confiança perante outros elementos da brigada de Coimbra, que eram uns quatro ou cinco, mais o médico legista. Foi o que eu imaginei e por isso segui o seu andamento, sem mostrar qualquer encontro anterior. Nestas coisas temos que dar fé ao que diz Não te metas em casa alheia; bate o fora e espera. Ou o também famoso Não metas o nariz onde não fores chamado.

Eu entendo o que o Medeiros nos quer dizer, e se não fosse que, mesmo indirectamente, sinto ser possível que eu esteja no rol dos suspeitos, e se até agora não fui chamado a depor, e menos arguido neste falso enforcado também optaria por me manter ao largo. Que é o que tenho feito. A vontade é de poder falar com o Dr Cardoso, mas aguento isso e prefiro esperar que sejam eles a desejar ter umas falas oficiais. Preferiria um ambiente descontraído, mas não posso escolher o campo. Aqui não funciona a moeda no ar.


Segue no capítulo LVI

Será hoje que o Cardoso quer conversa?


quinta-feira, 10 de maio de 2018

CRÓNICAS DO VALE- Capítulo 54




Fui apresentar queixa na GNR

Constança manteve ao logo dos anos alguns preconceitos e costumes que eu sempre atribuí à sua longa estadia naquele colégio, anexo ao convento de freiras carmelitas descalças. As quais freiras eu sempre vi com sapatos, ou sandálias quando o tempo não era excessivamente frio. Suponho que quando deitadas a descansar então sim que deviam estar descalças de pé e perna, ou com peúgas de lã no inverno.

Sendo correcto posso afirmar que Constança não ficou com o hábito de assistir a missas por tudo e por nada. Não se comportou, depois de casada, como uma beata convicta. Antes afirmo que se adaptou bastante ao meu ateísmo militante, sem que eu a obrigasse ou nem sequer insinuasse, que devia deixar de lado a beatice. Pelo contrário, insisti muitas vezes em que devia assistir ao serviço dominical e que, caso assim desejasse, eu até a acompanharia, apesar de só fazer figura presencial.

O mesmo não aconteceu quanto ao seu acanhamento ou timidez, nomeadamente no que se refere ao pudor excessivo que sentia quanto à exposição do seu corpo, ou de fugir de me ver nu. Esta sua atitude quando já éramos um casal encartado, causou-me uma certa estranheza. Não esperava tanto retraimento. Como deve ser habitual, nas manobras de namoro fiz vários e reiterados avanços. Alguns mesmo muito atrevidos e de nível abusivo, por não respeitar como merecia a namorada. Mesmo quando já comprometidos a casar. Mas eram consentidos da sua parte. Se calhar rezava pedindo perdão a Deus ou à Virgem (mas não muito) Maria.

Constança deu sempre muita importância à cerimónia da boda religiosa, ao vestido branco de noiva, ao véu e ao ramalhete com flor de laranjeira. De nada serviu a minha insistência em lhe dizer que practicanente todas as noivas estavam fartas de fornicar antes deste passo social. Fingia que não ouvia. Eu dizia, para mim, que ela fechava os ouvidos como fazem as focas quando mergulham.

Recordo a camisa de noite da primeira noite! Foi costurada no atelier do convento,o mesmo que se encarregou das peças brancas do seu enxoval. Já podem imaginar... com gola fechada quase até o pescoço e comprimento até os pés; de linho!, mais fria do que gelo. Numa época em que as montras de roupas interiores de senhora já mostravam peças quase minúsculas e sempre ousadas, fossem de seda ou das primeiras fibras sintéticas. Provocantes como deviam ser para incitar o parceiro. Um fiasco, uma desilusão, que não atingiu o cúmulo porque coincidiu com a chegada do período. Ou seja: juntou-se a fome com a vontade de comer!

Se não fosse que eu a amava como pessoa, e que assim continuei até o dia da sua morte, e mesmo depois num até certo modo prolongado luto. Caso o incentivo para casar fosse exclusivamente o sexo, naquele mesmo dia eu teria saído para comprar tabaco e nunca mais teria aparecido. Ai amor a quanto obrigas!

O ambiente levou muito tempo a melhorar, mesmo depois da lua de mel. É que Constança manteve a sua adversão a que a visse nua, e muito mais em tomar posses atrevidas, por mais que eu pedisse, rogasse até. Uma relutância que manteve practicamente até o fim da vida, apesar de termos gerado dois filhos vivos e um morto, sem a ajuda de nenhum anjo ou arcanjo, a mando do Criador. Nem vale a pena referir que as tentativas de executar variantes na acoplagem foram sempre rejeitadas.

Quase que dava a ideia de que conhecia o kamasutra de cor e salteado, pois logo que eu iniciava os prelúdios, levava com os pés e eu ficava com a noção de ser um miserável, um devasso! E de imediato pensava: Foi para isso que casei? Só para o missionário? Convence-la a cavalgar foi uma tarefa épica. Uma lança em África ! Nem gosto de lembrar as centenas de vezes em que, frustrado com a minha vida de casado, tive que bater uma punheta. Eu, que pensava que esta manipulação terminaria quando casasse! Farto de sexo manual confesso que algumas vezes; nãomuitas, mas bastantes, aproveitei viagens de trabalho para desovar com algumas das minhas anteriores conquistas. Que, em geral, continuaram sendo amigas e prestáveis. É que nisso das conquistas não me dei demasiado mal...

Excepto estes pormenores de índole erótica a Constança foi uma esposa exemplar, meiga, educada, boa mãe (até em excesso), sempre com a atenção centrada nos filhos, e só depois o marido (eu) Sorte a minha não termos tido um cãozinho daqueles que passam o dia ao colo da dona, pois até o animal estaria à minha frente, com metros de vantagem! Fora destes insignificantes capítulos reitero que Constança foi uma excelente esposa. E quem pode provar o contrário?

Chega de palermices. Enquanto pensava nestas inutilidades já ultrapassadas fui em direcção ao posto da GNR, onde fui atendido pelo oficial de serviço, que ao ouvir a minha pretensão de denúncia me olhou com ar entre de gozo e espanto. E disse: mas isto já aconteceu umas semanas atrás, pelo menos a do cadáver mal enterrado. E só agora é que o Senhor se lembrou de fazer queixa por escrito?

Tem razão, Senhor Oficial (provavelmente um cabo...), mas aconteceu que estas invasões, quase que tão desastrosas quanto foram as napoleónicas (de vez em quando saem-me umas arrancadas espatafúrdias. E eu gosto tanto.. . Gozo mais do que um tonto com um chupa-chupa) Tem toda a razão, devia ter vindo de imediato, mas eu, mesmo que veterano de algumas guerras, fiquei desorientado e alem disso tive que fazer algumas deslocações que me afastaram deste vosso posto. Mesmo assim agradecia que desse entrada à minha queixa ou denúncia e, se for possível, me facilitasse uma cópia do documento. Pode vir a fazer falta mais adiante. Quem sabe?

Cumprida esta gestão vou ver se consigo incitar o Presidente Aníbal Medeiros para que me acompanhe, juntamente com o feitor dos meus terrenos o Ernesto Garrapato, ao local donde plantaram os cadáveres, caso esteja livre, mesmo com guarda. Pretendo marcar que continuamos a ser os proprietários e, ao mesmo tempo mostrar que não temos medo dos desconhecidos. É possível que por lá encontremos pessoas rondando, que tanto podem ser naturais da zona como desconhecidos que são incitados pelo cheiro da morte, pois estes sucessos geram muita curiosidade. Ouvir os comentários, mesmo os disparates, até pode ser útil.


Segue no cap. LV

Encontro com o Presidente da Junta

quarta-feira, 9 de maio de 2018

CRÓNICAS DO VALE – cap. 53



Continuação das confidências

Quando consegui ter uns momentos para falar com a Constança, com a cumplicidade de umas amigas, também pensionistas do convento, e uma noviça que, a meu entender, estava desejosa de poder dar o salto. A aluna brasileira, que é como era conhecida no grupo, disse, sem hesitar, que estava farta de estar entrega às freiras; que a vocação religiosa que lhe pretendiam inculcar não era propriamente o futuro que desejava. Resumindo, que aceitou a minha proposta de namoro, com a única condição de que não aceitava uma abordagem de brincadeira. Ou era para casar ou podia dar o fora quanto antes.

Respondi que era cedo para assentar um futuro, pelo menos do meu lado. Eu ainda estava no segundo ano de direito, e nem sequer tinha a certeza de que continuaria neste curso. De qualquer modo a minha família tinha uma estrutura de rendimentos muito consolidada e caso decidíssemos casar tudo se resolveria. Mas sem pressas. Ela era menor e eu não tinha modo de vida. De forma que ou namorávamos ou terminávamos agora mesmo.

A fase de namoro durou um par de anos largos, até ela ter dezoito anos. Nesta altura pedi ao pai da Constança, que só conhecia de longe, se autorizava que namorasse a sua filha, dando garantias de que estava sério na minha proposta, mas não queria por a carroça à frente dos bois e por isso pretendia a sua autorização antes de avançar. Não lhe pedia a filha para casar. Era prematuro. Agora só pretendíamos poder namorar abertamente sem receios de sermos perseguidos quando ambos estávamos de boa fé. Não houve problemas com o pai Sousa.

E assim andamos mais um par de anos num namoro bastante comedido, apesar dos meus avanços, que Constança foi consentindo. Hoje afirmo que abusei e ela não devia ter consentido, certamente que por imaginar que eu era a sua única tábua de salvação. Aquela vida de clausura tinha afectado Constança, como depois confirmei, mais do que era normal. Confirmei isto após curtas conversas com algumas das suas colegas, especialmente com aquelas que tinham familiares perto que as iam buscar para saírem na sua companhia, escapando daquelas aves de rapina. As amigas eram unânimes em dizer que o pai da Constança a tinha abandonada, entregue às freiras, e que lhe faltava o convívio aberto fora do convento-colégio.

Entretanto contei ao meu pai que estava decidido a casar com uma namorada que veio do Brasil, mas que não tinha um futuro próprio. Quase que se zangou, pois a minha afirmação era quase um insulto à família. Ou seria que eu deitava pela borda fora tudo o que sabia e tinha aprendido com o avô e com o pai? A partir deste momento és sócio efectivo na nossa sociedade, com ordenado mensal e direito à uma parte quando se distribuírem lucros após um balanço, que não está supeditado pelo fim do ano, pois que esta casa é liberal para fazer o que nós entendemos. Outra coisa é a contabilidade oficial. Mas isto já sabes como funciona.

E para preparar o futuro imediato, caso pensem em ficar por Coimbra, já esta tarde, depois do almoço, vamos procurar uma vivenda ou um andar bem grande, onde se possam instalar. Se fosse eu a decidir optava por um bom edifício na baixa. Somos capazes de encontrar uma residência que tenha pertencido a alguém com posses que se deslocasse para o estrangeiro, ou mesmo para Lisboa ou Porto, e queira negociar o trespasse ou a venda do imóvel incluindo o mobiliário. Mais uma coisa, IMPORTANTE,vou perguntar à Dona Idalina, que te conhece desde miúdo, se aceitaria uma proposta de passar ao teu serviço e da tua mulher, como governanta. Penso que a sua experiência e dedicação seriam um grande apoio à nova dona de casa, que, pelo que dizes, não foi criada no seio de uma família mas sim como pupila num colégio de freiras. Com certeza que lhe faltará experiência nas coisas mais banais de uma casa. Com a Idalina pode entrar no ritmo rapidamente e sem se sentir diminuída.

  • De forma que trata de arrumar as vossas vidas. Não faças esperar mais a tua futura mulher e vai, a ser possível, ainda hoje, pedir autorização do tal Serafim de Sousa para casar com a sua filha. A partir de agora só quero saber o dia e o local onde se irá celebrar a boda. Encurtando, pois que as coisas aceleraram, casamos na Sé, depois de que o pai da noiva conseguisse autorização do bispo, já seu amigo do peito (dar dinheiro e prendas é sempre bem recebido pela Igreja. Não ligam às insinuações de pobreza e humildade que eles mesmo transmitem aos outros como sendo este o desejo de Cristo)

O Sousa quase que dava pulos de contente. Não sei porque tinha um desejo tão intenso para se ver livre da única filha. Mas o que conta é que ofereceu como dote de Constança uma enorme casa que tinha adquirido no Vale do Pito, e que fez renovar com obras de vulto, assim como caprichou em ajardinar com esmero, tanto na selecção de árvores como na plantação de novas espécies, que me disse ter procurado nos viveiros do Estado.

Casamos, houve festa, passamos a noite no Astória, recém inaugurado, e na manhã seguinte partimos no Sud-Express para Paris. Dali regressamos a bordo de um Bugatti, novinho em folha, que foi prenda da dupla avô e pai.
Quanto a uma instalação do casal naquele casarão do Vale do Pito, que eu já visitei a pedido do agora sogro, penso que é prudente deixar passar uns tempos. Que a Constança possa retomar laços de amizade com antigas colegas do colégio. Agora com outros moldes, e com total liberdade para entrar e sair sem ter que depender do meu braço como acompanhante. Só aceitarei a ideia de mudar de casa quando for a Constança a sugerir, e mesmo assim gostaria de manter a residência de Coimbra.

E cheguei à altura das confidências de índole reservada que tu, Luísa, mostraste curiosidade, ou vontade de comparar o ontem com o hoje, coisa que nem sempre é fácil e correcto, pois os tempos e as pessoas mudamos mais do que aceitamos sem meditar.
(1) Ir na berlinda ou na boleia são equivalentes. Correspondem a acompanhar o cocheiro da carruagem, aquele que trazia as rédeas das bestas e o longo chicote, que fazia soar no ar, sem atingir os animais mas avisando-os para acelerar o andamento.

Seguirá, com as confidencias prometidas, no capítulo LIV

terça-feira, 8 de maio de 2018

CRÓNICAS DO VALE – cap. 52



Confidências muito reservadas

- Zé, sabia antes de casarmos, não só por experiência contigo mas também pela fama que arrastavas atrás de ti, que eras um bode, um fauno insaciável. Mas, homem, tudo o que é demais é moléstia, tem um pouco de senso e recorda os anos que já te deviam pesar, pelo menos em teres mais contenção quanto aos instinto machistas acerbados -e quem diz tinto, pode referir branco, palhete ou espumoso, tanto faz dar-lhe na cabeça como na cabeça lhe dar- Procura ter mais calma, pois estás a exigir de mais dos meus interiores. VAIS DAR CABO DE MIM! É que se estou por perto não te contentas com uma, duas, nem três! E se estiver menos vestida, por assim dizer, então não escapo do tratamento,nem que seja no meio do corredor, contra a parede!

Compreende que uma mulher gosta de ser desejada, mas tudo tem o seu peso e medida. Com a falecida Constança também te comportavas assim?

Luísa, querida, deve ser o impulso do corpo para aproveitar a capacidade sexual enquanto posso. Mas com esta desculpa esfarrapada não te convenço minimamente, pois a bem da verdade tenho que reconhecer que desde a adolescência sempre andei louco pelas saias, ou mais concretamente, pelo paraíso que existia debaixo delas. Não te contarei as minhas aventuras “galantes” em idade de rapaz, tanto na Guarda como em Coimbra. Teria que fazer um esforço titânico para colocar os factos numa ordem cronológica minimamente correcta.Só te digo que seja pela figura ou pelocomportamento galante e respeitador que sempre mantive com qualquer rapariga ou mulher, viesse ela de onde fosse e pertencesse a qualquer estrato social, quando as queria galar todas eram peixe para apanhar na minha rede. Jamais me servi de uma prostituta. Foram sempre borlas consentidas e até desejadas. Mesmo depois de casado mantive esta atitude, e não me arrependo.

Mas não fujo à tua seta envenenada, em que colocaste a Constança na berlinda (1). Penso que unindo alguns comentários soltos deves ter feito uma composição de como a falecida esposa entrou neste País quando o seu pai, Serafim de Sousa decidiu deixar o Brasil, vendendo todos os seus bens e trazendo com ele, para a terra onde nasceu, ou melhor para Coimbra pois de trás-os-montes não tinha saudades.

Vinha acompanhado da sua filha, ainda uma criança do poucos anos, cuja mãe faleceu pouco depois do parto e a filha foi criada por uma ama, preta retinta, que o Serafim tinha engravidado. Diz-se que propositadamente sabendo da fraca resistência da esposa. A Constança nunca referiu que tinha um irmão no Brasil, de leite e de pai. São coisas incómodas que convêm esquecer, nem sequer citar.

Em chegando a Coimbra e no intuito de acompanhar o conservadorismo que, logo ao chegar, verificou que existia no sei da elite conimbricense, nomeadamente pelo núcleo fechado a sete chaves que lá existia, onde só uns tantos velhos fidalgos ou novos ricos já instruídos, gastadores e com filhos para casar (filhas solteiras era o que sobrava!) é que mereciam um abrir de portas naquele núcleo tão exclusivo e fechado a sete chaves que existia naquela cidade.

Serafim de Sousa, que sempre foi lesto como uma gineta (também conhecido como gato bravo) travestiu-se rapidamente num seguidor convicto e rigoroso dos preceitos da Igreja Católico, esquecendo o facto de ser elemento graduado da Loja Maçónica da Baía. Pensou, e bem, que mais adiante poderia bater à porta de uma loja de Portugal. De preferência aquela que lhe fosse referida como sendo a mais importante no centro do Pais. Para não perder tempo solicitou (apoiado numa “esmola”) a sua entrada, como membro activo, na confraria do Sagrado Coração de Jesus, que foi a que lhe recomendou o Sr. Bispo quando lhe foi apresentar os seus cumprimentos após ter regressado do Brasil. Tal como Serafim dizia entre dentes, para os seus botões do gilé (peça do terno que corresponde ao hoje denominado colete, já em desuso), Não basta viver, é preciso saber viver!

E assim a Constança, criança que falava em brasileiro, foi separada dos braços da sua ama e entregue à Madre Superiora do Convento. A tal ama de leite, -com café sempre eu disse- ficou na casa do Sousa recluída na cozinha como ajudante, e com autorização de subir até o leito do patrão quando ele a requisitasse. Não tardou em morrer de tristeza e saudade. Foi enterrada no talhão dos indigentes, sem identificar.

Constança foi educada nas regras, rígidas, das Carmelitas. Ali aprendeu a bordar, tocar piano, uns rudimentos de pintura e francês, além de papaguear o castelhano com que as irmãs falavam entre si. Nunca perdeu o lindo cantar da fala brasileira. Ali atingiu a puberdade, o passar ao estatuto de mulher pretensamente fértil. Já então o colégio conseguiu a autorização para leccionar o primeiro e segundo ciclos do liceu. Constança, quase que abandonada pelo pai, mas com as mesadas religiosamente pagas, continuou naquela quase reclusão.

As únicas saídas consentidas, por falta de familiares que a procurassem, eram as idas à igreja, a Sé principalmente, as vistas múltiplas a templos na Semana Santa e uns poucos passeios, para a colina da saudade, choupal e pouco mais. E sempre acompanhadas e vigiadas pelas freiras mais velhas, permanente de olhos postos não só nas alunas a seu cuidado mas, principalmente, no comportamento das noviças, pois sabiam que estas, tendo o sangue ainda quente, desviavam o olhar para o cruzar com o dos estudantes, que como moscardos sempre rondavam estas colunas de meninas. Já foram várias as noviças, que entraram empurradas pelas famílias e curas, que chegadas à cidade se escaparam com algum estudante. Alguma casou, e outras ficaram por aí, até com filhos nos braços...

Eu era um destes fardados de capa e batina, como os seminaristas, que andava à caça. Ali havia peças muito apetecíveis e alguns dos colegas tinham conseguido resgatar alguma menina. Se outros tinham sucesso eu também o teria! Além de seguir os passeios higiénicos, um local bom donde estender as redes era nos templos. Procurava ficar na fila seguinte ao do grupo, e não tardei em fixar os olhos naquela moça tão diferente, que vim a saber se chamava Constança. Não tardou em nos tornar espertos nas trocas de mensagens; fossem papelinhos ou olhares com pálpebras meio fechadas, para disfarçar.

Segue no capítulo LIII