Isabel
e Diana
- Vou
encontrar-me com a Diana Cardoso. Veremos se a vontade de falar desta
amiga recente, mas que parece fixe, corresponde ao que o José
imaginou. Confesso que com alguma probabilidade de ter razão. Está
parada à porta da dita lanchonete. Pelos vistos não quis entrar, o
que prenuncia que será noutro local, mais recatado, que deseja poder
trocar as nossas ideias.
Bom
dia, Doutora Diana, desculpe se cheguei atrasada, mas apanhei algum
transito e alguma dificuldade para encontrar uma vaga nos parques
pagos. Parece que, com a mudanço do tempo todos pensaram em por o
carro a rodar.
- Cheguei
mesmo agora e peço, por favor e amizade, que não me trate com
cerimónias. Falemos como amigas, como se nos conhecessemos da
infância. As poucas horas em que pudemos conversar,
descontraídamente, ficaram-me marcadas dum mdo indelével. Se não
se importa, pensei que era melhor sentarmo-nos num local menos
concorrido.
Eu
já tenho ideia de onde podemos conversar sem olhares e ouvidos
indiscretos. É que esta terra é como uma aldeia, ou pior, pois aqui
além de se conhecerem todos entre si, existem personagens cuja
actividade principal é a de de vasculhar na vida alheia, e nas
aldeias, onde já restam poucas tabernas e os cafés tem sempre as
Tvs ligadas para os programas de que o povo gosta, os utentes estão
mais interessados em estar de nariz no ar e olhando para o aparelho.
-
Vejo que a Diana, se prefere assim, apesar de estar imersa no meio
académico não perdeu o espírito de observação de como a
sociedade, dita civil, foi alterando o seu comportamento. Seja qual
forem os temas que sirvam de conversa, estou de acordo de que os
outros, conhecidos ou desconhecidos, não tem o direito de nos
ouvirem, e pior, de interptetar á sua maneira, sempre malévola.
-
Isabel, desde que estive na vossa casa no Vale, tenho pensado, quase
que com obsessão, na vossa felicidade por terem um espaço
desafogado, sem vizinhos de janela, onde possa jardinar e até, como
me disse pelo telefone, ter uma pequena horta, mesmo que incipiente,
pois que só a prepararam, como surpresa, enquanto estiveram de
viagem. Já tem alfaces aptas a irem para a mesa? E rabanetes? E
cenouras? E flores de vista e de corte? Digo, sem vergonha na cara
que invejo a sua sorte, e sei, por intuição, que até pode ser que
descure, mas com cuidado e atenção, os seus anteriores afazeres
profissionais para chegar a horas de dar umas voltas pelo seu domínio
agrícola.
-
Diana. As plantas do meu mini-terreno crescem lentamente, à antiga.
Propositadamente não lhes são aplicados adubos químicos nem
pesticidas. Quando prepararam o terreno, o feitor disse-me que
procurou esterco curtido na vacaria de um vizinho, e até este
material, biológico, foi devidamente misturado com a terra a fim de
não queimar as raízes. Como certamente sabe, quando o esterco
animal, com a palha das camas, fermenta, liberta muito calor; até se
vê vapor a fumar. Mas, sem dúvida, confiamos mais nesta “porcaria”
orgânica do que nos produtos indiustriais, por muitas garantias de
inócuidade que nos digam.
-
Chegamos Isabel. Esta leitaria, à antiga, quase nunca tem ninguêm
qundo em tempo sem aulas. Vinha aqui quando estudava pois o sossego,
mais algum movimento esporádico, ajudava-me a empinar e entender as
malditas sebentas, e os pesados códigos.
Prefere
um chá ou um leite cremoso, morno e com canela? Eu vou no chá.
-
Eu optarei pelo leite com canela. Há muito tempo que não bebo este
leite temperado, que era a minha delícia nos meus anos de
adolescente. Mas, se não se importa, e atendendo a que quando a ouvi
ontem, propondo este encontro, senti que a sua voz estava, digamos
que nervosa, perturvada, e daí que, por solidariedade instintiva,
também tenha vontade de poder oferecer algum sossego. Caso tiver
capacidade para tal.
-
Amiga Isabel, creio que não disse nada que indiciasse o que me
trazia, e traz, inquieta e preocupada. Mas vejo que o seu instinto
lhe anunciou que, de facto, algo havia no horizonte. Bem, em verdade
não está tão longe como o horizonte, a trovoada já nos caiu em
cima.
A
versão curta é que o Sílvio foi transferido para o Porto, como
chefe de serviço. Aparentemente é uma promoção, mas nós sabemos
que foi um pontapé para a frente, que nos altera a vida fortemente.
A
versão média pode ser a seguinte: O inspector Cardoso, que sempre
tomou as suas responsabilidades ao pé da letra e, tanto quanto
conseguisse, no sentido de se cumprirem as leis vigentes, escreveu o
relatório que lhe pediram “lá de cima” sobre o que apurara
sobre o escãndalo dos crimes ligados à vossa propriedade. È
possível que as conversas que teve com o seu marido o levassem a
pensar que, de facto, a nossa sociedade tinha-se adaptado aos tempos
modernos, ao século XXI e à democracia. À noção de que a lei
tinha que ser igual para todos e a justiça cega, sem olhar de lado
como sempre fez.
E
por isso deve ter feito um relatório, confidencial, que nem eu tive
a possibilidade de ler, onde deve ter descrito o que descubriu e as
conclusões a que chegou. Nomeadamente que toda aquela trapalhada,
por assim dizer, embora os crimes de morte não sejam coisa de
somenos. teve a sua origem numa festa-bacanal onde primavam pessoas
não identificadas ou que, prudentemente, não queria identificar,
embora existissem alguns indícios muito claros, apontando pessoas
concretas, que naquele relatório não figuravam, por uma questão
de respeito e prudência.
Fecho
da versão estilo Triller: Como sucede que os poderosos, apesar dos
processos mediáticos, continuam a ter muita força e não cederam a
sua capacidade de influenciar na justiça, nem que para tal tenham
que pressionar a quem sabem para que retirem algum juiz ou acusador
público para um local afastado, a primeira medida que tiveram, antes
de que as coisas chegassem aos jornais, foi a de afastar o Cardoso
deste inquérito, e colocar outro inspector da sua confiança.
Repercussões:
Eu tenho o meu lugar, o ganha-pão, em Coimbra. E nesta cidade
montamos a nossa casa. Agora estamos físicamente afastados. A meia
solução de o meu marido ir e vir, diáriamente, seja de comboio ou
de carro, é posssível mas cansativa e perigosa se dependente do
trânsito, Chega a casa cansado e mal disposto, especialmente
chateado com o que lhe fizeram. Não quer falar do trabalho que lhe
adjudicaram, pois quase que está delimitado à repressão de
carteiristas e residentes clandestinos, como se fosse um polícia de
giro, dos da PSP e não da PJ.
Não
quis enfrentar as chefias pedindo esclarecimento, pois sabe como a
casa se governa. Diriam que em vez de agradecer a promoção (?)
falava como se tivesse sido castigado. E, após o tirarem bolas fora
ainda lhe mostrariam má cara Por enquanto agora tudo são cínicos
sorrisos.
Estamos
ambos não digo que desiludidos mas sim que muito desconsolados, até
íntimamente ofendidos, com o proceder das altas esferas. Os ares de
mudança com que sonhávamos, os dois, cada dia que passou os
sentimos mais fétidos. Não se pode esperar que a sociedade mude
para a utopia. O peso dos poderosos é muito grande. Podem mudar
alguns dos artistas, mas o esquema vemos que permanece igual. Ou
pior, pois anos atrás tinha-se a ilusão de que as coisas melhoriam,
se tornassem maiss correctas, mas, infelizmente, foi só como a
beleza do arco-da-velha, que além de durar uns minutos, nem sequer
existe materialmente. Não passa de um efeito de luz.
A
desorientação é muita. Não sabemos se transferir a casa de
família, pelo menos da que queriamos iniciar, para o Porto ou
arredores, sem que antes eu tenha conseguido um lugar na faculdade.
Equivalente, ou perto disso, ao que tenho em Coimbra. Ainda não
tentei, nem sequer conversamos seriamente os dois sobre esta
possibilidade. Tenho no Porto professores conhecidos e o meu
curriculum é válido em todo o País.
E
de empreitada desabafei consigo. Não tinha outro pano de lãgrimas
disponível. Tenho que agradecer a sua amabilidade em não me
interromper. E nem sequer me atrevo a lhe pedir um conselho, menos
ainda do âmbito profissional. Mesmo assim peço que me de a sua
opinião e que esta sirva para nos sossegar, mesmo que a solução
esteja ainda por definir.
- Amiga
Diana. Sendo franca, tal como se abriu comigo, digo que nada do que
me conta me causou estranheza. Asco, raiva, nojo, sim, em quantidade.
Mas era de esperar quando vimos o modo como o Dr. Cardoso, ou Sílvio
-se aceitar esta falta de tratamento respeituoso, que não é tal,
mas antes mostra de amizade- conversava com o meu marido.
José, foi criado num meio familiar
muito céptico, pouco iluso quanto à seriedade de muitas pessoas,
especialmente daquelas que se consideravam respeitáveis, mas que
eram tão venais e velhacos como poderia ser um carroceiro. Coitados
estes, que viviam num mundo muito limitado e os seus pecados ou
deslizes, mesmo que pudessem chegar a crimes de sangue, eram uma
bagatela comparativamente com as capacidades e feitos dos outros
A
meu entender, e ainda não tive oportunidade de trocar impressãoes
com o José, que insisto é homem com muito mundo, pode ser que neste
momento vos convêm manter a calma. Dar sinais de que procuram casa
na área do Porto. Que a Diana quer tentar uma transferência para
uma faculdade sita no Porto. E o seu marido que faça o papel de
satisfeito com a promoção e mostre trabalho que -aos de cima-
incite a julgar que de facto está contente com se ver livre dos
problemas de provincia. Se assim os fintar, forçosamente terão que
lhe proporcionar um rumo mais de acordo com as suas capacidades.
E
MUITO IMPORTANTE, manter a boca calada com colegas sobre as suas
conclusões acerca do que aconteceu no Vale do Pito. A pasta deve
estar fechada num cofre, mais do que dormindo numa gaveta, e ele, o
Cardoso, terá que engolir este sapo, tornar-se cínico, nen que seja
na apariência,
A
outra solução, que não sei se serve, e da qual não tenho o menor
conhecimento, é a de tentar entrar numa organização de
investigação privada, de preferência de nível internacional.
Deve, exsitir. Mas isso é um sonho parvo de quem está fora da
jogada.
-
Não sabe como agradeço o me ter ouvido e os seus comentários.
Estes coincidem, quase que totalmente, com aquilo que tenho andado a
moer, e de que pouco falei com o Sílvio, dado que chega a casa com
um ar tão pesado e triste que não oferece uma aberta para falar
tranquilamente. Agora, depois de estar com a Isabel, já me sinto
mais apoiada, mais segura de mim mesma.
-
Só lhe dei as minhas pobres opiniões. Que pouco valem e nada
adiantam. Mas confio em que vocês, um casal educado e com os pés no
chão, conseguirão salvar esta situação. Mesmo que pareça que sou
curiosa em excesso, gostaria de saber como avança a vossa vida. Não
me leve a mal. Aguardarei as suas notícias.
- Eu é que agradeço a sua
disponibilidade e atenção. Não faltarei em lhe dar notícias,
sejam boas, menos boas ou mesmo más. Beijinho e dê os meus
estimados cumprimentos ao seu marido. Até breve, assim espero.
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