segunda-feira, 29 de abril de 2019

CRÓNICAS DO VALE – Cap. 75



O que o avô não queria levar para a cova.


Como se fosse uma história “de encantar” contou que sendo ele novo, recém entrado na Escola Militar de Toledo, na Espanha monárquica, um dia viu andar pelo Alcazar, que era a antiga fortaleza casteleja dos moiros, que ficou intacta quando eles se renderam e fugiram mais para o sul, uma jóvem tão formosa que o deixou enfeitiçado. Soube que era filha do Comandante da Escola, e que se chamava Inmaculada, ou familiarmente Inma, com uns muitos apelidos de nobreza: Ponce de Leon Almagro Rodriguez de Ahumada.

Eu, um Zé Ninguém, com um apelido, Maragato, que mais não era do que uma alcunha que mostrava a sua origem numa zona esquecida e pobre, a Maragateria, sentiu que o seu coração batia como louco, latejavam-lhe as fontes e os pulsos. Chorava sem lágrimas ao avaliar que não tinha, mem teria, a mínima chance para conseguir fazer daquela mulher a sua esposa. Isso aconteceu tendo ele dezoito anos, nem agora a esqueceu, estando às portas da morte.

- Mas o avô nunca mais a viu?

- Claro que a vi, pelo menos enquanto estive naquela escola e o pai se manteve como responsável. Mas quantas mais vezes a via, mais sofria, desesperado! As agruras esmoreceram quando fui enviado já como tenente para Marrocos, em Melilha. Aquilo era uma loteria para a morte, onde nos davam bilhetes sem os comprar. Os guerrilheiros marroquis -mais correcto será chamar-lhes de bere-beres, pois eles pertenciam a esta estirpe moruna-, não nos davam tempo livre para meditar e escrever ou ler correspondência. Uma tontice da minha parte, pois nunca me atrevi a escrever à minha sonhada Inma.

Ultrapassado o tempo que me tinham destinado na defesa (?) das praças do norte de África, e já com um estilhaço de granada na perna esquerda, que como sabes ainda hoje me faz andar mancamente, fui “licenciado” e destacado para regimento aquartelado em Zamora. Ali soube, através dos mexericos da tropa, que a Inmaculada tinha casado com um oficial de cavalaria, com patente de capitão segundo diziam, e que já tinham dois filhos. Este teu avô, naquele instante admiti que estaba definitivamente arrumado, sem que a minha Dulcinéia sonhada soubesse que eu existia e menos que por ela estava apaixonado sem remédio. Em Zamora queimei as naves e decidi que tinha que rumar para outro porto.

- E então avô? O que aconteceu?

- Conheci uma senhora respeitável, com idade um pouco mais nova do que eu, e sem bigode. De boas famílias, mas não de militares! Filha, e com irmãos, de um boticário, dono da farmácia mais importante da cidade, onde eu ia encomendar os medicamentos, ligaduras e pomadas quando a distribuição do Ministério da Guerra se atrasava. Ali conheci a que veio a ser minha mulher e tua avó. A avó Eugénia.

- Tenho muitas saudades da avó Eugênia. Era muito bonita e muito simpática. Contava-me histórias em castelhano ainda quando a família, creio que por problemas políticos, se deslocou para Portugal. E que que conta a seguir, avô ?

- Pouco mais há que contar, que tu não saibas. A tua avó Eugênia era uma excelente pessoa, uma esposa sem igual e mãe insubstituível. Foi a melhor companheira que eu poderia ter tido. Sem dúvida. Mas não faças esta careta, menino, sei o que trazes na cabeça para perguntar e não te decides.

Podes estar certo que de vez em quando via a Inmaculada pela rua, ou a confundia com outra jovem, sabendo que os anos também passaram por ela e que a imagem que eu guardava, feito parvo e mais que parvo, era só uma miragem, que me acompanhará no caixão. Ali estaremos três cadáveres, a avó Eugénia, que me espera no cemitério, eu e do outro lado a Inma. De facto só estarei eu, os meus restos. Para ver a avó terei que sair do caixão e procurar a sua campa. A da Inma, quem sabe donde está ou estará. Foi um sonho de anos, de uma vida aos soluços, mas que não amargou a vida dos teus avós como casal.

- E a avó sabia dessa paixão, de romance?

- Saber sabia, mas era suficientemente inteligente para saber que dali não veria qualquer perigo. Filho, ou melhor neto, José, procura recordar, até morrer, que as mulheres são mais espertas do que os homens, e quando nós vamos elas já voltam. Nunca as poderás enganar totalmente pois que as tuas aventuras, mesmo as que fizeres a sério não passarão de imaginações, mas sempre deixarás sinais que elas captam.Isso quando estão interessadas, pois em caso contrário não ligam! O importante acontecerá com a que vier a ser a tua esposa, a mãe dos teus filhos, que ainda estás muito longe de a conhecer e mais ainda de saber quem deixarás neste mundo.

- José, marido, isto que me contaste  e que eu ouvi atentamente, é um romance dos folhetins da rádio! Não me estiveste a passar uma treta, , uma aldrabice para entreter a parva da tua mulher?, como no conto das mil e uma noites?


- Contei o que me recordo. Não garanto que tudo acontecesse assim. Mas no fundo, sei que o avô trazia esta espinha na garganta desde que era novo. E agora toca a levantar da cama, que tenho coisas para fazer!

Na entrega seguinte, que sabe-se lá quando aparecerá, saberemos quando voltou a ver o avô Paco.

domingo, 28 de abril de 2019

CRÓNICAS DO VALE - cap 74


No sossego do lar


Bom dia, Isabel. Dormiste bem? Eu posso dizer que fiquei como uma pedra, um santo de gesso. Mas só depois de cumprir com o meu, nosso, dever de casal em activo.

- José, o dormir encostada a ti, mesmo quando são noites de calor, é muito bom, reconfortante, e mais quando ao acordar não me aparecem ao pensamento problemas a que dar atenção.


-Não digo que sejam problemas, mas não fixei nada do que me contaste, caso o tenhas feito, das tuas conversas com a esposa do Dr. Cardoso. E creio recordar que havia, pelo menos, dois assuntos que careciam de ser puntualizados. Vou faze-te memória: um era se ficaram em nos juntar numa refeição e o outro estava ligado a se a Drª estaria interessada em visitar a tua estufa para flores e vegetais comestíveis..


- Do terceiro tema,mais complexo e que ficava fora das conversas de casal, e mais concretamente era referente ao sarilho entre familias de etnia cigana, creio que, depois do que me contou o rei Rafael Ortega, tivemos bastante sorte em que, tal como lhes foi proposto, eles arrumassem o problema entre eles. Daí que só resta puntualizar a refeição de convívio, caso a tenham quase que decidida, e depois o ir à estufa.

- Quanto à estufa, propriamente dita lembro que chegamos a entrar naquele espaço e estavas a descrever a complexidade em que te meteste, mas que tivemos que largar a meio porque estava o Ortega à porta.

- Pois José avançando um pouco, que não tudo. A Dra Diana quase que batia palmas. Disse que não tinha criado amizades desde que chegou ao Porto. Encontrou colegas de estudos, mas estão todas muito atarefadas com as aulas, ou com o emprego, ao que se juntam as famílias respectivas, concretamente os filhos em idade escolar, liceal ou já universitários. Dizem-lhe que esperam um encontro informal, seja organizado por uma entidade qualquer, na faculdade ou num edifício oficial, no qual estejam presentes os maridinhos.

Ali seria oportuno fazer as apresentações e quebrar o gelo, como quem diz. Quanto às amigas que ficaram em Coimbra, está convencida de que a Diana foi engolida pelo famoso nevoeiro que sobe do tenebroso Atlântico. Referiu até um anexim: Quem não é visto não é lembrado.

Para marcar o almoço admite que poderá dar notícia dentro e horas ou poucos dias.Tem que combinar a data com o marido, e depois me chamará. Do que não abdica é de visitar o meu projecto de jardim de inverno, que ela também sonha em algum dia, que não imagina quando seja, poder ter uma estufa. Não sabe onde nem quando. É um sonho pendurado no ar, nas núvens.

Sendo assim, ou assim sendo, que vai dar ao mesmo, o mais ajuizado será aguardar esta companhia para ver a dita estufa em pormenor. Assim só terei que explicar uma vez, espero eu!. Certamente que não demorarão a propor a data.

- Isto de conversar no tálamo (leito conjugal para o caso de não te vir a ideia a que se refere) sem pressa de levantar, até porque a Idalina já nos trouxe um enorme tabuleiro com tudo o que entendeu gostariamos de dispor para desdejum, nos pode dar azo a falaricar sobre temas que até podem ser novidade entre nós, pelo menos para ti Isabel.

Quando acordei esta manhã, tinha fresca na memória uma cena com o meu avô Francisco Maragato, o Avô Paco, já velhinho e que já devia sentir os seus dias a terminar.

Um dia, estando eu sentado junto dele petiscando umas ameixas do pomar -por certo eram rainhas cláudias, bem maduras, moles ao tacto e tão doces que até arranhavam na garganta- começou uma história, na voz baixinha, débil, que lhe era normal naqueles anos de velhice, e que me prendeu a atenção, tal era a cara e o sentimento que eu denotava. Pressenti que o que se seguiria seria uma espécie de confissão, de algum assunto que o avô queria deitar para fora antes de morrer.

No próximo capítulo saberemos do segredo do avô Paco.




sábado, 27 de abril de 2019

QUEM CONHECE BEM AS PERSONAGENS




Quando lemos ficção, seja ela do caracter que for, tentamos, instintivamente, fazer um retrato mental não só do aspecto físico da personagem, mas também quase como uma sequela inevitável, compor o seu retrato psicológico, e assim entender e até prever o seu comportamento ao longo da obra.

Não se pode dizer, de modo taxativo, que o leitor jamais pode criar a personagem da mesma forma como o escritor a vai desenvolvendo. Mas, atendendo a uma quase certa boa fé, ou de bem fazer, e dando por muito provável que o ficcionista procura dar um desfecho quase que inesperado, procura, sempre, oferecer uma conclusão minimamente lógica. E cuidará desta forma de apresentar a sua obra porque pretende que seja apreciado por mentes semelhantes a sua própria.

O relator debe saber que as mentes humanas regem-se por umas regras gerais, e que este desconhecido, sentir que não se respeitam totalmente no texto que está lendo. O pode qualificar como absurdo, incongruente e, em última análise, rejeitará continuar a ler.

Por outro lado, mesmo que o esquema habitual de quem escreve ficção aconselhe a que antes de iniciar, ou após poucos parágrafos da primeira página, estrutura, seja mentalmente, se tiver uma mente com uma superior capacidade memorística, ou, em alternativa mais positiva escrever «um guião prévio, que não tomará como de obrigado cumprimento, dado que é ele mesmo o criador, e, sendo dono e senhor pode auto-autorizar para avançar sem receio de entrar em discordâncias evidentes com que escreveu anteriormente. Para colmatar os erros de incompatibilidades é que tem que reler e corrigir, muitas vezes socorrendo-se de uma pessoa habilitada, pois que o autor pode tropeçar nos mesmos erros sem os encontrar.

De qualquer modo é conveniente aceitar que um escritor -que seja colocado pelo seu público acima da mediocridade- recorre para o argumento de factos e pessoas de cuja vida, ou partes da mesma, foi testemunha directa ou indirecta, e as coloque no meio do enredo. Quem, por coincidências da vida, tenha tido contacto com o passado do escritor, seja da família ou das pessoas que saiba ter convivido, é possível que encontre descrições que os/as retratem, por vezes fielmente. Mas em geral o escritor usará de cautela e limitar-se algumas pinceladas verossímeis. Não no intuito de denunciar ou desenmascarar, más só com a simples pretensão de conferir um mínimo de credibilidade.

Resumindo: quem sabe como são as personagens é o escritor. Mas cuidado, pode acontecer, e acontece com frequência, que o desenrolar do tema “empurre” alguma ou algumas personagens para comportamentos não previstos ou previsíveis inicialmente. O mudar, sem destruir o que se definiu anteriormente, é um predicado que não está à disposição do leitor. Só o escritor tem poder para manobrar o percurso dos intervenientes na ficção.

Mesmo tendo em atenção estas regras ou artifícios estruturais que se utilizam na escrita de ficção, é frequente que o leitor sinta o impulso de avançar antes de ler o que aparecerá no texto impresso (ou nas imagens de cinema ou de TV) E acertará em muitas ocasiões, consoante a sua experiência pessoal, tanto na leitura como no seguimento dos comportamentos de quem tenha oportunidade de ver.

Por outro lado alguns escritores, quando o fim da obra está por perto, tem o “saudável hábito” de, indirectamente, provocar o leitor no sentido de ver se este adivinha o desfecho. No caso mais habitual, em especial nos romances policiais, o bom escritor faz muitas manobras para confundir o leitor e fechar o caso com uma saída que mesmo tendo deixado umas pistas pelo caminho, eram tão discretas e pouco evidentes (de propósito!) que raramente foram tomadas a sério.

sexta-feira, 26 de abril de 2019

POLÉMICAS




Aconselho, com convicção, evitar ou mesmo fugir de polêmicas, em especial quando estas estiverem conectadas com convicções políticas ou religiosas. Estes temas, e alguns outros como as equipas de futebol, tem a característica de, quase sempre serem obsesivas . Assuntos onde existe uma imensa dificuldade em admitir a conveniência de ceder nos seus pontos de vista e convicções pessoais, que por quase soberba se consideram ser inamovíveis. Daí que nestes assuntos aquilo que se pode iniciar como uma conversa suave, sem a mínima agressividade, tem muitas probabilidades de conduzir a uma incompatibilidade, quase que feroz, que até pode destruir uma anterior agradável convivência. Pode desabar mesmo a um arrefecer irreversível. Pelo menos de difícil recuperação.

Estes dias, anteriores e posteriores, em que se rememorou a revolta militar que abriu a sociedade portuguesa à real e possível democracia -com todos os defeitos e algumas qualidades, que podemos atribuir à falta de seriedade e correcção inerente aos humanos, temos mais uma vez o recrudescer das convicções pessoais e grupais. Biologicamente para os mais atreitos a polemizar é semelhante ao periódico surto das sezões, ou febres palúdicas.

Infelizmente a visão mental e social dos mais acérrimos defensores de cada bando os mantêm enrrocados, entendendo por isso que cada parte só aponta os logros que entende como positivos e o outro, em especial se é o dos saudosistas, só encontram negrume, queixas, mau caminho da sociedade em geral, desrespeito para os valores que estruturam a sociedade antes de cair no que entendem ser um caos de difícil recuperação.

Tudo o que apontei pertence ao domínio da sociologia e comportamento dos humanos. Mas podemos dar algumas pinceladas noutros temas “pesados”. Que também são perigosos pela possibilidade de conduzir a separar muitas pessoas de bem. Sem que friamente lhe encontremos uma justificação válida.

O capítulo da religião é um dos mais escorregadios. Seja ela qual for. Pois que vistas sem paixão, friamente, todas elas se baseiam e manobram dentro da mesma área de preceitos, positivos, negativos e obrigatórios. De nada serve referir que os prelúdios das estruturas catequistas ou dogmáticas, são muito anteriores ao que se valoriza como cultura independente. Ou referir que a gênese das diferentes divindades que se tem adorado, respeitado ou temerosamente aceite, é sempre igual. Que todas se geraram no pensamento humano. É uma premissa que nenhum convicto aceita, seja qual for o credo a que aderiu. Todos invocarão a revelação através de uma entidade sobrenatural, superior a todos e sem possibilidade normal de ser vista, de dialogar, de visitar quando for necessário. Tudo fica, sempre, no âmbito do nebuloso, do mistério, do inalcançável. Excepto em casos muito especiais e de difícil explicação racional.

Retomando o ambiente de Abril, sabemos, os que olham com tranquilidade e sem favoritismo exacerbado, que é sempre possível, escamoteando aquilo que não convêm para a nossa dissertação, encontrar vectores de evolução evidentemente positivos. E, por outro lado referir situações que se valorizam como ser prejudiciais.

Temos exemplos, simples e sintéticos, que para bem ser teriam que se debater com cuidado. Um deles pode ser o sentimento de que se perdeu aquilo de “o respeitinho é muito bonito”, frase que, de imediato nos traz a visão do humilde respeitador, agarrado ao seu boné, e com a cabeça devidamente agachada, esperando ser ouvido pelo respeitado e ser “magnanimamente” atendido.

Outro aspecto que habitualmente se refere é que a educação que o estado oferece aos seus jóvens, é muito menos abrangente do que a que anteriormente se dava a um universo muito restrito de jovens. Aqui peca-se por ignorância dos adultos actuais. Para já o educar a uma massa quase que indiferenciada, onde muitos partem de ambientes familiares com pouca ou nenhuma cultura literária, afecta não só a capacidade de atenção e compreensão de uma boa parte dos alunos, e até dos resultados que podem conseguir os docentes mais empenhados.

O entorno em que as pessoas se movem na actualidade fornece, se assim for aproveitado, muitas mais possibilidades de educação geral do que nos outros tempos. Mas, paralelamente, também põe nas mãos dos alunos uns campos de distracção, alguns até tecnicamente evoluídos, que os podem afastar do estudo oficial proposto.

Além disso, não podemos tentar comparar, sem aprofundar devidamente, a sociedade portuguesa de 50 anos atrás com a actual, em que as “necessidades” de ordem múltipla e que se podem considerar, em muitos casos, como dispensáveis, são promocionadas insistentemente pela múltipla acção do consumismo.

Entre umas razões e muitas mais que deixei para trás, o lamentar o “bom tempo passado” é uma atitude absurda, por extemporânea. Os idosos é que estão totalmente cientes de que não se pode recuar para o passado, por muitas saudades das facetas boas que nos venham á memória. Seja qual for o resultado de um cômputo social, racionalmente é imperioso pensar no tempo actual, hoje, amanhã e mais adiante para quem tiver oportunidade.

COM LEITE DERRAMADO JAMAIS SE PODE FAZER QUEIJO.

quinta-feira, 25 de abril de 2019

LEITURAS INDIGESTAS


MATAR O TEMPO

Já que temos que estar cientes de que o tempo nos mata o melhor que podemos fazer, para nos desforrar, é matar o dito tempo. Gastá-lo da melhor maneira que se possa imaginar, atendendo às nossas vocações e capacidades.

Consoante a temperatura ambiente, digamos mais correctamente, a climatologia do dia, no permite e oriente, escolher entre ler, escrever, pintar e, por vezes, fazer alguma inutilidade talhando madeira, seja ela seca ou ainda viva. Confesso o pecado ambiental de talhar caras no tronco das árvores, procurando ferir menos do que eu vi, durante a minha juventude, as feridas que os resineiros faziam aos pinheiros com o propósito de lhes retirar a seiva vital (não confundir com o Moreira, que nem sequer conheço)

Sou um devorador de livros, e tenho tantos em casa, arrumados mas esquecidos, que depois de consulta aos meus descendentes -que me elucidaram não lhes interessar aquelas velharias- decidi reler e, umas vez digeridos, os oferecer a um vendedor de livros usados para que os colocasse na sua banca. Pode ser que assim tenham mais uma oportunidade de ser úteis.

E hoje, finalmente, terminei um livro, escrito em l969 -a edição que tive nas mãos já tem o papel torrado pelo tempo!- por uma jornalista italiana, ORIANA FALLACI. que teve um período de fama devido aos seus escritos. O livro traz o título de NADA E ASSIM SEJA.

A temática consiste em oferecer as meditações que lhe ocorreram quando esteve, como correspondente de guerra, no Vietnam, durante mais do que um a vez. Para quem não se sinta vocacionado para seguir as experiências de um civil, tanto na retaguarda como no meio das operações, aguentar os relatos das  mortes súbitas de jovens recrutas, enviados na véspera desde as bases e serem estilhaçados num conflito que não entendiam, e que verificaram as justificações que lhes foram dadas para os enviara uma morte absurda. Para os idosos de hoje nos pode recordar o que sabemos acerca do Vietcong, do Ho Chi Min, dos governos promovidos pelo USA a fim de justificar um símil de guerra civil e poder entrar num conflito, de índole planetário, entre o Capitalismo e o Comunismo, e assim “promover e defender a democracia?”

Anos mais tarde e por facilidade de um familiar (filho) destacado em Hanoi, verifiquei como aquele povo era pacífico, amável, aberto no convívio com estrangeiros, incluídos os “benfeitores” americanos, de triste memória. O que o “ocidente democrático” fez naquela zona do Oriente não se pode esquecer, e muito menos perdoar.

Imagino que actualmente as pessoas que ainda leem, sem ser o Correio ou as revistecas com falsas celebridades, fabricadas a martelo, não devem ter a mente propensa para enfrentar assuntos tão desagradáveis como são relatos das centenas, e muitos milhares, de pessoas que são arrancadas da vida por decisores sentados em poltronas.

quarta-feira, 24 de abril de 2019

VERDADES E FANTASIAS SOBRE O 25 de ABRIL




Ao longo destes anos mais recentes temos tido ocasião para ler artigos relatando e comentando, muitas vezes fantasiando, aquilo que originou, consistiu e derivou da revolta corporativista dos oficiais do quadro. E dado que toda a sua génese e evolução esteve envolta num conjunto de forças, nem sempre, ou raramente, paralelas, é fatal que as interpretações difiram entre si, pouco ou muito.

Em primeiro lugar temos a necessidade, honesta, de ponderar o sentimento da população civil não comprometida, que então como hoje, é muito mais numerosa do que os pretensamente ansiosos de se comprometer, em prol da “liberdade e democracia”. A população em geral, e evito dizer “o povo”, pois que este termo o usamos, com excessiva leviandade e até desprezo, como sendo à facção rural, ou equiparável nas cidades, da população.

De facto, como se depreende da observação cuidadosa, o povo, o mesmo povo que se rejeita e do qual fazemos quase todos parte integrante, age e reage como no tempo do Império Romano. Contenta-se com a fatuidade, com aquilo que então se definia como PÃO E CIRCO. Hoje o circo está quase morto; foi substituído, com êxito total, pelo consumismo.

Sem dúvida que este mesmo povo, que era de onde sempre se recrutaram as tropas destinadas a abater ou serem abatidos, ingloriamente apesar das parangonas debitadas pelos governantes, e numa persistência comparável à dos anúncios publicitários de algo dispensável, estava saturado, farto, luctuoso, pela duração da guerra “patriótica” do ultramar, ou usando a terminologia da época, das “nossas províncias ultramarinas”. Mas, mesmo que aparecesse uma Maria da Fonte, o povo pode ser neutralizado com recurso a alguns, relativamente poucos, elementos recrutados entre este mesmo sector social, mas fardados e armados com os impostos pagos pelo mesmo povo. Sempre foi assim e assim continuará.

Mas... insistimos na génese do dito movimento, sem cravos pois que estes incorporaram-se na imagem por decisão gratuita das floristas do Rossio. Quem estava queixoso era o sector, igualmente reduzido, dos oficiais do quadro, os que tinham tirado curso na Escola do Exército e que, durante anos se apoiaram com os oficiais milicianos, recrutados nas universidades, para comandarem os soldados na frente de batalha -que raramente era uma frente definida, mas simplesmente a famosa guerra de emboscadas, de guerrilha, de bate e foge- Como a extensão do conflito implicava ter mais elementos no comando, e os tais do quadro não eram suficientes, foi imprescindível incorporar uns milicianos no estatuto de oficiais intermédios. E aqui é que a porca torceu o rabo!

Enquanto os milicianos iam para o mato, e alguns morriam ou ficavam estropiados, mas não se “sentavam na sua mesa”, figurativamente claro, as coisas tolerava-se com bom humor. Mas o cansaço, fastio ou espírito de rejeição já estava latente em todos os degraus da escala. Uns porque estavam donde não queriam, nem entrava nos seus propósitos de vida. E outros porque sentiam-se em minoria numérica, recordando a boa vida nos quartéis, nos passeios fardados e nas conquistas de saias que a farda proporcionava.

No meio desta salada estava o virus da contra-revolução esquerdista, ou mais concretamente comunista, financiada pela URSS, pois que este partido, extremista e experto no prometer uma utópica igualdade, era o que estava mais organizado e preparado para a luta clandestina, que durava desde décadas em Portugal.

Nesta altura entrou em palco o, posteriormente, famoso actor porno que, segundo dizem, se encarga de organizar o golpe de estado dos militares do quadro. Para figura de proa, escolhida “a dedo” pelos seus analistas ineptos, surgiu o Marechal Spínola, elemento de uma saga de militares profissionais que desde muitos anos atrás prestaram os seus serviços aos governos, inicialmente monárquicos, de Portugal. Além do seu monóculo e do pingalim metido no suvaco direito, mais a sua figura arrogante (como é indispensável num militar profissional) ele completou o seu curriculum publicando e distribuindo, com o consentimento evidente da Censura Marcelista, o seu livro. 

Que poucos leram mas foi encumbrado como a bíblia das escolas, ao prometer um futuro que não era factível, excepto no que respeita à saída, derrotados e abandonados pelos seus apoiantes da NATO, das colónias. Ele, o Marechal, aceitou galhardamente ser colocado como (pretenso) chefe daquele movimento corporativo.

A partir deste momento, e mesmo quando o País esteve pendente do que acontecia no largo do Carmo, e a seguir frente à sede da PIDE, os comunistas, bem reparados e organizados, não tardaram em se fazer donos do jogo. Todos os que estávamos vivos e capazes de pensar no que viamos, fomos avaliando a evolução que teve esta mal chamada revolução democrática.

Muitas fantasias se teceram e continuam a tecer depois de tantos anos. Mas mesmo então se percebia que os EUA não podiam consentir que nesta costa atlântica, incluídos os dois arquipélagos, mesmo cara-a-cara com o seu território, se instalar uma base soviética. NEM PENSAR !

De imediato transferiram, com o título de seu Embaixador, um dos capos mafiosos da CIA, que, já conhecedor do que por aqui sucedia, procurou logo a pessoa que podia utilizar -com ou sem compesações económicas?- para se opor, com algumas possibilidades de sucesso, à outro personagem, mais carismática mas também ainda assustadora para muita gente, que representava a URSS nesta pretendida anexação.

Dou como indiscutível a existência, por trás do pano, de conluios entre Washington e Moscovo para conseguir que em Portugal, se criasse uma nova Cuba, sem se iniciar um período sangrento de luta civil, abafando o forte empenho e introdução, especialmente entre operários e ilustrados adeptos às fantasias de igualdade -sem entender que os homens nunca se comportaram com um bloco igualitário. Sempre houve e haverá “uns mais iguais do que outros”.

E assim estamos hoje. As famílias com poder, e obviamente com dinheiro, do tempo da ditadura por aí andam, e a eles se juntaram uns ambiciosos penetras, sem estatuto próprio mas com os bolsos bem fundos, dispostos a fazer fortuna como sempre se fez, a partir do que se saca dos que labutam, uns mais e outros menos, uns suando e outros olhando. E a roda sempre está girando. Pouco ou nada se pode fazer, é próprio da humanidade.

terça-feira, 23 de abril de 2019

CRÓNICAS DO VALE - Cap. 73


CRÓNICAS DO VALE – Cap. 73

Ortega aparece bem disposto

Estava eu, tranquilo e sossegado, fumando uma cigarrilha cubana e mal lendo o caderno de Economia, para não me perder quando falo de negócios com o Sousa em Ermesinde. Mas confesso que entre o cuidar da cigarrilha e atender o chilrear da passarada, a metade do que já lera se perdeu no nevoeiro, como o embuçado. E repentinamente, tinha o Rafael Ortega a poucos metros do meu nariz.

- Então Amigo Ortega, bons olhos o vejam (de momento são os meus, mas isso não lhe digo) Pelo seu rosto e caminhar parece que está bem disposto. Traz boas novidades?

- Amigo Doutor Maragato. Saiba que ontem, seguindo as suas indicações, fiz umas chamadas para convocar uma dúzia de homens sérios e sabedores, mais as respectivas mulheres, como me recordou ser importante neste caso. Só bem entrada a noite é que, sempre recordando os vossos conselhos, se chegou a um entendimento.

Como se pode imaginar, todos sabiam do que é que se falaria, mas pensei que seria oportuno primeiro fazer um pouco de conversa mole, para aquecer, tal como fazem nos treinos de futebol. Lhes perguntei como tinham ido as vendas nas feiras, se a falta de dinheiro nos bolsos da excelentíssima clientela se fez sentir; se tiveram chatices com a PSP e pior com os homens da ASAE. Ou seja, as coisas do nosso ofício. Nesta fase circularam uns copitos de jerez e de coñac espanhol, que a nossa gente aprecia bastante, para não perder os costumes que nos ligam com os da nossa etnia -como dizem nos jornais e nos noticiários. Entre nós somos calés ou romanís, a escolher-  do lado de lá da fronteira.

E claro, mais amendoas, amendoins, cajús, castanhas assadas e alguns fritos que prepararam as mulheres da casa. Quando estavam quase na temperatura de bater palmas e cantar, entrei no tema da noite.

Apresentei o assunto deixando como coisa sem demasiada importância a boda e as conversas e compromissos entre familias, e, seguindo sempre as vossas orientações, fui dizendo que certamente todos eles tinham notado, nas suas casas, que os nossos jovens não eram tão submissos quanto nós fomos na sua idade. Que o conviver com os nacionais, e até com estrangeiros, os influenciaram, especialmente nas raparigas, para outras formas de vestir que não as tradicionais. Que gostavam de andar com o cabelo ao ar e arranjado, sem lenços como as moiras. Que teimam em continuar com saias curtas mesmo depois de já serem, fisiológicamente (ninguém pediu que explicasse esta palavra! Mesmo os “velhos” estão mudando sem darem por isso) mulheres. 

Elas não querem saber de história, e muito menos de as casarem novitas e ficarem carregando churumbeles à cintura. Que estes tempos de hoje são mais agradáveis, e que quando lhes calhar ter filhos os querem passear em carrinhos jeitosos. Numa participação geral foram apresentadas mais reclamações, mais exigências de mudanças. Ou seja, que todas as famílias tinham os mesmos problemas pela frente. Os rapazes parece que são mais adeptos a guardar os costumes, porque se criaram machistas e dominadores, mas as raparigas... Para já todas querem tirar a carta de condução !

Portanto, o clima entre os presentes era de derrota ou de claudicação. Nitidamente preparados para atender a minha proposta. Levei mais tempo nos preparatórios do que em chegar a uma solução para o não cumprimento do compromisso de casamento. Até os da família directa do noivo, que como já lhe disse são meus primos, estavam ansiosos para chegar a um entendimento calmo.

Seguindo os vossos conselhos eu comprometi-me -e assim fiz esta manhã antes de cá vir- em levar a afilhada à polícia para retirar a queixa. Como o Doutor me preparou, não houve dificuldade nenhuma em anular o processo, que pelo que cheirei nem sequer tinha avançado. Ou seja, do casamento negado, nem das ameaças de rapto, não ficou nada...

Para adoçar a boca do noivo, que já vimos ser bruto e convencido, ficamos em que seria “despachado” para casa de um primo -mais um- que vive em Málaga, que, como quase todos, também negoceia em roupas de saldo, sapatos e quinquilharia. Mas dizem que também faz uns biscates de intermediário na compra de casas e terrenos, especialmente com clientes da mesma raça e com migrantes que conseguiram transferir capital desde as suas terras de origem.

Entre uma coisa e outra eles partem amanhã para Espanha e eu, para dar mostras de solidariedade, além de ser padrinho da rapariga, disse que estava disposto a colaborar na compra de uma viatura, a ser possível uma “fragonete”, como se fosse o dote do casamento perdido, mas com a intenção de que  entrasse na vida de feirante, com as penas e alegrias que nos acompanham desde sempre. O meu primo e quase compadre aceitou a ideia, mas queria comprar o veículo em Espanha, por ser mais em barato. No regresso faziamos contas.

Depois deste relato, tão prolongado e completo, já entendeu que não foi necessária a sua ajuda, presencial. Creio que todos traziam a mesma ideia para arrumar o problema. Mas isso não impede que em nome de todos os que estavam presentes, e em meu nome em especial, não esquecemos a ajuda e boa orientação que nos deu, e lhe pedimos desculpa por o meter num assunto que, forçosamente, para si não tinha cabimento.

- Amigo Ortega. De facto era um assunto dependente dos vossos costumes e regras, que não são os nossos, embora sabe que se aceita aquilo de que Cada terra com seu uso e cada roca com seu fuso. Ou seja, temos que aceitar e compreender os usos e costumes dos outros, mas tal não impede da conveniência em nos assimilar quando nos radicamos em terra estranha. Tal como fizeram muitos dos nossos emigrantes, quando mesmo que roídos de saudades, quando viram que os filhos e as filhas, nascidos lá, sentiam que não queriam continuar a ser estrangeiros. Compreendeu?

- Com certeza. E penso que este tema tem que ficar fechado, para todo o sempre. E já agora, antes de sair de casa, junto com a afilhada, a minha mulher mercou um robalo e umas ameijoas, tudo acabado de apanhar. Colocou tudo nesta cesta e me pediu lhe entregasse pessoalmente, mas em nome dela, reconhecida em representação das pessoas do seu grupo, em especial as mulheres e moças.

Nas nossas conversas de casal confirmou que muitos estão desejosos de se adaptar aos tempos actuais, em especial dos costumes da sociedade que nos acolheu, com direitos e obrigações, que tentamos fugir sem entender que nos prejudica. Ela diz que eu, Ortega, tive muita sorte em poder conviver e pedir conselho a uma pessoa do outro mundo, no qual os novos querem pertencer.

- Amigo Ortega. Estou a ficar atrapalhado com as suas palavras. Não fiz mais do que o acompanhar, dentro das minhas capacidades, e tentar procurar uma solução que não vos envergonhasse. Agradeço à sua senhora a lembrança que teve, e de imediato a entregarei à minha mulher para que decida, com a cozinheira, como podemos degustar estes produtos do mar.

- Doutor: Mais uma vez os nossos agradecimentos, E não o maço mais. Cumprimentos para a Dona Isabel. E para si, permita que lhe dê um abraço de amizade.


Na entrega seguinte iremos à estufa. Prometido!

segunda-feira, 22 de abril de 2019

CRÓNICAS DO VALE - Cap 72


Medeiros bate à porta

Doutor, da licença? O Senhor Presidente da Junta está na sala e pediu para ser recebido pelo Doutor.
..
- Amigo Presidente, desculpe se teve que esperar por mim. Garanto que não foi de propósito. Estava preso por um telefonema de trabalho. Mas é com muito prazer que o vejo em casa. Faço figas para que não seja nada grave o que o orientou a me visitar.

- De facto existe um motivo especial, preocupante mas não tão grave nem urgente, mas o suficiente para me empurrar para que o vir incomodar na sua propriedade. Pode parecer uma infantilidade, que me leva a qualificar a minha vinda como, metafóricamente «ir chorar no seu ombro” e o que me pesa não é só devida às minhas responsabilidades e obrigações na Junta, como por não saber como atender, satisfactoriamente, aos cidadãos do Vale. 

Para começar por algum lado é de minha obrigação dizer que o Amigo Maragato se adiantou a tratar dos cuidados que se podiam, e agora nos dizem que são obrigatórios, aplicar na prevenção dos incêndios florestais. Pode ser visto como um exemplo a seguir, se não fosse que a realidade social nem sempre está de modo a que todos possam cumprir com o que o Governo decretou ser uma obrigação, sujeita a coimas para quem não cumprir o exigido.

E, por tabela, eu me encontro no meio de um problema de difícil solução. Como certamente sabe, e mais porque a sua decisão teve uma repercussão monetária nada desprezível, que pode imaginar não está ao nível das capacidades económicas da maioria dos nossos proprietários, mini fundistas e com explorações hortícolas, vinha, pastos ou madeira, que só lhes podem garantir, e nem sempre, uma vida pacata.

Não há um só dia em que não venha alguém chorar, as vezes mesmo com lágrimas abundantes, com medo de ser multado por não limpar a faixa de seu terreno que faz linde com a via pública. A dimensão de alguns talhões é de tal maneira reduzida que se desbastam as tais faixas, practicamente desaparece a propriedade!

Estas pessoas, em geral idosos e sem familiares jovens por perto -pois todos abalaram para conseguir emprego remunerado-  raramente tem corpo nem força para cortar árvores, roçar mato e dar-lhe seguimento. E tampouco podem comprometer-se a pagar uma equipa de homens que trate disso. Quando decidem vender umas árvores, sejam pinheiros ou eucaliptos, negoceiam com um madeireiro, que se incumbe do serviço. E as fracas vindimas, ou são feitas com a ajuda de vizinhos e parentes, numa permuta de favores, ou vendem as uvas ainda nas cepas.

Como sabem do que aparece na televisão -ou no jornal dos alarmes, o tal Correio -que vão ler no clube ou no café- me encaram dizendo que, em casos destes, as ordens parece que indicam que a Junta, ou a Câmara, teria que se encarregar do cumprimento do legislado. E aqui é que eu entro mais directamente na dificuldade de dormir.

Se peço ajuda à Câmara, dali respondem que estes custos não estão devidamente discriminados no seu orçamento, e que não receberam qualquer notícia de transferência para este compromisso. Não sei se isto é mesmo assim, ou se é uma desculpa. Só sei que na Câmara são especialistas em sacudir a água do capote.

Eu estou entre a espada e a parede. Não tenho pessoal na Junta, nem o equipamento necessário, que possa escalar para esta tarefa. Mesmo com os terrenos camarários já tenho dificuldades que cheguem. Doutor, não durmo sossegado, a minha mulher também está nervosa, e os homens da GNR de vez em quando, quase dia-sim-dia-não, aparecem na Junta para me pressionar, ameaçando com a lista dos proprietários incumpridores. Eles, com as suas fardas e o comando militar que os apoia já ficam cobertos. E nós?

- Amigo Presidente, sabe se as outras freguesias e até concelhos limítrofes, conseguiram arranjar verbas e pessoal para cumprir esta lei? É que eu, que não estou por dentro, não creio que a situação que o amigo Medeiros me contou se possa considerar como um caso isolado. Se a única solução que a governação conseguiu engendrar é a de multar sem atender às reais capacidades da cidadania pode cumprir esta normativa. Mesmo que a consideremos pertinente e merecedora de ser cumprida, mostra, tão só, que desconhece a realidade do nosso território rural.

Pelo meu lado, não sou um exemplo a tomar, pois felizmente, tenho rendimentos que não dependem das terras -das quais só tenho despesas e obrigações fiscais-. Após ter conhecimento destas novas regras chamei o meu feitor, o Ernesto Carrapato que o Presidente conhece, e fomos dar uma volta pelos caminhos que passam ou delimitam os nossos terrenos. Dei indicações para levar um ou dois homens com ele, mais as ferramentas e máquinas necessárias no tractor com o reboque, deixar aquelas faixas sem nada que constitua um perigo de fogo, fosse posto por malandragem ou por causas naturais.

- Mas isso pode decidir e efectivar o Doutor Maragato, e outros proprietários abastados. E como podem cumprir esta obrigação estas gentes que até poucos anos nem sabiam ler e menos escrever? Tem alguma ideia que me possa ajudar? Eu estou de mãos e pés atados. Até tenho dores de estômago. Deixei de beber um copito, esqueci o café e mesmo assim sinto-me doente!

- Amigo Aníbal Medeiros. Eu, com toda a sinceridade, além de não ter muita confiança nalgumas decisões tomadas pelos governantes, mesmo que, como neste caso, me pareçam pertinentes e aconselháveis, sinto que nem sempre são ponderados devidamente os reflexos que implicam. Dito de outra forma, por vezes dá ideia de que decidem sentados na praia, assinam por cima do joelho, e assim passam a bola a outros. No seu caso concreto, actual, e enquanto as coisas não se arrumarem com bom senso, eu lhe aconselharia que tivesse calma, que aguardasse até ver em como param as modas, e que mantenha uma  auscultação, quase que diária, no que se decidiram fazer nas freguesias e concelhos vizinhos, nomeadamente os rurais, como são a maioria. Se eu vier a saber de alguma novidade positiva, lha comunicarei de imediato.

Posso ajudar, de facto, nalguma coisa que esteja ao meu alcance? Eu gostaria de o convidar a um café e uma bebida, mas receio que o sue estômago, que me alertou estar ressentido, não aceite o convite.

- Amigo Maragato, reconheço que não resolvemos o problema, mas pude desabafar com alguém com mais conhecimentos do que os homens da terra. Vou seguir o seu conselho. Farei uma lista dos telefonemas a bater e os escalarei em dias diferentes, em três grupos, para não ser excessivamente maçador. Para já, alguns colegas já têm sido eles a me pedirem ajuda, que não posso dar. Só palavras. Teremos que ir ao Governador Civil do Distrito ou ao organismo que agora o substitui, pois esta gente passa as semanas a mudar o nome dos gabinetes e colocar mais alguns parentes!
  • Próxima entrega: O Ortega traz novidades

sábado, 20 de abril de 2019

SOMOS TODOS MUITO INTELIGENTES



Não desfazendo ...

Alguém que a morte lá tem, e que recordo com saudade, dizia sempre que vinha a propósito: Ouvindo o que as pessoas opinaram, nomeadamente acerca de si mesmo e, por tabela, de como avaliavam os outros, era muito raro, ou mesmo nunca acontecia que alguém se declarasse ser burro. Ou o equivalente: não ter o discernimento apurado que era necessário dispor para competir, mesmo que verbalmente, em pé de igualdade com os que o rodeavam.

E se, por uma quebra de convicção positiva caísse “na real” esperava que, de imediato e magnánimamente, aqueles que o escutavam não demorassem a rebater aquela sua afirmação, mesmo sabendo que o linguarudo estava totalmente certo.

Mais uma vez socorro-me da compilação de ditados populares para ilustrar esta participação:

  • A ignorância do bem é a causa do mal.
  • A ignorância é má conselheira.
  • A ignorância e o vento são do maior atrevimento.
  • A ignorância é um mal, mas não é contagioso.
  • O ignorante a todos repreende e mais fala do que não entende.
  • O ignorante e a candeia, a si queima e a outros alumeia.
  • O ignorante é o que mais fala.
  • Sabe muito a raposa, mas quem a apanha sabe mais.
  • Sabe o que digo? Que cevada não é trigo.
  • O saber escondido, da ignorância vista pouco dista.
  • Saber muitas artes é ter pouco dinheiro.
  • Saber muitas línguas é ser muitas vezes homem.
  • Saber muito não evita que nos enganemos um pouco.
  • O saber não está numa cabeça só.
  • O saber não pesa na cabeça.
  • O sábio desabafa escrevendo e o néscio maldizendo.
  • O sábio sabe que não sabe e o néscio cuida que sabe.
  • O sábio só deve ter a si por guardião de seu segredo.
  • Todos querem saber, mas ninguem quer pagar.
  • Nada duvida quem nada sabe.
  • Quem não sabe pergunta.
  • Burro calado se torna sábio.
  • Burro velho não aprende línguas.

E há muitos mais à solta por aí.

TENHAM UMA BOA PÁSCOA, mas cuidado com as amêndoas e os doces em geral.

sexta-feira, 19 de abril de 2019

CRÓNICAS DO VALE - Cap. 71


VIVÊNCIAS DE VIRELLA - Cap 71


O parecer do Dr. Cardoso

Pois como já vi que, por enquanto, o Dr. Cardoso além de já não ter nada que ver, directamente, com a zona de Aveiro, mas sendo o supervisor desta e de mais outras áreas, até à raia de Valença, a resposta que me aconselhou para o Ortega, e que estou seguro de que não vai ser do seu total agrado, encaixa bastante como que eu já pensava. Terei que procurar uma forma de adoçar a pílula. Mas não nesta noite. Temos que dormir tranquilos, que este sarilho não nos tcca, felizmente. É coisa de ciganos, e são eles que tem que o desfazer, arrumar. Seja com a sua autoridade ou através dos mais responsáveis no seu grupo. Amanhã será dia, e agora a conversar e descansar.

- Luísa. O que tinha a tratar como Dr. Cardoso já ficou apalavrado. Tal como eu pensei é um assunto interno, entre eles, e quanto mais confusão passar para a justiça do País, pior para todos. Não dei atenção á vossa conversa entre senhoras, não por desinteresse mas porque as damas tem um esquema de conversa diferente da dos homens. Falais muito e dão muitas voltas; e no fim, aquilo que estava para ser tratado, é despachado em duas palhetadas.

Diz-me se ficaram em se encontrar. Se combinaram alguma refeição de casais, ou se aceitou a proposta de visitar a tua estufa. Neste momento o que me apetece, além de ir para o nosso quarto sem interferências do exterior, é tomar um banho, vestir um pijama e levar uma bebida para a mesa de cabeceira. Ligar o ecrã plano e escolher algum programa interessante no cabo. E tu?

- Com todo o gosto te farei companhia, e para ver se não fumas na cama, vou levar um pratinho com salgados, especiais. Eu também vou-me fardar com o requinte pertinente.
..
- Senhor Rafael Ortega? Sou Maragato. Está tudo bem consigo? Assim espero. Imagino que aguardava conhecer o que conseguí do dr.Cardoso. Só terminamos a conversa quando ja era noite cerrada, pois antes as nossas mulheres tiveram os telefones ocupados. Dadas as horas decidí que, por uma questão de respeito, não era a altura de o incomodar e que hoje seria tempo de tratarmos deste vosso assunto.

- Bom dia e desde já agradeço a prontidão com que o amigo Dr. Maragato procurou atender o meu pedido. E então, o que nos aconselha o chefe dos inspectores.

- Para já no gabinete do Director ainda não chegou nenhuma comunicação respeitante a esta denúncia. Todos estes assuntos têm que seguir as suas tramitações, e como o crime, a se decidir o nível com que deve ser estudado, não meteu sangue, deve ter ficado nos assuntos a ser tratados, sem grande pressa... Mas falamos um bom bocado na situação em que o nosso amigo Ortega se viu embrulhado. E a opinião dele não difere da nossa.

Segundo a forma como o Dr.Cardoso analisou a denûncia, ou a queixa, que insisto ainda não foi transferida para o Porto, pois está ao nível da polícia de Aveiro, entende que este tema é mais do tipo social do que criminal, mesmo que tivesse existido uma faceta que se poderia valorizar como sendo um rapto. Mas, como sabe o Ortega, ao implicar os costumes ancestrais da vossa etnia, a justiça nacional não tem muita vontade, nem costume, de interferir com a possibilidade de chegar a entendimentos internos, respeitando as vossas normas e costumes. Quando não tem outra solução do que entrar num litígio oficial, em geral as coisas complicam-se sem necessidade. E rara vez se chega a soluções ao nível que para os nossos códigos seriam normais.

Resumindo: o Dr. Cardoso, sem se colocar de fora totalmente e dando garantia de que, caso a situação piorasse, ele entraria em acção, mas em consonância com as regras internas da Judiciária. Opina que o mais prudente, e até eficaz, seria que o Ortega convocasse uma reunião entre uma meia dúzia de elementos respeitáveis do seu grupo e lhes pedisse que tratassem de anular aquele “compromisso matrimonial”. Inclusive podia argumentar que o matrimónio poderia ser anulado porque não se tinha consumado.

Possivelmente será um caso excepcional, e portanto desagradável, mas o Ortega terá que se esforçar para encontrar argumentos, dando importância à evolução da sociedade em geral e a dos calés em particular, que não tem outro caminho que não seja o acompanhar, mesmo que manquejando, o que sucede à vossa volta.

Insiste, o Doutor Cardoso, em que o irem para um processo cível na Justiça nacional vos traria mais dissabores e desentendimentos entre famílias do que um acordo de novo cunho.

Da minha parte, se o Amigo Ortega opinar que era conveniênte ter a minha pessoa ao seu lado, eu não deixaria de o acompanhar e confirmar que os pareceres que vos dei são aqueles que, entendemos, vos seriam mais favoráveis. O importante é conseguir que o “noivo” aceitasse o desfecho sem considerar que se lhe faltou ao respeito. E a seguir, se ele estivesse conforme, o Ortega acompanhasse a noiva ao tribunal para anular a queixa.

Pense com calma, deixe passar umas horas, fale com pessoas sérias da vossa raça e, amanhã, depois de consultar a almofada, e a sua esposa, pois certamente as mulheres querem dar a sua opinião, e em certas coisas são mais sensatas do que nós. Então espero que me diga que encontraram uma solução sem ter que andar à pancada.

quarta-feira, 17 de abril de 2019

CRÓNICAS DO VALE - Cap. 70



Cá vem a cunha que se previa.

- Amigo Ortega. Este problema que provoca desassossego, a meu ver, é um assunto de família, que deveria ser resolvido internamente dentro do seu clã. Mas... como já chegou ao tribunal, agora estão num sarilho que não podem acalmar internamente. Penso que só poderiam tentar anular o processo se a noiva Júlia, se apresentasse no tribunal dizendo que queria retirar a queixa. O que equivale a dizer que se sujeitava às regras da vossa etnia. E, se como o Ortega diz, ela é de nariz torcida, não é muito provável que ceda.

- Diz bem o Doutor, mas desconhece como pensam as novas gerações dos ciganos. Há costumes e obrigações que eles rejeitam, negam totalmente. E os casamentos fora do grupo étnico, por assim dizer, estão mais presentes cada dia. No nosso clâ de Ortegas, os mais velhos, vem dizer-me que nas suas casas todos aqueles com menos de 30 anos estão a favor de Júlia e contra o Macário. Especialmente as raparigas, que dizem ser donas do seu corpo e não os pais, tios ou chefes do grupo. Estou num sarilho pior do que quando nos aparecem os da ASAE para nos lixar. A estes sabemos como os manobrar.

- Então, amigo Rafael, tem alguma ideia em mente com a qual lhe parece que eu possa colaborar?

- Se não tivesse não lhe teria telefonado. Sabe, gostei muito do tratamento que o Doutor Inspector-Chefe da Judiciária, de seu nome, se não estou confundido, Dr. Silvio CARDOSO. E pela forma nada presunçosa com que sempre me tratou. Imaginei -e desculpe a ousadia- que se o Amigo Dr. Maragato não aceitaria o pedido de sondar este Senhor no sentido de que, com a experiência que deve ter, nos pode sugerir algum caminho, sensato e com possibilidades de arrumar este problema sem alterar gravemente os nossos costumes, que já lhe disse estão em processo de desagregação.

- Senhor Ortega. Já nos conhecemos e falamos de muitas coisas, mas dos vossos costumes pouco ou nada me atreví a comentar. Agora, porém, e mesmo antes de prometer, e cumprir, que ainda hoje vou tentar falar com o Dr. Cardoso, sem que à partida lhe possa garantir nada mais do que a minha seriedade e boa vontade. Que sem dúvida me merece. Gostaria de dizer umas palavras, curtas, que não serão novidade para si.

O grupo da vossa etnia, que já anda por este País, e pelos outros da orla mediterrânica, à volta de 500 anos, insistiram e conseguiram viver no meio dos nacionais como se estivessem num universo paralelo, com uma língua própria, embora possa ser vista como uma mistura de influências, e uns costume possivelmente ancestrais que para vocés, devem ser leis a cumprir, sem discussão. Hoje tem Cartão de Cidadão, passaportes (possível que vários por cabeça...) que imagino só os comprometem em certas e determinadas ocasiões. Para a vida normal e familiar insistem em seguir as vossas regras especiais.

Mas nem que seja pela influência das novas gerações e, certamente que pela instrucção obrigatória consequência de terem deixado a vida nómada, pelo menos alguns, mesmo que as raparigas sejam afastadas da escolaridade quando chegam à puberdade, o certo é que os vossos costumes e regras tem o futuro muito comprometido.

Teriam que migrar todos de retorno ao Paquistão ou seja qual for o local de onde partiram. Coisa que obviamente não farão. Ou então ceder aos tempos actuais, abdicando de algumas das características que insistem em manter para se diferenciar dos paios.

Veremos o que nos dirá o Dr, Cardoso. Hoje nada mais podemos fazer, eu nem o Ortega. Só podemos conversar de assuntos sem importância, até que decida que são horas de regressar à sua casa.

Como no fado de Coimbra, chegou a hora das despedidas, pelo menos por hoje. Esteja descansado, vou telefonar à hora de jantar ao Dr. Cardoso e procurarei ser seu advogado, pois entendo que só se decidiu a pedir ajuda porque estava entre a espada e a parede -que fica entre Carcavelos e São Pedro de Estoril-

........

- Isabel, já viste como pensando um pouco nos acontecimentos recentes, e ligando ao passado, podemos ter algum sucesso na previsão. Neste assunto do Ortega de facto era fácil, quase infantil. Depois do jantar, para não dar uma noção de ser assunto oficial, vou pedir que sejas tu a ligar para casa dos Cardoso, perguntes pela Doutora Diana. Fica bem começar com uma conversa social, com os temas próprios das senhoras. Podes, se entenderes estar na onda, deixar cair, como se por acaso, que já avançamos com a tua estufa, pois recordo que a Doutora lamentava-se de não ter um jardim donde descargar da pressão do trabalho. E, tens liberdade, se estiveres para esta maçada, para combinar um almoço,ou jantar, em casa ou num local público.

E depois a parte mais importante: perguntar se o marido, dr. Cardoso, está disponível para uns minutos, poucos, de conversa comigo. Podes tratar disso “meu amor perfeito, matizado?”

- José, tens tão pouco jeito para salamaleques … só comparável à tua táctica de entrar logo a matar nas  conversas. Assim espantas a caça, nos dois tabuleiros. Mas vou fazer a chamada... pois claro...isso de matrimónio traz obrigações...
    .....
Doutora Diana, agradeço a sua sempre clara simpatia em me dedicar uns minutos, e já que está disposta a entregar o aparelho ao seu marido, Doutor Cardoso. Vou passar o telefone ao meu José Maragato, a quem já recomendei que não seja muito maçador.

- Doutor? Como está de trabalho este amigo? Uma amizade relativamente recente, de meses, mas que ficou nas minhas entranhas como se nos conhecêssemos desde a primária!

- Pois eu, normal. Já me encontro encaixado na estrutura do Porto, e com bastantes assuntos a que me dedicar. O pessoal que aqui encontrei é mais profissional, quase do nível da Central, mas com as características especiais da gente nortenha. Posso dizer que não estou a desgosto. E o amigo Maragato? Creio saber -pois aqui, neste meio, sempre temos as fichas abertas...- que teve uns tempos bastante atarefados com negócios dentro da normalidade, ou melhor, que não despertaram suspeitas.

Mas conhecendo o Maragato, tenho a impressão de que a sua chamada não é de simples convívio social. Algum tema o pressionou para procurar o parecer profissional deste seu amigo, que assim me considero, fielmente.

- O Dr. tem uma calejo de inspector e uma pituitária tão treinada, que até de longe, e através de um telefone, é capaz de prever da existência de um gato escondido. De facto me vi pressionado para lhe pedir uma opinião, desta vez, por enquanto, não implica crime de sangue. Vou tentar ser breve..

O Dr. Deve recordar o termos tido uma espécie de “joint-venture” com o chefe dos ciganos de Aveiro … bla, bla, bla..... Antes de aceitar o pedido de lhe transmitir, a si, o assunto, dei a minha opinião ao Ortega... bla, bla, bla. . . . Mas o homem estava muito aflito e “ateimou”. E por isso agora estou a maçar em casa, para não dar ao assunto um ar oficial, nem sequer oficioso, sem papéis nem a necessidade de abrir uma pasta.

Sei que o Doutor tem uma mente, além de esclarecida, rápida para estruturar os factos. Daí que, mesmo “na hora”, como dizem os brasileiros, me atreva a lhe perguntar se tem alguma ideia, útil e factível, que possa transmitir ao Ortega. Como pode imaginar, o homem está nervoso, aos saltinhos, como se com isso tentasse reter a bexiga.

Na entrega seguinte veremos se o Dr. Cardoso consegue sossegar ao Rei Ortega.

terça-feira, 16 de abril de 2019

CRÓNICAS DO VALE - Cap 69



Ortega bate à porta

De facto o Gypsi King não chegou a bater à porta. Estava eu -não a caminho de Viseu,desta vez- sentado no alpendre de entrada lendo um opus-culo, em castelhano, acerca da plantação rentável de avelãs, que parece não tem sido bem sucedida neste rectângulo, mas que a venda do fruto é tão estimada e valorizada como os outros frutos secos. Com a pressão mediática actual para que se coma bem e racionalmente, os frutos secos têm tido uma procura inhabitual entre nós.Então Senhor Ortega, bem vindo a esta humilde casa e benditos os olhos que o veem (neste caso os meus...) Já passaram uns meses desde a última vez em que coincidimos, ou nos procuramos, e até nos sentamos na mesma mesa. Posso dizer que já sentia a sua falta. E o que é que o levou a me procurar nesta altura?

- Antes que responda, queria fazer-lhe uma pergunta sem importância: se a vossa família tem alguma ligação com o Armancio Ortega, fundador e dono do grupo Inditex – Zara, e que faleceu em Dezembro passado? O ser um dos homens mais ricos do mundo não afugentou a dama da gadanha!

- Doutor, infelizmente os Ortega do meu lado, eu que saiba, não estão directamente ligados aos galegos da Zara. É pena. Eu até tentei, sem sucesso, aproximar-me destes ricalhaços, especialistas como nós de vender a preços relativamente baixos -nós estamos ao nível dos saldos abaixo de zero- e comprar ou mandar confeccionar a gente que recebe uma miséria pelo seu trabalho. Bateram-me com a porta no nariz.

E como dizem que perguntando consegue-se ir a Roma, dei umas voltas à arena e soube que eles trabalham com séries relativamente curtas, mas amplas em modelos e cores, e com grande rotação. As sobras, quando ultrapassam o período de saldos nas suas lojas, enviam-nas para outras lojas deles, que ainda trabalham quase a preço de custo. E assim não dão a ganhar a feirantes-quincalheiros como nós.
Mas, cá para mim, deve existir uma porção de sangue calé nesta família. Mas negaram esta ascendência. E hoje penso que foram sensatos. Fizeram bem ao atender aos seus interesses.

E agora, se me permitir vou expor o que me empurrou a chamar: Deve ter chegado a seu conhecimento um sarilho de noivados e casamentos ao estilo dos nossos costumes. E que a moça escolhida para ser a noiva, que para meu azar e dores de cabeça, é minha sobrinha e afilhada. Possivelmente incitada pelos maus exemplos que viu entre as suas colegas na escola -o andarem na escola só estraga as famílias!- torceu o narizinho. Se visse que belo narizinho tem ela! Os meus filhos e netos, que andam sempre com livros de banda desenhada nas mãos, dizem que é igual ao da Cleopatra (?) Nem me atrevo a perguntar que é ou era esta senhora, pois seria gozado pelos churumbeles todos, e até pelos maiores já ilustrados.

A questão é que o noivo agarrou na cachopa e queria consumar o casamento nem que fosse à força. Mas a Júlia, que é o seu nome, não foi nisso; rapou duma naifa que trazia escondida num bolso do saiote e ameaçando o noivo dirigiu-se à porta da rua. Abrindo de roldão, saiu e logo ali, “casualmente”, estava um outro primo dela, montado numa mota potente e barulhenta. E a descarregou em casa do padrinho, ou seja na minha casa...

A partir daí meteu polícia, pois que a Júlia não quis aceitar a justiça dos ciganos. Fez a denúncia à PSP pelo telefone e compareceu um carro da Nivea. Aquilo foi classificado de rapto e tentativa de estupro, e não sei que mais palavrões meteu o juíz de primeira instância.

O noivo, também sobrinho, Macário Ortega de sua graça -já sabe que neste grupo somos todos parentes, muitas vezes sem respeitar a consanguinidade- diz, aos gritos, para todos os que o querem ouvir, que ele a vai raptar, à força, e que fugirá com ela, atada e amordaçada se fizer falta, até Marrocos ou Argélia, donde existem famílias da mesma etnia que os acolheriam. Isso é o que ele diz, mas a minha palavra tem mais força do que a dele, e se chegasse o caso convocaria os chefes das famílias mais chegadas e procurariamos o atrevido, mais a Júlia, pois não acredito que se atreva a lhe fazer mal. No fundo ele, o marido rejeitado, não é nada que se respeite, uma desgraça.

- Isabel, eu não te disse sempre que tenho um dedinho que adivinha? E agora vem a segunda parte. Que também suspeito para onde vai, mas não te dou dica nenhuma. Só que o Ortega vai pedir a minha colaboração para falar com alguém, que eu já imagino quem seja.

Na entrega seguinte saberemos da "cunha"