O
que o avô não queria levar para a cova.
Como se fosse uma história “de
encantar” contou que sendo ele novo, recém entrado na Escola
Militar de Toledo, na Espanha monárquica, um dia viu andar pelo
Alcazar, que era a antiga fortaleza casteleja dos moiros, que ficou
intacta quando eles se renderam e fugiram mais para o sul, uma jóvem
tão formosa que o deixou enfeitiçado. Soube que era filha do
Comandante da Escola, e que se chamava Inmaculada, ou familiarmente
Inma, com uns muitos apelidos de nobreza: Ponce de Leon Almagro
Rodriguez de Ahumada.
Eu, um Zé Ninguém, com um apelido,
Maragato, que mais não era do que uma alcunha que mostrava a sua
origem numa zona esquecida e pobre, a Maragateria, sentiu que o seu
coração batia como louco, latejavam-lhe as fontes e os pulsos.
Chorava sem lágrimas ao avaliar que não tinha, mem teria, a mínima
chance para conseguir fazer daquela mulher a sua esposa. Isso
aconteceu tendo ele dezoito anos, nem agora a esqueceu, estando às
portas da morte.
- Mas o avô nunca mais a viu?
- Claro que a vi, pelo menos
enquanto estive naquela escola e o pai se manteve como responsável.
Mas quantas mais vezes a via, mais sofria, desesperado! As agruras
esmoreceram quando fui enviado já como tenente para Marrocos, em
Melilha. Aquilo era uma loteria para a morte, onde nos davam bilhetes
sem os comprar. Os guerrilheiros marroquis -mais correcto será
chamar-lhes de bere-beres, pois eles pertenciam a esta estirpe
moruna-, não nos davam tempo livre para meditar e escrever ou ler
correspondência. Uma tontice da minha parte, pois nunca me atrevi a
escrever à minha sonhada Inma.
Ultrapassado o tempo que me tinham
destinado na defesa (?) das praças do norte de África, e já com um
estilhaço de granada na perna esquerda, que como sabes ainda hoje me
faz andar mancamente, fui “licenciado” e destacado para regimento
aquartelado em Zamora. Ali soube, através dos mexericos da tropa,
que a Inmaculada tinha casado com um oficial de cavalaria, com
patente de capitão segundo diziam, e que já tinham dois filhos.
Este teu avô, naquele instante admiti que estaba definitivamente arrumado, sem que a minha Dulcinéia sonhada soubesse que eu existia e
menos que por ela estava apaixonado sem remédio. Em Zamora queimei
as naves e decidi que tinha que rumar para outro porto.
- E então avô? O que aconteceu?
- Conheci uma senhora respeitável,
com idade um pouco mais nova do que eu, e sem bigode. De boas
famílias, mas não de militares! Filha, e com irmãos, de um boticário,
dono da farmácia mais importante da cidade, onde eu ia encomendar os
medicamentos, ligaduras e pomadas quando a distribuição do
Ministério da Guerra se atrasava. Ali conheci a que veio a ser minha
mulher e tua avó. A avó Eugénia.
- Tenho muitas saudades da avó Eugênia. Era muito bonita e muito simpática. Contava-me histórias
em castelhano ainda quando a família, creio que por problemas
políticos, se deslocou para Portugal. E que que conta a seguir, avô
?
- Pouco mais há que contar, que tu
não saibas. A tua avó Eugênia era uma excelente pessoa, uma esposa
sem igual e mãe insubstituível. Foi a melhor companheira que eu
poderia ter tido. Sem dúvida. Mas não faças esta careta, menino,
sei o que trazes na cabeça para perguntar e não te decides.
Podes estar certo que de vez em
quando via a Inmaculada pela rua, ou a confundia com outra jovem,
sabendo que os anos também passaram por ela e que a imagem que eu
guardava, feito parvo e mais que parvo, era só uma miragem, que me
acompanhará no caixão. Ali estaremos três cadáveres, a avó
Eugénia, que me espera no cemitério, eu e do outro lado a Inma. De
facto só estarei eu, os meus restos. Para ver a avó terei que sair
do caixão e procurar a sua campa. A da Inma, quem sabe donde está
ou estará. Foi um sonho de anos, de uma vida aos soluços, mas que
não amargou a vida dos teus avós como casal.
- E a avó sabia dessa paixão, de
romance?
- Saber sabia, mas era
suficientemente inteligente para saber que dali não veria qualquer
perigo. Filho, ou melhor neto, José, procura recordar, até morrer,
que as mulheres são mais espertas do que os homens, e quando nós
vamos elas já voltam. Nunca as poderás enganar totalmente pois que
as tuas aventuras, mesmo as que fizeres a sério não passarão de
imaginações, mas sempre deixarás sinais que elas captam.Isso
quando estão interessadas, pois em caso contrário não ligam! O
importante acontecerá com a que vier a ser a tua esposa, a mãe dos
teus filhos, que ainda estás muito longe de a conhecer e mais ainda
de saber quem deixarás neste mundo.
- José, marido, isto que me contaste e que eu ouvi atentamente, é um romance dos folhetins da
rádio! Não me estiveste a passar uma treta, , uma aldrabice para entreter a parva da tua mulher?, como no conto das mil e
uma noites?
- Contei o que me recordo. Não
garanto que tudo acontecesse assim. Mas no fundo, sei que o avô
trazia esta espinha na garganta desde que era novo. E agora toca a
levantar da cama, que tenho coisas para fazer!
Na entrega seguinte, que sabe-se lá quando aparecerá, saberemos quando voltou a ver o avô Paco.
Na entrega seguinte, que sabe-se lá quando aparecerá, saberemos quando voltou a ver o avô Paco.