terça-feira, 24 de julho de 2018

CRÓNICAS DO VALE . Cap. 58


Com um pé no avião

Já preparados para ir até Coimbra e enquanto tomamos o pequeno almoço lembrei-me de uma anormalidade que senti no salão, aliás nos dois pois a experiência repetiu-se em ambos. As clientes juntavam as cabeças para cochichar e exclamavam aqueles “não me digas”, que traduzido o eufemismo quer dizer conta mais que isto é saboroso, e seguidamente agarravam no telelé para distribuir a novidade, tapando o bocal com a outra mão e assim fingir estar segregando. Passados uns minutos perguntei às empregadas o que acontecia de tão importante. Enviaram-me para a Ivone, que tu sabes ser a minha chefe de plantão quando eu não estou.

A Ivone tentou deixar passar a bola, mas quando lhe apontei o entusiasmo que reinava entre as galinhas (são as clientes, caso não soubesses) teve que abrir o jogo e contar-me que se tinha apresentado, na Câmara Municipal, uma brigada mista das Finanças e Judiciária para ver e estudar ao detalhe a documentação de alguns serviços. A reacção imediata dos curiosos foi a de que esta presença inesperada devia ter alguma ligação com os mortos da casa do Vale. Eu disse-lhe que não parecia ter nada a ver uma coisa com a outra. Que os assassinatos não acostumam a ficar documentados nas Câmaras. Que isto deve ser consequência de alguma denúncia. Tu tens ideia do que se está a passar?

- Ouve Luísa. Sabes que eu nunca quero saber de política e de políticos, e em quase todas as Câmaras Municipais, para não dizer que em todas pois não quero carimbar sem conhecimento de causa, surgem assuntos que podem levar a denúncias. Os eleitos foram apoiados por algum partido, e nas estruturas existem sempre interesses, sejam pessoais ou de negócios. Depois surgem os compadrios e os concursos amanhados, ou decisões tomadas sem concurso, desdobrando as empreitadas para não atingirem patamares com exigências legais que se for possível vão fintar.

Ou seja, com as decisões camarárias, nem sempre podem-se evitar que os preteridos se sintam ultrajados, e daí a fazer reclamações e denúncias. Numas mais e noutras menos eu creio que será o pai nosso de cada dia, especialmente naquelas Câmaras com orçamentos vultuosos. Neste caso, comparativamente, pode tratar-se mais de uma quezília pessoal do que de montante elevado. O que te garanto é que eu, José Maragato, nada tenho que me ligue a esta inspecção, nem tenho nem tive qualquer negócio ou contencioso com a edilidade.

Luísa, esquece. Isto não é coisa nossa e o melhor é ouvir e calar, pois qualquer comentário teu ou meu, pode ser deturpado. São assuntos que não nos dizem respeito.

Esquecendo esta novidade, eu depois da conversa com o Dr. Cardoso, sinto-me mais leve, mais descontraído, mais confiado. Deixou-me a impressão de que, pelo menos no seu serviço, estão tomando este assunto dos mortos plantados mais seriamente do que eu temia. Isso não obsta a que certos capítulos permaneçam ocultos, em sigilo confidencial. Mas como a imagem que temos acerca das pessoas que se movem nas altas esferas já está mais do que feita, não os desprezaremos mais nem menos, humana e socialmente falando. Antes de ir visitar o Cardoso vamos passar pela agência de viagens onde eu, anteriormente, tratava de passagens, hotéis e trajectos.

Boa tarde, Dona Isaura. Como tem passado? Pelo seu aspecto, cada vez mais jovem, deduzo que a saúde, felizmente, não lhe tem dado cuidados de maior.

- O Doutor Maragato sempre tão amável. Mas garanto que em mim também pesam os anos. Por enquanto não sofro de grandes desgastes, mas sei olhar para o futuro observando as pessoas com que habitualmente convivo. Mas diga. O que é que o traz por cá, e tão bem acompanhado...

- Desculpe o meu descuido, Dona Isaura. Devia ter começado por lhe apresentar a minha esposa, de seu nome Luísa Maragato depois de papel passado. Um apelido que não soa muito bem,mas é aquele que herdei de família.

- Ao que íamos, ou viemos. Pensamos em aproveitar umas semanas de sossego antes dos calores estivais para dar um passeio pela Europa. Num esquema meio de grupo e meio por conta própria. Nós ainda não definimos grande coisa. Por exemplo: gostaríamos de passar uns três dias em Paris, incluindo um passeio pelos castelos do Loira. Depois saltar para Bruxelas, outros três dias. E depois Berlim, outra paragem. Daí saltar para Viena, dois dias ou três. O percurso pelo Danúbio, que é tão afamado, a mim, pessoalmente, não me entusiasma, pelo menos se for longo; com uma escala e passar para terra já ficaria satisfeito. Mas com um bom livro e umas bebidas sou capaz de aguentar sem me atirar à agua. Visitar Budapeste é fundamental.

O melhor, a partir destas linhas, que se podem alterar com pareceres fundamentados ou outras vontades da Luísa, eu vos deixo. A Dona Isaura se tiver paciência de uma ajuda e carregue a esposa de folhetos. Depois, em casa ela fará a sua análise, que discutiremos (sem pelejar). E nos próximos dias voltaremos para formalizar a encomenda. Agora eu tenho que visitar um amigo na Polícia Judiciária, que penso estarem instalados ai perto. Até já. Não me demorarei, espero bem.

- Boa tarde, Aqui está o meu Cartão de Cidadão para me identificar. Será possível saber se o Dr. Sílvio Cardoso se encontra no serviço, e caso afirmativo poderia perguntar, se fizer este favor, se me pode atender um momento?

- O Dr. diz que o pode atender de imediato. Eu o guiarei pois sinto que não conhece o interior desta casa. Faça o favor de me acompanhar.

- Dr. Cardoso, desculpe o importunar no seu trabalho, mas surgiu um tema que, não estando ligado directamente com o processo que nos levou a ser partes integrantes, de lados diferentes mas não opostos, segundo eu avalio. Pois bem, como ficamos mais tranquilos quanto à evolução oficial do inquérito, pensamos, a Luísa e eu, se poderia ser aceite que tomássemos umas férias antes dos calores estivais, e viajássemos pela Europa durante umas três semanas. Sei que não estamos qualificados como arguidos, mas não queria “desaparecer” sem dizer aquilo do água vai! Daí que antes de avançar como plano de viagem quis saber se existia algum impedimento oficial. O que me diz o Dr. ?

- Vão descansados e desfrutem. Todavia e na previsão de qualquer imprevisto que os possa implicar, se o Amigo Maragato, quando tiverem o plano de viagem definido, com dias e estadias marcadas em hotéis com telefone e o resto da modernidade, seria bem visto que nos deixasse uma cópia. Se bem que hoje basta saber o indicativo do País onde se encontrem para que com o telemóvel os poderia contactar.

- Obrigado Dr., E recordo uma sua pergunta que, por estar pendente de outro assunto, deixei passar sem resposta. Estranhou o nosso apelido de família Maragato. É o mesmo esquema do que acontece com aqueles que carregam, oficialmente, com o apelido Algarvio, Alentejano e outros. Sem ser uma cristianização de judeus ou se calhar até teve a sua origem nestas conversões forçosas, o nosso Maragato vem apenso ao facto de que a origem da família estava na Maragateria, uma região espanhola de cariz rural. E todos os que dali se deslocavam para outras regiões, eram apelidados de maragatos, como aqui os bimbos, por exemplo.




CRÓNICAS DO VALE - cap. 60


Balanço do almoço "campestre"

Bem, a fase se de convívio terminou por hoje, e o balanço não é bom nem mau, antes pelo contrário. Pelo menos no que se pode referir às conversas de circunstâncias que tive com o Cardoso. Naquele bocado em que estivemos a sós no carro, entre o restaurante e a nossa casa, aproveitei uns minutos para mostrar o meu não alinhamento, pelo menos na totalidade das versões que me chegaram ao ouvido, e insistir em que deve m existir muitas páginas reservadas, e outras alteradas para ficarem aceitáveis.

E o que respondeu o Cardoso?

Só uns sons inexpressivos, quase que de ruminante com indigestão, e alguns sorrisos condescendentes, ou uns abanar de cabeça que poderiam indicar que não foi assim como eu imaginei que as coisas aconteceram. Mas palavras? Daquela boca nada saiu que o pude comprometer. Aliás eu pedi-lhe, com insistência, que evitasse problema, e que num caso desta índole, que o menor descuido lhe poderia ser prejudicial, a sua profissão implicava um secretismo de Estado e da sua conveniência. Por assim dizer.

Mas já me esquecia, e seria imperdoável. Aquele telefonema que recebi há uns temas importantes, nos quais tenho que dar a minha opinião, entre durante o almoço, era do Nelson Sousa, aquele mais ou menos sócio que tenho em Ermesinde, que me convocou para hoje, segunda feira, sem falta, porque há uns temas importantes, nos quais tenho que dar a minha opinião, entre Barcelos e a Maia, onde se jogam grandes quantidades de capital. Parece que o mercado está a acordar, mas por enquanto não sei se para cima ou para baixo. Tenho mesmo que sair de madrugada e, como tem sido habitual, irei dando novidades.

Voltando aos comentários acerca do casal Cardoso. Tenho que entender que a minha “amizade” com este inspector é anormal, contrária ao seu estatuto e dependência. Por isso vai ser difícil manter um convívio com tantas restrições. Se eu pretender encontrar esclarecimentos terei que procurar noutros caminhos. O que não faltam é informadores e linguareiros, desejosos de mostrar que estão dentro dos segredos. Que na maior parte das vezes não passam de segredos de Polichinelo.

E a vossa mini-excursão agronómica, foi interessante? É que mal entraram em casa a Doutora Diana afirmou que tinham que regressar a Coimbra pois estava preocupada com a mãe dela. Nem sequer se sentaram. E ele aproveitou a dica para engolir, de uma golada rápida, metade do gim-tónico que lhe tinha servido. Calma! Foi ele que me perguntou se podia beber esta mistura, mas com água tónica bem gelada? Devia sentir a digestão pesada!

Já notaste que a Doutora Diana -uma chatice, que nem em casa, sem testemunhas, consiga tirar o canudo às pessoas. Somos industriados desde crianças nos preceitos de respeito e boa educação e, sinceramente, já estou mais que cheia disso. O melhor que encontro quando passamos a fronteira é que ali são muitas raras as pessoas que são tratadas por um canudo, ficam-se pelo Don Este e Don Aquilo. Serve para todos.

Mas voltando ao que me perguntaste, a Diana é pessoa de bom trato e bem educada desde o berço, de modo que nunca se sabe se está a fingir nos seus elogios ou comentários, no propósito de agradar, ou se de facto correspondem a um impulso natural. É tão convincente que não consegui catalogar a pessoa neste aspecto. Seja como for, além de dizer que gostou do que viu, até me deu umas dicas, ou orientações, que me pareceram muito úteis e pertinentes. Quando passar o Ernesto, e eu o veja, terei que lhe apresentar estas ideias, mas fazendo de conta que as li numa revista de jardinagem e horta.

Pessoalmente lamento que, por solidariedade conjugal, tivesse que acompanhar a Diana com as cautelas que a profissão do marido implicam. Preferiria que fosse um conhecimento do salão ou de outro lado qualquer, sem interferências se estatutos sociais. Não sei se consigo explicar o que senti. Mas como pessoa, a Diana, até agora deixou-me uma grata impressão.

segunda-feira, 23 de julho de 2018

CRÓNICAS DO VALE . Cap. 56


José Maragato não se mostra convencido

Soube que as senhoras esposas mostraram interesse em visitar a recente horta da Luísa, proponho que não nos demoremos em excesso na apreciação das iguarias, que tão sedutores aromas emanam. O que não quer dizer que se pretenda engolir sem mastigar. Já me entendem. Temos tempo suficiente para apreciar as sobremesas e os cafés.

Então, estamos todos satisfeitos e prontos para esta aventura no local, não digo dos crimes, mas dos cadáveres insepultos? CALMA!!! Não pretendo vos conduzir ao lugar propriamente dito, os maridos, de cuja classe pertenço, conhecemos de sobra este canto da propriedade. Que fica bastante longe da área que vão visitar.

- A Doutora Diana convidou-me a fazer a viagem no seu carro, e assim ter uma janela temporal sem sermos ouvidas e controladas. Evidentemente aceitei com agrado. Agora os “rapazes” terão que passear juntinhos e com juízo, especialmente porque, distraídos como estavam, reparei que despejaram os copos mais do que uma vez. O mesmo não aconteceu com a minha condutora, de quem eu serei a pendura. Posto isto e porque sempre existe a risco de que ande por aí, extraviada, alguma patrulha da GNR com necessidade de apanhar alcoolizados, nós iremos à frente, marcando o passo, e os rapazes nos seguirão. E não há nhó-nhó nem meio nhó-nhó- Nós é que mandamos!

- O que as damas mandem, nós obedecemos, como sempre (menos quando não existe um grande risco de ficarem a saber o que estamos a fazer...) Apesar de ser uma autoridade, coisa que eu nem a cabo chego, o Inspector Doutor terá que aguentar que aqui o dono da viatura seja, por um bocado, o comandante em chefe! Vamos a isto, e que tenhamos uma boa viagem, mesmo que curta, pois quase que não dava para um avião levantar voo.

Como podemos admitir que a estrada é um terreno neutro, propriedade de todos os cidadãos e de nenhum em concreto, peço ao Amigo Doutor Cardoso que me deixe dissertar sobre uns pormenores que não posso admitir estejam suficientemente claros.
Para já ainda não tenho a certeza de que o depositarem cadáveres nos meus terrenos, e mais sendo a uma distância relativamente curta do local onde se supõe que foram liquidados, seja ou não uma causalidade. Recordo que foi referido ter sido visitado, poucos dias antes, por um sujeito que se afirmava como intermediário, uma espécie de agente imobiliário, mas sem se identificar, que pretendia saber, ou propor, se estaríamos interessados em vender a propriedade. Deu a entender que mais o que a área rústica o que valorizavam era a volumetria da construção e até do armazém anexo. Não lhe dei andamento e partiu sem mais.

O usar, poucos dias depois, a propriedade como uma espécie de depósito clandestino de mortos terá alguma ligação com a visita e as duas situações, ou seja as festas com drogas e sexo louco, que se admite estarem ligados ao primeiro cadáver, serão todos peças de um mesmo quebra-cabeças?

Depois, e estando nós “fugidos” mas com o conhecimento das autoridades, como sabe, entraram em campo as tropas clandestinas dos ciganos. Terão estas gentes, que qualificamos levianamente como de pouco nível, poder dissuasório para conseguir que a equipa internacional de bandidos tivesse duas baixas, um dos quais se soube ser partícipe directo de duas mortes? Posso admitir que muitos destes elementos da blindagem não sejam possuidores de mentes brilhantes. Mas o esquema dos ciganos, a ser verdade, parece de uma singeleza própria de catequistas.

E mais espantoso ainda é o facto de que, com mostras evidentes de ter sido punido internamente, pelo seu próprio grupo, nos oferecessem, como se fosse um prémio de consolação, mais um cadáver, também ele anteriormente identificado com um membro do quarteto de distribuição de carcassas?

Não quero que o Cardoso me esclareça nada. Só pretendo que fique claro que não vejo tudo isto como tão credível como as histórias da cartilha maternal. Não tenho elementos onde me basear. Só simples deduções e experiência de vida. Mas SUSPEITO que estes atrevidos acontecimentos causaram um grande vendaval nos meios políticos, financeiros e talvez mesmo dentro das altas esferas eclesiásticas (bispos e cardeais tem fama de serem apreciadores de bacanais) Estes bandidos mercenários foram contratados. Não foram eles que organizaram o encontro de alto nível, assim como é pouco provável que conhecessem a identidade das personagens importantes que por lá andaram. Só conheceram as prostitutas, de diferentes estatutos, os maricas e pouco mais.

Apostaria que se movimentaram muitos telefones, se pediu ajuda e colaboração dentro do poder. Que se contactaram e pressionaram “a bem da boa imagem do País” todas as Interpol, Europol e, se foi necessário do Futebol, que através da sua FIFA deve conhecer muita roupa suja.

E já desabafei. O Cardoso, pelo muito que tem que resguardar, (e suponho que dentro da sua organização devem existir muitos Brutos ansiosos de darem facadas pelas costas a os que imaginam os estorvam), agradeço que tenha ouvido e esquecido, que se cuide e se for necessário negue que tem qualquer convivência comigo. Recorde que Judas e Pedro, negaram o que nos seus papeis lhes calhava fazer. Mesmo assim fique com a noção de que já não uso chucha desde muitas décadas atrás. E mais, que sou muito desconfiado.

Chegamos, as duas equipas em boas condições., e sem cumprimentos dos militares da GNR.

Esposas amadas, ou Amadas Esposas, uma vez que neste caso a ordem dos factores não altera o produto, coisa que não se pode fazer no ramo da culinária. Será que preferem fazer a visita agrícola sem interferências? Se assim for nós, os anteriormente designados cabeças de casal, entraremos em casa e tomaremos um refresco, possivelmente um café mais um scoth velhinho e um abano. As esperaremos na sala.


CRÓNICAS DO VALE . Cap. 29




- Bem chegado Amigo Medeiros, também Presidente, mesmo que em certas ocasiões prefira deixar o estatuto de lado. É possível que, nem que fosse de vista ou de falatório, já conhecesse a minha actual esposa, depois de tantos anos de viuvez. Chama-se ISABEL Figueiredo, filha de um dos primeiros mortos no Ultramar do século XX, concretamente em Timor. Empresária e agora esposa.

Para ir até o restaurante que me disse recomendar podemos marchar a pé ou é melhor entrar num carro?

- Esta Vila não é das maiores e o local fica aqui no centro, de forma que andaremos e pelo caminho, que será curto, poderemos falar. Se não estou enganado a Dona Isabel tem um Salão de Beleza aqui na Vila, onde a minha mulher é cliente, com total agrado, segundo afirma (desta vez não se trata do Pereira) e que me deu as melhores referências tanto no trato pessoal como nos cuidados profissionais. Hoje não me acompanhou porque lhe insinuei que o jantar era quase que oficial, mas, precavida e desconfiada como são todas as mulheres, especialmente as esposas, deve ter cheirado que a Dona Isabel estaria presente. Não me pareceu melindrada, e até me encarregou de que, em caso de se confirmar esta companhia, lhe transmitisse os seus mais amáveis cumprimentos.

    - Senhor Presidente, cá a Luísa pede que desculpe, Senhor Medeiros -ainda não me compenetrei de que devo prescindir, em privado evidentemente, do tratamento oficial- Mas quero deixar constância de que estou totalmente inocente deste crime, pois que afastar a sua esposa de um jantar entre amigos é mesmo um crime. Quando chegar a casa vai levar tau-tau! E já agora, se não se importa, qual é o seu nome caseiro, o de iniciar a assinatura?
    - Óscar, um nome histórico, que o meu pai foi buscar ao tio que o meteu no seminário, de onde se escapou enquanto viu uma porta aberta. E a porta foi ter deitado o olho à minha futura mãe. E segundo ela mesma me contou, ao ver alto e bonitão, mesmo com as vestes do seminário, que eram as mesmas dos agora estudantes de Coimbra, decidiu que merecia um sorriso de incitamento. E cá estou eu para confirmar.
    E já chegamos ao cantinho donde gosto de petiscar. Façam o favor de entrar.
- Pois eu, que também tenho almoçado aqui, e até jantado, não tenho memória de ter coincidido consigo. A partir de hoje já não poderei dizer que não partilhamos nada. Não me olhe desconfiado. é uma piadinha do mais angelical. Nem os tais seminaristas perdiam tempo com uma graçola destas, sem graça como é evidente.

Já que entramos e viemos para jantar, atendendo a que nós, os homens, não somos crianças e as digestões pesadas se pagam caras, com azia e insónias, sugiro que escolhemos pratos simples, frugais ou por aí perto. Veremos o que nos sugere a Cozinheira e Dona, que se recordo chama-se Gertrudes.

- Boa noite Dona Isabel e estimados senhores acompanhantes. Aparecem com muito apetite ou preferem alguma especialidade caseira que não lhes tire o sono?

- A Gertrudes adivinhou exactamente aquilo que os três comentávamos agora mesmo. Nem vale a pena ler a ementa do dia, caso fosse válida para o jantar-ceia. Diga o que nos propõe, se faz a fineza de nos orientar.

- Pois bem. Tenho umas trutas de rio bravo, que com uns grelos cozidos levemente, mas tenros como bebés, dão uma boa entrada. Depois posso preparar uns pratinhos, estilo tapas espanholas, mas bem servidas, com pipís bem temperados, lascas de lombo de porco preto grelhadas e com rodelas de batata doce, carapaus frescos em escabeche, e até uns ovos mexidos com espargos bravios. Creio que é bastante onde escolher, de modo que se há alguma coisa que não apetece ou querem sugerir algum prato que sabem eu faço bem, peço que, em confiança, digam.

- Da minha parte, e sem saber o que preferem os outros, dispensava os pipís e trocava por umas lascas de bacalhau, do alto, bem desalgado e temperado com vinagre de maçã, colorau doce e pimenta preta. Mas o quê dizem os membros do recente casal, já de papel passado? Isabel, pronuncie-se, s.f.f.

- Pois até estou em acordo com o deixar os pipís para uma petisqueira de vinho tinto, com caracóis e búzios, que são primos direitos uns dos outros. E se posso opinar, além de água fresca sem gás, uma garrafa de verde branco, do nosso ribeiro de Monção, creio que daria o complemento correcto.

- E não conseguem entrar com uma malga pequena de caldo verde, enquanto esperam? Foi feito agora mesmo; não são sobras do almoço.

- Tá certo, a Dona Gertrudes é que sabe. Ah! E pode servir os pratos consoante ficarem prontos, pois cá daremos conta de tudo.


domingo, 22 de julho de 2018

CRONICAS DO VALE – CAP 55



Que seja um almoço sem problemas

- Se me for permitido gostaria de poder deixar algumas meditações que me tem ensombrado nos últimos dias. E mais concretamente no que se refere à temática que, supostamente, estava na programação para amenizar o encontro. Resumindo o muito que pretendia dizer, no fundo creio que o mais correcto, e também prudente, é abstermo-nos de temas de índole profissional. Atendendo a que eu me movo numa profissão liberal só tenho obrigações fiscais e legais a respeitar, além daquelas regras sociais que nos permitem viver em harmonia como resto da população.

A situação do Amigo Dr. Cardoso é, devido à sua profissão oficial, bastante diferente, se não mesmo situada nas antípodas. A casualidade ou os imprevistos nos colocaram no mesmo caminho, mas felizmente depressa se entendeu que não em direcções opostas. Todavia é de bom sentido entender que se alguém pode ter o rol de puxar pela língua aos outros é o Cardoso aqui presente; enquanto que eu nem devo tentar saber pormenores que estejam fechados, seja no trinco ou a sete chaves mais uma combinação electrónica, nos domínios do tantas vezes referido segredo de justiça.

Estou convencido de que os quatro aqui presentes, incluído eu mesmo, já entendemos o interesse mútuo que nos obriga a esquecer os acontecimentos e as sequelas que tiveram origem no Vale do Pito. Lamento que o meu monólogo tenha sido demasiado longo e pesado. Mas confio em que não entremos num mutismo complexado. Há temas no ar que podem servir para dialogar, sejam as férias já gozadas e também as programadas, os projectos pessoais. Podemos entrar de tudo um pouco, salvo, se me quiserem fazer um favorzinho, o tema do desporto-rei, e por tabela, da política oficial.

- Entendi e agradeço as suas palavras. Confesso que propus este encontro com algum receio. Corrijo, bastante receio dentro do estrito ambiente profissional onde exerço, pois existia a possibilidade de que ao longo das conversas deixasse escapar algum pormenor que sei não é desejado-entenda-se pelas altas instâncias- que transpire para a opinião pública. E daí o perigo de eu poder ser sancionado sem apelo nem agravo.

- Cavalheiros, permitem que as senhoras possam abrir um novo trilho? É que eu, sendo filha de proprietários rurais, do tal Portugal já nas fronteiras do profundo, e estou falando na zona de Seia-Gouveia, depois que, por decisão de estudar fui transplantada para Coimbra, onde residimos já casados. Num bom andar mas sem logradouro. Quando vim a saber -numa das poucas ocasiões em que o meu marido deixa escapar pormenores inócuos de algum dos seus processos- que a amiga Luísa. Posso trata-la assim?, tinha uma horta pessoal para folga espiritual, além de um amplo espaço de jardim entre o rústico e o quase selvagem, mas que já estava em processo de ser invadido por flores, fiquei mordida de inveja.

Sendo menos intensa na terminologia, é mais correcto dizer que também eu desejaria poder passear por um jardim, mesmo pequeno mas meu, onde pudesse mudar as plantas, colocar novas espécies, cortar uma flores para colocar numa jarra, em vez de as ter que adquirir numa florista. Sei, por recordar o que via na minha mãe, que uns goivos que vimos crescer e florir são mais apreciados do que uma orquídeas ou outras flores espectaculares que nos chegam de avião desde a Holanda.

Garanto que se não estivéssemos agarrados, por profissão de cada um de nós, à cidade, o que eu mais desejo é um dia poder encontrar uma casa isolada, sem vizinhos de parede, com um logradouro folgado, que não recordassem estas moradias das chamadas zonas residenciais, onde depois de meter a garagem e uma piscina inutilizável os restantes metros quadrados estão pavimentados. E, no caso de quererem ter flores serão em vasos. Eu queria ter salsa viva, e coentros, e hortelã, um arbusto de louro e mais outras plantas de flores e de cozinha. Sem esquecer umas alfaces e meia dúzia de cebolas, digamos verduras de cozinhar. Mas isso implicava nos deslocar alguns quilómetros do centro da “lusa antenas”.

Quantas vezes eu fecho os olhos, e choro sem lágrimas, por ter entrado neste circuito, que é mais um labirinto, um jogo da glória, onde tenho que preparar aulas, fazer pontos de exame, corrigir respostas que mostram a ignorância quase que geral, de gente que inclusive desconhece o seu idioma. Naquelas alturas sonho em me sentiria melhor no papel de dona de casa, com filhos e sofrendo os mesmos problemas que teve a minha mãe. A minha geração decidiu protelar os filhos, deixando a idade que fisiologicamente era mais indicada para tal, em prol de um carreira profissional. E daí que, por inércia, se degradou a imagem social da dona de casa. Um erro.

- Doutora Diana. Estive muito atenta ao que nos disse, e quando o José me mostrou a sua casa no Vale, e em simultâneo me disse que desejava interromper, sine die, o seu estado de viúvo-solteiro, e quando vi a amplidão do espaço que rodeava a mansão -para mim o tamanho me induz a chamar de mansão- fiquei extasiada. Ou seja, entendo o seu penar e creio, que aproveitando o não estarmos longe e os dias serem longos, sugiro que abreviemos o tempo dado ao repasto e rumemos para o “famoso” Vale do Pito. Estão de acordo?

- Luísa, por mim tudo bem. Teremos todo o prazer de abrir as nossas portas ao casal, se bem que o Cardoso já o conhece. Só tenho um detalhe a ponderar: Que não se fale em mortos nem nas sequelas, tal como coloquei ao chegarem os acepipes. E agora vamos aos grelhados e os molhos especiais que o dono nos apresentou. Cheira bem e deve saber melhor!


sábado, 21 de julho de 2018

CRÓNICAS DO VALE – CAP 54


Como o rabo solto da sardanisca

- Isto de termos um local certo para a refeição do meio-dia é muito práctico. E como cheguei primeiro já escolhi mesa. Como correu a tua manhã? Pela tua cara não me parece que tenhas tido muitos desgostos.

- Não propriamente. Tive que acertar o quadro das férias do pessoal, incluindo as eventuais já conhecidas de outros anos e do Natal passado. O normal nesta altura do ano. Passaram uns representantes já conhecidos e as encarregadas limitaram-se a dar a lista de produtos que necessitavam para o seu trabalho, e que neste mês, dado que as damas molham as cabeças no mar ou nas piscinas, carecem de visitar o salão com mais frequência do que no inverno. E daí que a caixa movimenta-se com agrado.

As clientes continuam com o entusiasmo de mexericos a propósito da despedida abrupta e sem sessão solene, do Dr. João Pedroso, que só recolheu ao curro para juntar os seus papeis, roupas e peças mais queridas para que a empresa de mudanças que contratou levasse para um destino desconhecido. Dizem que lá para os lados de Abrantes, de onde a sua família paterna era natural, e ainda possuem uma boa propriedade rústica mais uns prédios na cidade.

O andar onde morava este casal, digamos que anómalo, embora as coscuvilheiras da Vila se dedicassem, com fruição, a fazer uma extensa lista dos casais onde o adultério é reconhecido. Retomando o tema do andar. Consta que é propriedade da Câmara Municipal, ou pelo menos que a renda era paga na tesouraria. As mobílias ficaram quase na totalidade, e existe uma certa curiosidade para ver se também são da Câmara ou se o marido ou a esposa partilhada ainda as mandarão retirar.

Seja como for isto não passa daquilo que tu chamas de fait divers, e que, com mais ou menos molho acontecem em todas as terras e bairros, inclusive em muitas famílias que não constam da lista de famosos.

- Tens toda a razão, como sempre. Sucede que esta ideia da fidelidade só se cumpre, em teoria, na Companhia de Seguros, e que as pessoas mudam de critério com mais frequência do que das suas células corporais, que dizem a maior parte é substituída após um período de cinco anos de utilidade pública, como quem diz. Para onde vão depois? Quem sabe. Se calhar partem com as fezes ou a urina, ou são canibalizadas por outras células encarregadas de recuperara a sua energia. Para mim é indiferente. O que interessa agora é que, depois de almoçar e cafetejar, deixaremos a Veneza portuguesa -supremo alarde da ignorância e do desprezo para as dimensões relativas- e rumemos para Coimbra, para algumas compras que estão programadas, e mais o que surgir no momento.

Já no dia seguinte Domingo

- Bom dia Dr. Cardoso, e suponho que esta senhora que o acompanha é a esposa Dona, ou melhor dizendo Doutora Diana. Desta forma bastante atrapalhada, a partir de agora já estamos apresentados. As duas esposas, apesar de tampouco se terem encontrado visualmente já falaram entre si.

Esta vivência recorda-me uma outra, acontecida quando estudante universitário. Um amigo que habitualmente era o meu companheiro de passeios e cinemas, veio ter comigo para me solicitar que fosse com ele num encontro de engate que fez com uma empregada de balcão. Ficaram em se encontrar na esquina de duas ruas, mas ela viria acompanhada de uma colega, sua amiga, e daí que o meu colega necessitasse de um parceiro para entreter a desconhecida. E lá fomos para o local do encontro. Chegaram as duas meninas e a já conhecida do colega, pelo menos da fala, estendeu a mão e disse “desde já me apresento e aqui a minha amiga”, e o visado respondeu: “E eu também, e aqui o meu colega”. E assim se fizeram as apresentações não nominais. Não recordo que aquilo durasse pouco mais do que um café e despedidas, sem que os nomes de uns e outros surgissem com claridade.

Desta vez o encontro foi muito mais correcto,digamos que normal sendo os quatro bem adultos e formados. Aquilo foi um desvario de estudantes e jovens com mais esperteza do que aquilo que os estudantes malandrecos pensavam ser o que encontrariam pela frente.

- Amigo Cardoso agora tem a palavra e a bússola para nos orientar para o local onde, esperamos que tranquilamente, possamos ter um repasto e uma conversa desassombrada.

- É como diz, amigo Maragato, estamos muito perto. É uma churrasqueira afamada por terem sempre carnes frescas e tenras, que sabem apresentar num ponto correcto. Além disso o acompanhamento não se fica nas habituais batatas fritas em palitos, mas incluem batatas assadas na brasa, assim como legumes grelhados e também cogumelos, que adquirem em produtores de confiança, se bem que na época própria, não deixam de oferecer alguns dos cogumelos silvestres que os conhecedores colhem nas matas em redor. Se alguém preferir peixe grelhado, como é o caso da Diana aqui presente, que não mostra respeito à capacidade de caçadora da Deusa a quem deve o seu nome. Para ela, e caso de alguém a queira acompanhar, aqui podem deliciar-se com a carne de truta selvagem.

Antes disso, e a fim de fazer boca, proponho que tomemos um aperitivo e uns petiscos, em doses que pedirei sejam minúsculas, pois se não fizer esta observação arriscamos a ficar sem estômago disponível para o almoço propriamente dito.

- Entendido e aceite, mas como o interesse no encontro era mútuo, faremos contas à moda do Porto, ou seja fifty-fifty. E, antes de avançar nos nossos temas, já devem conhecer a surpreendente demissão, voluntária, do nosso Presidente da Câmara. E agora, para onde rumará este homem?

- Não foi tanta surpresa como imagina. No Governo Civil e nas instâncias do Ministério do Interior era conhecida a situação. Todos eram unânimes no desejo de que este gáudio da cidadania tivesse um fim. Inclusive consta que lhe foi insinuado, com bastante insistência, que era recomendada a sua desistência voluntária. Mas, amigo Maragato, não tenha pena do futuro desta personagem, por muito descrédito pessoal que lhe caísse em cima. Pertence ao aparelho do partido desde o seu tempo de liceu. Conseguiu manter-se no patamar superior na fase de jovens em formação, e se desperdiçou esta oportunidade numa Câmara de terceira linha foi mais por não saber travar os ímpetos sexuais da que escolheu por esposa, ou, como acontece em muitas ocasiões, ela é que o escolheu por ver que era pouco dominador.

O partido já lhe encontrará um posto para ter uma segunda oportunidade. Veremos se conseguirá portar-se como um verdadeiro líder. Também pode ser que este Pedroso seja como a pescada, que antes de a pescarem já o era. Não seria o primeiro que antes de dar o nó já os tinha bem crescidos. Dizem, os “sensatos” que este órgão, depois de lavado fica como novo. E se o futuro é prometedor, é fácil admitir este preceito de higiene. É tudo uma questão de estômago.

sexta-feira, 20 de julho de 2018

CRÓNICAS DO VALE - CAP 53


O tiro no rabo ainda ecoa

- Enquanto estavas no jardim, ou na “horta comunitária”, pois que aqueles canteiros parecem o que mostram nos jornais e nos noticiários como uma iniciativa “inédita” de algumas Câmaras Municipais deste Portugal dos pequeninos, e que existem desde há anos em muitíssimas cidades da Europa, pois, como arranquei para contar e depois perdi-me numa das minhas divagações, telefonou o Doutor Cardoso. Queria assentar o encontro de domingo.

- E o que opinou da tua proposta?

- Não a rejeitou, mas disse que ele já tinha, mais ou menos -certamente mais do que menos- marcado almoço num restaurante localizado, curiosamente, naquela zona. Concretamente em Vila-nova de Poiares, e como não tenho nenhum compromisso com a Lousã, aceitei a ideia. Ficamos em nos encontrar no largo da Câmara ao meio dia. E não se falou em mais nada. Tens alguma objecção?

- Eu? Nada de nada. A fita de que fossem as esposas a decidir não passava disso, de um faz-de-conta do ambiente machista. Mas, sendo totalmente franca. De facto a mim tanto se me dá um sítio como outro. Até podiam ter proposto que levássemos farnel, uma manta e uma toalha, mais copos, pratos, e o resto da tralha, para nos sentarmos num pinhal e dar de comer às formigas enquanto nos picavam. E, deves saber que procuram, nas mulheres, pontos sensíveis para morder e incomodar; certamente atraídas pelos aromas das feromonas ou como se denominarem os eflúvios destes sucos glandulares. Resumindo, para mim está tudo bem. Só espero, ou desejo, que esta Doutora Diana se mostre uma pessoa agradável e com um diálogo acessível, ámen de simpático.

Já que esta lebre está corrida, como se diz na linguagem informal, tenho que ir até à Vila, e se calhar até Aveiro, para tratar dos meus afazeres profissionais, caso não tiveres coisas urgentes e concretas para fazer, gostaria que me acompanhasse. Não sempre ao meu lado, como se levasse um caniche pela trela, até porque o teu tamanho e curriculum não se enquadra nesta imagem. A minha ideia era viajar no mesmo carro, possivelmente almoçar fora, e de tanto em quanto nos separarmos um do outro, deixando um local e uma hora no ar para voltar a reunir. O que opinas?

- Assino já por baixo. Não quero entrar no teu terreno, mas esquecer coisas é normal em qualquer pessoa. Confio em que não esqueças de avisar a Idalina de que não almoçaremos em casa. E tampouco no domingo, inclusive a ceia. Vou-me arranjar e fazer uns telefonemas enquanto te aprontas, pois se tenho que aproveitar a deslocação o mais prudente é combinar previamente os encontros que me convêm. Não gosto de andar ao calhas e depois ficar com um palmo de nariz porque o tal não está, seja porque foi ver como estão as uvas na sua vinha ou, sem o deixar dito, foi encornar algum desatento. Quanto tempo tenho disponível? Meia hora? Eu aposto que três quartos pode ser que não cheguem.

Antes de entrar na Vila. Soubeste mais alguma coisa do atrevido que faltava ao respeito ao Digníssimo Presidente da Câmara, e que este lhe mandou um balázio onde as costas mudam de nome? É que estas notícias de alcova, e outras que tais, não circulam entre os homens, a não ser em ocasiões especiais, após umas bebidas espirituosas e das piadas brejeiras; então pode ser que se entre na maledicência, seguindo as pegadas das suas companheiras, que os mantêm mais ou menos ao corrente dos sucessos de cariz humano, por assim dizer.

- Pois de facto já me contaram mais uns capítulos. O que levou o tiro, por puro azar já que aquela entrada era frequentada por muitos outros conquistadores, de praça conquistada já se vê. Este azarado teve que ir para o hospital de Coimbra, numa ambulância ní-nó dos bombeiros, porque na Vila não se encontrou um profissional da arte de remendar ferimentos que estivesse disposto a colocar o seu nome nesta história. Há quem já ponha em dúvida, e peça que se atrevam a apostar contra ele, em que este artista não voltará a circular pela Vila. Este adivinho já passou palavra em como aceita apostas sobre se regressa ou não.

Quem já se sabe que não regressa, pois que se diz e confirma-se, que apresentou a sua demissão no Governo Civil, é o Presidente da Câmara. O jornal da caserna refere que, após o ter mandado o tiro, choveram anónimos ao Presidente, afirmando que todos sabiam das aventuras da sua esposa; alguns destes beneméritos cidadãos, anónimos, entenderam que era conveniente (?) esclarecer o marido multi-enganado que os tem maiores do que aqueles bois transmontanos que lutam para satisfacção dos cidadãos presentes. Já se sabe que o anonimato, e mais se em grupo, oferece valentia as covardes.

Bem, agora estás por tua conta. Eu vou aos salões, que desde que casamos andam demasiado à vontade. Se tens que ir até Aveiro podes levar o meu carro ou vais num carro de praça, ou táxi que no fundo é a mesma coisa, mas fica mais bonito, mais moderno. Logo me dizes o que decides. No caso de ficarmos com quilómetros pelo meio, penso que podíamos almoçar em Aveiro, onde não faltam restaurantes de todo tipo. Aguardarei as tuas indicações.

domingo, 15 de julho de 2018

CRÓNICAS DO VALE – CAP 52

SENTEM-SE OS PODERES FÁCTICOS

- Já passaram algumas horas desde que, por sugestão minha, demos uma volta na recuperação da horta que a tua mãe mandou plantar quando vieram morar a esta mansão. Agora é a altura de me dares a tua opinião sem fingimentos.

- Aquilo que disse na ocasião só posso confirmar. E se não tenho propriamente uma vocação para plantar e colher cenouras ou nabos, mesmo que batatas, dado que plantar lascas de bacalhau não devem pegar e nos oferecer bacalhaus inteiros, sem escalar nem salgar, isso não obsta a que fique feliz por tu estares animada. Te ver na conversa com o Ernesto, comentando o que esperam ver crescer e frutificar, fez-me recuar muitos anos de vida; senti cá dentro como se a minha saudosa mãe se tivesse reencarnado em ti.

- Fico sensibilizada com este teu depoimento, sem notário para dar fé. Mas no que não gostei foi nesta tua visão de me veres de encarnado. Sou do Pourto e não me venhas com benfiquices. Ah Ah Ah. Agora, mais a sério, quando tu foste com o Ernesto até o armazém, adega, casa das máquinas e sei lá quantos mais nomes vocês lhe dão, chamaram-me desde a varanda por ter um telefonema em que perguntavam por mim. Não esperava nada de especial. Pensei que fosse alguma decisão num dos salões que era urgente e não queriam dar o seu ámen sem me consultar.

Para surpresa, mesmo recordand0 que já me tinhas falado nesta possibilidade, quem estava do outro lado da linha era uma senhora, com uma voz agradável, que me disse se chamar Diana, casada com o teu amigo (?) Doutor (isso nesta terra nunca se pode deixar esquecido) Cardoso. Referiu que o seu marido lhe incumbiu de acertar um almoço de casais que os dois homens já tinham alinhavado, sem concretizar data nem local.

- É verdade, e eu falei-te nisso. Só que pensei que fosse uma gentileza daquelas que não são para ligar. Que não teria continuidade. Mas não se ficou com algum roteiro mais ou menos definido.

- A dita Dona Diana parece que estava com a lição bem aprendida, apesar de que utilizou alguns subterfúgios, próprios das mulheres, para não abrir o jogo por completo. Se calhar receava que o seu telefone estivesse sob escuta. Mesmo assim, e como digo sem abrir o que se entendia nas entrelinhas, disse que o melhor dia para ambos era o domingo, pois o marido trabalhava ao sábado e ela era raro o sábado em que não passava pela faculdade para ver pontos ou preparar aulas. Por nós não havia problema. Era perfeito. E para donde nos deveríamos dirigir?, já que o meu marido me disse que eles, os “cabeça de casal” parece que pensaram num local, sem definir, onde pudéssemos estar sossegados e fora de sermos reconhecidos. Deu como certo que se desejava um almoço pessoal e não profissional.

- E...?

- Nada mais se disse sobre esta proposta. Só que a chamada era para ter uma abordagem inicial e que possivelmente o seu marido, um dia destes e aproveitando alguma deslocação de serviço, passaria pela nossa casa e então decidiriam. A seguir e para não parecer que tinha sido excessivamente seca e profissional, enveredou numa conversa de mulheres, sobre filhos, animais de companhia, casa, em como se conheceram na Universidade logo no primeiro ano, e blá, blá, blá, que não vale a pena relatar, nem sequer tentar recordar, passou como água saindo da torneira. Foi-se pelo ralo abaixo!

- Nos poucos minutos em que conversei com o Cardoso ele teve tempo de me apresentar esta sugestão, de almoçarmos num local onde a possibilidade de encontros fosse reduzida. Fiquei com a impressão de que se sentia incómodo, vigiado, pressionado e que o caso dos mortos plantados nos nossos terrenos foi, para ele, como um presente envenenado. Que lhe calhou a bola preta, como nas votações entre maçons. Posso estar enganado, mas inclusive as palavras que o Ortega não disse, ou seja o que estava insinuado nos seu relato e que nem ele, que parece ter caminho livre no seu comportamento, se sentia com coragem para nem sequer tocar, me indicavam que aquilo se encaminhou para um terreno fortemente minado.

- Posso concordar contigo, meditando no que tenho ido sabendo desde que nos vieram alertar de que os cães do feitor tinham encontrado o primeiro desgraçado. Bem me alertaste de que se aquilo estivesse ligado a reuniões ou festas de qualquer tipo, organizadas e comandadas por gente de peso na economia e na política, era muito perigoso teimar em saber de mais. E a prudência da tal Doutora e Professora de Universidade Diana Cardoso, que além de telegráfica nos seus dizeres, passou rapidamente a mandar bolas fora, causou-me um retraimento ao qual não estou habituada. No meu meio, onde a ilustração académica não é geral, as coisas dizem-se mais claras ou nem sequer se tocam, especialmente quando cheiram a merda. E há muitas qualidades de merdas, desde a diarreia incontrolável até aquela mais rija que só sai com ajudas. Agora temos que aguardar o que irá dizer, caso diga alguma coisa, o Dr. Cardoso quanto ao ainda não localizado “almoço de convívio e segredo”.

Da minha parte, e para que não parecesse que me descartava ou desentendesse, comecei a espiolhar na memória e tenho uma recordação, bastante difusa, de ter ido, quando os meus filhos eram crianças, até a Lousã, que nesta época do ano só deve ser visitada por grupos de escuteiros, comandados por um maduro de calção curto, velhos e turistas excêntricos. Ali as crianças desfrutaram percorrendo um castelo miniatura ao pé do rio. Depois, se não estou enganado, almoçamos muito sossegados e satisfeitos numa antiga azenha que fora modernizada para restaurante. Tudo isso foi no século passado, e nem sequer tenho a certeza de nada. Deixarei isto como uma pista e possivelmente o Cardoso já deve ter um local na sua mira.

- Parece-me uma excelente proposta. Não esta em concreto, mas o mostrares que te interessaste pela sua ideia.


sábado, 14 de julho de 2018

NATO, USA, REPUBLICANOS, TRUMP versus UE



Na semana que terminou assistimos, sem o interesse que merecia, a mais um ataque do presidente Trunfas, agindo sob a batuta dos seus financiadores ultra-conservadores americanos, onde dando mais importância aos seus interesses na indústria do armamento, deixaram na gaveta do esquecimento o respeito que deviam aos seus ascendentes europeus, e para mais de cor branca, como eles dizem estimar sobre todo o resto da população mundial.

Só para agradar aos pujantes países da Ásia decidiram incrementar uma política de confronto com os seus antigos aliados. Aparentemente neste seu desplante deixaram de fora o Reino Unido, quiçá baseando-se no afastamento que o governo actual de Sua Majestade mantêm no propósito de incrementar o afastamento das regras da União Europeia. Por isto se explica a demorada visita de namoro que o presidente dos USA está fazendo ao U.K., hoje já a título privado na Escócia. São salamaleques de namoro.

Paralelamente o oxigenado Trunfa proclama, diz e desdiz, sobre o seu propósito e deixar de ser o braço armado da NATO na defesa da Europa Ocidental, que considera decrépita e ultrapassada. Concretiza as suas queixas pelos montantes que os membros da UE dedicam ao armamento “defensivo”, enquanto que os USA gastam neste capítulo montantes muito mais elevados. Não pode tolerar esta disparidade!

Tentemos olhar desde as bancadas e tentar entender o que de facto sucede. Por um lado já se verificou que os USA não desejam que os conflitos armados aconteçam dentro do seu território. Preferem mandar seus soldados (a ser possível pretos, amarelos e ameríndios de fala castelhana, que se inscrevem como voluntários na fé de que, após uns anos de serviço, de preferência expondo o corpo aos ataques dos seus “inimigos” lhes concedam a opção de se tornar cidadãos de pleno direito) Os governos dos EUA tudo fizeram e farão para que não se repita o ataque a N.Y. Que derrubou as famosas torres gémeas e matou, directamente, centenas de pessoas. Mais os que posteriormente faleceram por causas anexas. Esforçam-se por esquecer a possibilidade de um ataque inesperado. Chegam ao ponto de lançar teorias de conspiração interna nas que se sugere, entrelinhas, que as suas agências de investigação, espionagem e contraespionagem, além de sabedores do plano de ataque, colaboraram no intuito de conseguir um clima de acentuado bloqueio ao exterior, do que eles entendem ser o seu patriotismo de fachada, muito mais promovido com convicção por uma boa parte dos seus habitantes.

Pensam que os possíveis perigos virão do seu ocidente, da Ásia, enquanto que a Europa dos seus pais, avós e bisavós, pode definhar sem que isso os preocupe. Dali é pouco provável que os ataquem, e com a UK do seu lado as garantias são quase certas. Mesmo assim desejam que o mercado para as suas fábricas de armamento de todo tipo, desde pesado até ligeiro, não percam nem um possível cliente. Na UE existem concorrentes que lhes disputam a clientela. Então uma das possíveis medidas a tomar neste assunto é a de os ameaçar em que deixarão, pelo menos como aviso, de ser o seu guarda-chuva. A não ser que se decidam a investir mais do seu orçamento na compra de armamento bélico, de preferência produzido no território dos USA.

Ou seja, como acontece quase sempre, se não mesmo sempre, o que está por trás de conflitos, sejam verbais, de ameaças ou mesmo de guerras, é a economia mais vergonhosa. O que se viu nestas últimas semanas foi mais uma versão da chantagem do poderoso sobre os que são, comparativamente, mais fracos. E com a pressão de os obrigar a gastar mais em armamento caçam dois pardais com um só tiro.

Visto desde outro ponto sabe-se que se um país qualquer desejar ter um orçamento interno equilibrado, e, por pressões externas, fica obrigado a retirar verbas de capítulos de cariz social para satisfazer os desejos de um manifestamente mais poderoso, neste caso concreto em armamento, que os próprios fabricantes se encarregarão de o tornar obsoleto, e daí o ter que comprar a nova versão, será a sua população que ficará desfalcada, sacrificada. Todos os que trabalham na execução de orçamentos sabem que se estica para um lado falta noutro. Nas contas nacionais, antes da moeda única, existia a falsa escapatória de aceitar a inflação, que, aparentemente, colocaria as contas no se devido lugar. A realidade viu-se, sempre, que era muito diferente, pois conduziu a uma acentuada pobreza nas camadas mais desfavorecidas da sociedade, onde se incorporaram novos cidadãos, anteriormente navegando numa classe média instável.

É sabido que dentro da UE há bastantes membros que possuem a sua indústria de armamento bélico, tanto para defesa como para ataque. E que o seu mercado interno não é suficiente para lhes garantir a produção e desenvolvimento. Tem que vender onde houver potencial de interesse em comprar, nem que para isso tenham que incitar, por vias não evidentes, os conflitos. Aqui, no mercado internacional, entram em concorrência com os maiores, entre os quais está em primeiro lugar, e destacado em certos sectores, os USA.

Disto tudo, que é mais do que sabido, restam as pressões para enfraquecer a Europa. Mas fica a certeza de que, caso a situação se tornasse de conflito aberto, a América voltaria a colocar os seus soldados neste velho continente e, com mais interesse, o seu material de guerra, com as facturas correspondentes. Pelo caminho as suas fábricas marchariam a todo vapor, dando lucros fabulosos aos promotores do conflito.

sexta-feira, 13 de julho de 2018

CRÓNICAS DO VALE – CAP. 51


O que nos ata

- Tentando escapar dos temas que nos ocuparam nas últimas horas, gostaria que me acompanhasses até os teus novos domínios, onde o Ernesto Carrapato teve a lembrança de recuperar a horta que ali mantinha a minha mãe. Isso se o feitor não estiver presente, pois neste caso recomendo que lhe facilites a oportunidade de brilhar, lhe faças perguntas simples mas pertinentes. Por exemplo, como em que altura é aconselhável semear, ou plantar pés tirados de um viveiro; ou quando pensa que já poderemos consumir algum destes legumes. Tu saberás orientar a conversa.

Olá Amigo Ernesto. A minha esposa insistiu em que viesse com ela para visitar este renascer da horta da minha falecida mãe e que a também já falecida esposa detestava, ou não ligava peva. Dizem-me que está afazer um bom trabalho, e como as minhas recordações de infância estão pouco nítidas apreciaria que, junto com a aqui presente Isabel me dessem umas lições de horticultura e, caso lá tenham chegado, de floricultura. Passo a palavra. Bem, quanto a alfaces, couves, cenouras, salsa e coentros creio que estou aviado. Mas e das flores?

- Marido, tem calma, as flores que se encontraram nos viveiros estão plantadas na parte da frente, em canteiros discretos que não ofusquem a ruralidade, domesticada, de arbustos e árvores. Quando dermos a volta à mansão poderás verificar como daquele lado, o que consideram nobre, também já se iniciou um bom trabalho. Mas a estação está muito adiantada e só conseguiremos algumas flores outonais, que não são as mais espectaculares, destacando, mesmo assim, a família dos crisântemos. Todavia os que se plantaram este ano, caso floresçam, é pouco provável que consigam dar flores grandes e espectaculares. Não podemos alterar o ciclo da natureza. A não ser com as estufas...
Pensamos em procurar roseiras, já enraizadas, para transferir para dar uma moldura colorida e simpática; mas para isso teremos que aguardar pela estação adequada. Confia no Senhor Ernesto e, se cederes na minha capacidade de me instruir, garanto que procurarei literatura de jardinagem, na Vila ou em Aveiro, ou mesmo em Coimbra, depois posso inscrever-me nesta história das novas profissões, caso não estejam limitados à culinária de autor e à informática.

- Por mim tenho que afirmar que fiquei muito interessado e satisfeito com esta iniciativa. Se calhar quem não estará tão contente serão as pessoas do Vale que, até agora nos forneciam deste produtos da terra.

- Não te preocupes. Já passei a palavra, através da Idalina e da Amélia para que sossegassem as senhoras do Vale. Esta horta só será uma brincadeira, que não evitará a dependência dos produtores e fornecedores habituais. Já tínhamos pensado nisso e procuramos evitar rancores sem fundamento.

- Tudo bem quando começa bem, e melhor se termina também da forma mais agradável. E como com isso já estamos quase a chegar à hora do almoço, se não te importes agarrava-te como vítima propiciatória para desbobinar algumas reflexões que, habitualmente, tenho que mastigar a sós, pois são temas que não se podem distribuir como os abraços, sob risco de ser considerado chalado, como mínimo. Eu mesmo não dou valor a estas preocupações despropositadas. Digo, interiormente, que não são mais do que tentativas falidas de filosofia barata. Cá vai disto, agarra-te e faz um esforço de compreensão.

Por muita vontade que coloquemos na tentativa de orientar o nosso comportamento, seja no âmbito privado ou no semi-público(1) como propósito de não nos comprometer, nem de dar sentenças firmes, é de boa cautela não esquecer que todos estamos condicionados por uma série de compromissos, muitos deles com cariz de ser inamovíveis. Estas prisões podem ter a sua origem em diversos capítulos da nossa vida pessoal, desde o que arrastamos por herança familiar ou de grupo, ou das crenças a que se aderiu. Mesmo que racionalmente não lhes demos o valor que se admite, socialmente, que os credos merecem sem discrepar.

Ao longo dos anos qualquer pessoa, considerada como normal -uma valorização bastante ambígua e elástica-, vai tecendo uma rede à sua volta que o inibe de poder pensar, principalmente agir, conforme o seu instinto imediato lhe pede. A sociedade, no seu conjunto funciona, quase que surdamente, aceitando e cumprindo um enorme acervo de regras. No caso de alguém, agindo por impulso ou julgando ser consciente, desobedecer esta cartilha. Pior até se insistir em que pode levar a sua revolta a bom termo. Chegará o dia, mais cedo do que se imagina, em que se encontrará isolado.

Mesmo que decidir recuar, procurar modificar a sua atitude, será muito difícil que possa alterar o retrato que criou e que ficou gravado na mente de quem com ele teve amizade ou qualquer contacto, mais ou menos intenso. Um rifoneiro de 1780 afirma, entre muitos outros provérbios e anexins: A má chaga sara e a má fama mata. Em má hora nasce, quem má fama cobra. Quem má fama tem garantida, morto ainda nela tem vida. Perca-se tudo, fique a boa fama.


(1) O recurso a disfarçar através de um prefixo “semi”, além de me dar a sensação de ser ineficaz, traz-me sempre à mente aquela piada da menina que alegava estar um bocadinho grávida. O utente mais picante desta historieta fechava com a afirmação de que desconfiava disso desde uma meia hora antes, quando practicou o dito amor com o seu namorado, com satisfacção, ardor e sem protecção.

terça-feira, 10 de julho de 2018

CRÓNICAS DO VALE – Cap. 50



Ter dúvidas

- Estás convencido de tudo o que me tens dito a respeito do comércio de artigos contrafeitos pelos tais de etnia cigana, e dos acordos, digamos que tácitos por não serem oficiais, entre as autoridades e os delinquentes, nos seus diferentes graus e estatutos? Ou seja, pensas que o que se insinua é uma boa política? É que eu não fiquei muito convencida de que tudo isso funcione por baixo da mesa.

- Utilizaste a palavra-passe, a Política, que sempre está por cima de todas as facetas das nossas vidas. E que eu evito, tanto quanto me é possível, meter. Nisto das políticas em plural, pois existem muitos capítulos neste amplo domínio, a maior parte dela causa-me fastio, além de descrédito. Penso, e estou a ser meigo, que devem existir pessoas com muito boas intenções que decidem meter-se no campo dos políticos veteranos, profissionais, com a pretensão de encarreirar ou corrigir coisas que considera, e com razão e motivos mais do que suficientes, que não são conduzidos em consonância com a vontade e necessidades dos cidadãos. Ele, o tal utopista, dando crédito ao que ouve dizer por boca de alguns concidadãos, imagina que se pode sentir apoiado por uma força social, que imagina corresponder a um apoio incondicional por arte dos sempre queixosos. Pode chegar a um nível de convicção, irreal, que o leve a tentar penetrar num vespeiro que, de facto, desconhece.

Estes românticos sociais, se são coerentes de si próprios e não toleram ser constantemente ignorados, ou mesmo despeitados, por aqueles que já considerava serem seus pares, o mais provável é que desista a tempo, ou seja, mesmo antes de começar, antes de que se transforme num vendido, em mais um zangão, que só estão para promover os interesses pessoais e de grupo; seguir as directrizes da cúpula, que são os que distribuem as benesses. Em resumo, o campo da política não se pode considerar um território apto para pessoas escrupulosas.

Não sei se respondi cabalmente ao que perguntaste. Pela tua cara parece que não. Verei de ser mais concreto, de descer até a questão das feiras e de como penso que as coisas funcionam por trás do pano. Sim, porque aquilo que te disse não está confirmado por nenhuma opinião externa; são simplesmente cismas minhas, que imagino não estarem muito longe da realidade. Quanto se entendo que, caso as coisas funcionem como penso, constituem uma política correcta, aceitável, sensata, não te posso responder com convicção, pois não duvido de que haverá quem discorde, total ou parcialmente. Assim como os há que, nem que seja pelo silêncio, mostram que esta deve ser a atitude certa, a mais útil para a sociedade em que vivemos.

Seja como for, e dado que me acompanhas desde algum tempo, sabes que me é impossível ficar sempre ao largo dos políticos, e que todos aqueles que estão ligados à estrutura governamental, principalmente se ocupam lugares daqueles que mudam de titular quando se altera o esquema do poder, os que são escolhidos a dos pelos eleitos entre os seus apoiantes. Por isso quando tenho algum assunto a tratar com algum dos servidores comprometidos, como é o caso dos presidentes de câmara e de juntas de freguesia, entre outros, procuro evitar opiniões que colidam com a política pura e dura. O melhor, entendo eu, é limitar-me ao papel de um simples cidadão, embora que no degrau da escala que me pertence. Um trato quanto mais possível de igual para igual. Mesmo quando se pede um favor sem ir à fila onde se apresentam os requerimentos e se aguarda para ser atendido. Mas, jamais, comprometo as minhas simpatias ou mando recados acerca das minhas preferências na ocasião de votar. Caso me apresente nas urnas.

Este terreno é um fétido lamaçal, e se temos que entrar na orla, é pertinente calças botas de borracha. De cano alto até a cintura se o assunto prometer que pode ir mais longe do que a prudência pessoal consente. Não sei se te disse que, ao longo de anos, antes e depois da casado com a falecida Constança, e até quando era estudante em Coimbra, fui inquirido para formar parte da Associação, de várias Juventudes partidárias e depois para os partidos “a sério”, além de Rotários, Lyons e outras beneméritas associações. Sempre escapei alegando que tinha compromissos que não me pareciam ser compatíveis, e nem tempo disponível; que agradecia o convite mas que, sinceramente, não me considerava poder vir a ser um membro útil.

- Mas tanto o teu pai como o teu avô creio recordar teres dito que pertenciam à maçonaria, ao Grande Oriente Lusitano, ou ao seu equivalente naquela época. E tu? Tiveste coragem e arrojo para não aceitar, nem que fosse por descendência directa?

- Tive que aceitar, para não ofender certas personalidades que respeito dentro daquela ordem reservada e sigilosa. Tenho que te mostrar a tralha que constitui a farpela, que dizem terem herdado dos pedreiros franceses, especialmente os que se encarregavam de erguer catedrais, palácios e edifícios públicos que foram representativos e merecedores da vaidade dos cidadãos. Estes pedreiros “livres” constituíam um grémio fechado, tal como os dos ourives e outros artífices reputados, tinham as seus estatutos, regras, tribunais, examinadores para aceitar ou expulsar membros; reuniões teatrais que ainda permanecem entre eles, ritos mais esotéricos e caricatos do que próprios de pessoas respeitáveis. Ou seja, que a mim esta parafernália não me cativou e, progressivamente, deixei de participar. Mas ainda tenho, numa caixa escondida, o avental, o colar, o punhal e outras brincadeiras que devia envergar. Um dia terei que te mostrar.

segunda-feira, 9 de julho de 2018

CRÓNICAS DO VALE – Cap. 49




Divagações infundadas

- Desculpa por ontem não dormir em casa. Mas fui dando notícias durante o dia, e fiquei para jantar com um sócio com quem era indispensável ter uma conversa calma, e sem testemunhas que interferissem. O encontro prolongou-se até que tiveram que nos avisar de que fechavam o local. Ainda paramos no bar do hotel para fechar, ou continuar, alguns temas. Além de que as conversas com talheres e outras com um whisky velho no copo são mais descontraídas, coisa que me interessava, pois este Sousa -se calhar não te identifiquei o parceiro deste encontro. Não foi por mal, nem para esconder coisas, mas já sabes da história da boca fechada e das cautelas com caldos de galinha.

Seja como for, este Nelson DE SOUSA conhece o ramo têxtil do norte palmo-a-palmo, tanto dos maiores como até a mais pequena chafarica. E eu, entre outras muitas coisas que me aquecem a cabeça, ultimamente estive atando nós sobre este ramo da economia. Foi o visitar os terrenos do Ortega, mais propriamente as feiras onde os seus “súbditos” negoceiam, que me levou a ter meditações ao nível do absurdo. Ou nem tanto ...

- Tinha ideia de que esta actividade industrial dos têxteis não te era estranha, mas não estava a par da importância que lhe devotavas. Aliás. E para atender aos teus desejos, sempre procurei não espiolhar nos teus assuntos. Dizes que quanto menos souber, melhor para mim e para ti. Mas desta vez, se calhar sem o pretender, acendeste a chama da curiosidade. Agora terás que por mais alguma coisa no prato, por assim dizer.

- Tens razão. Mais uma vez. E as coisas são muito evidentes. Passa-se tudo em frente do nosso nariz e, precisamente por ser tão óbvio, não ligamos demasiado. Acontece como avisa o refrão A árvore esconde o bosque,
que nos diz como aquilo que nos chama a atenção nos impede de atender ao que está por trás. Os ilusionistas, ou mágicos se preferires, usam constantemente esta técnica.

- Se não te explicas melhor, e com casos concretos, digo-te que fiquei pior do que na mesma. Estas generalidades são muito interessantes, mas preciso, por ser burra, de poder localizar o ponto onde ajustar a pontaria.

- É que não me deixaste terminar. Aliás, creio que para que tudo fique mais diáfano, e por não ser a síntese o meu forte, necessito de bastante tempo a discursar. Tudo começou quando se tornou evidente aquilo que sempre suspeitei: que deve existir, ou existe mesmo, um acordo no nevoeiro entre o sub-mundo do crime, ou em partes dele, e o sector oficial de quem incumbe a repressão.

Todos sabemos que por trás de eufemismos, de cenários inócuos, se escondem realidades que não se deseja se tornem públicas. Por exemplo, se nos dizem que “fontes reservadas” (ou outra frase equivalente) nos informaram de..., o mais provável é que ali existem denuncias. Que há bufos não temos dúvidas. Sempre os houve e os haverá. Quem estiver interessado e saber o que não se conta procura levantar o véu daquilo que se deseja fique escondido. Para o conseguir tem que procurar alguém que esteja por dentro e disposto a colocar a boca no trombone, sempre e tanto que, para este “benemérito” lhe seja oferecida uma contrapartida interessante. Isto é o que sucede geralmente, tanto no ramo oficial como no privado.

Por vezes nem é preciso “corromper” ninguém. Basta estar atento e ouvir, assentar as coisas interessantes e unir as pontas soltas. É o que eu fiz. Começando por algum lado, sabes que existe um mercado da contrafação, especialmente presente nas feiras periódicas por todo o País, e que os vendedores, practicamente exclusivos, são de etnia cigana. Pertencentes a diferentes famílias, que distribuem o território entre elas, em acordos tão firmes como se fossem assinados com sangue -pelo menos é o que imagino- e sem necessidade de passar pelo notário.

E não tarda que se pense onde é que estes comerciantes ambulantes se abastecem? Podíamos imaginar que as mercadorias lhes podiam ser enviadas desde Marrocos, Espanha, Itália, Turquia ou outro país qualquer, pois creio que em todo lado existe um núcleo de copistas trabalhando com um à vontade de espantar.

Pois, depois de ver, com olhos de ver, a zona do têxtil em Portugal e sabendo mais algumas coisas além do muito que a população em geral conhece, tenho a certeza de que estas cópias falsas são produzidas aqui, neste rectângulo, jardim à beira mar. E TODOS sabem disso. É impensável que ignorem uma indústria paralela que dá trabalho a muita gente, que alimenta muitas famílias, onde trabalham sem vínculo legal desde as avós às crianças que ainda não atingiram a idade legal para trabalhar. Tudo isto é arquiconhecido. E podes perguntar porque é permitida esta falcatrua, este desfalco ao fisco e às leis do trabalho e da protecção industrial?

As razões são múltiplas. Para começar não desvalorizamos que um sector importante da população está na pobreza ou nos limites. Que os impostos, seja Iva ou Profissional, que não se cobram de imediato, virão depois ter à tesouraria através do consumo. E que os pobres já não amealham como antigamente, são adeptos, por pressão do mercado, ao conhecido chapa ganha chapa gasta, de onde já abrirá os cordões à bolsa quando se abastecer no super ou hiper, mesmo no caso de que nestes locais exista algum alçapão, coisa que desconheço mas que não me admiraria. Pior do que o não amealhar é que são induzidos a pedir créditos bancários para diversos propósitos, desde a compra de casa até carros ou férias. Ficam presos pelo pescoço, como numa coleira, e estarão sempre com o credo na boca.

Por outro lado podemos perguntar quem pressiona a ASAE para travar o comércio de contrafeitos, sejam têxteis, malas ou sapatos? É evidente que devem ser as grandes marcas, as da publicidade dirigida a quem dispõe de um poder de compra que não está ao nível do todos os que frequentam as feiras. Mas quem é que tem pena das grandes marcas? E deixemos de lado, apesar de não ignorar, a invasão de produtos fabricados no oriente, em especial na China, depois desta quase que liquidar o Japão no pequeno e grande comércio.

E será que os feirantes não sabem, com antecedência, que serão visitados? Não só pelos inspectores da dita ASAE, sempre acompanhados por membros da PSP da terra onde se realiza o mercado. E será que na esquadra ninguém é “amigo” dos ciganos e os avisa a tempo e horas? E que os feirantes, colocam material com pouca venda nas bancas para que os inspectores encham sacas e sacas? E depois façam uns magníficos relatórios?

- E tu tens a certeza do que tens estado a contar? Quem é que te deu estas indicações?

- Ninguém. Podes estar certa. Todos se fecham em copas. Mas as coisas funcionam, à vista de toda a gente. Nunca te perguntaste como podia ser isso, tantos descuidos, tanta boa vontade? É uma questão de bom senso. E admito que ficaram mais algumas coisas por referir. Isabel, este mundo, como dizem os italianos, é um mondo cane, mundo cão em português, mas eu encontro um sabor especial ao italiano.

Na Itália. Especialmente no sul, o mundo do contrabando e das falsificações de todo género, além de muitos outros negócios, como o das obras públicas de grande porte, consta que está nas mãos das máfias, que tanto se podem chamar de camorra em Nápoles e arredores, como cosa nostra na Sicília. Diferem no nome e nos chefes, capos, na sua língua. Sabias que quando os aliados, nomeadamente os americanos, decidiram desembarcar na Itália encarregaram-se de estabelecer e garantir o apoio da subterrânea máfia, através dos seus mafiosos residentes? E que foram os mafiosos radicados nos USA que, com promessas de liberdade e imunidade, se encarregaram dos contactos com os seus primos latinos?

- E será que estas entradas de mafiosos do leste Europeu prenunciam um domínio estrangeiro dos negócios escuros e perigosos na nossa terra? O que aconteceu no Vale deve levar-nos a pensar. Eles andam por aí. Pelo menos é o que noticiam os tabloides nacionais.