quinta-feira, 30 de maio de 2019

CRÓNICAS DO VALE - Cap. 88



Já deglutido o almoço

Tal como ficou anteriormente registado o grupo de dois casais foi direito a um local conhecido e recomendado pelo Dr. Sílvio Cardoso. E que não identifico para o manter em reserva especial. Alem de mostrar um ementa, reduzida, mas excelentemente seleccionada, também é de salientar e agradecer o facto que não ser permitida a entrada daqueles grupos, muito maçadores, de fulanos envergando capas e batinas, eles e elas, e que fazendo barulho com instrumentos portáteis, cantavam traduções em portunhol, tais como “cravinhos”. Como se isso não bastasse para estragar a digestão de quem não os chamou, é habitual fazerem saltos e trejeitos bastante apalhaçados. Só por esta rejeição a ser invadido, merece o local muitas estrelas.

Tampouco darei as receitas da ementa. Só direi que apesar de manter um respeito assinalável pela gastronomia nacional clássica, os apontamentos de modernidade, que o chefe considerou aceitáveis, não colidiram com o nome, quase secular, dos pratos, assim como se notou o evitaram as repelentes riscas coloridas a que muitos cozinheiros aderiram, creio que com o intuito de se mostrar “a la page”.

Foi um repasto agradável e sem pressas. Ultrapassada a fase das sobremesas e cafés, quando as esposas se dirigiram, em tropel de duas, às casas de banho, o Dr Cardoso, quase que em surdina, me disse que depois do que eu apresentei quando estávamos de fronte da casa dos festejos eróticos, e não só, ficou interessado pelas perspectivas que eu tinha apresentado, mas também inquieto, ou alertado negativamente, com o alarme que lhes mostrei. Dai que me propunha um encontro a duo, em data próxima e em local e hora que ele se encarregaria de definir: possivelmente na próxima segunda ou terça feira.

- Tanta pressa?

- E pode ser que já seja tarde. Esta noite porei em andamento alguns colaboradores de Coimbra, que sempre foram dedicados e eficientes, para ver de descobrir quem é que está por trás destas obras. Temos que malhar quando o ferro está bem quente.

É questão de entrar nas conservatórias e puxar de cordelinhos, e nos estúdios de engenharia, e na Câmara Municipal a que pertence aquele local. Pois que pouco ou muito tem que se ter deixado para justificar as obras. Os membros da Judiciária temos porta aberta, e sem perguntas, em todos os gabinetes e repartições.

- Pois, ao Cardoso posso garantir que aquela discursata que lhes dei não tinha sido meditada. Foi saindo espontâneamente, por si mesma. As palavras e pensamentos vieram agarrados como as cerejas. E quanto mais avançava naquela hipótese bizarra, também eu ficava paulatinamente mais preocupado.
As damas devem estar a chegar. É melhor mudar de assunto - disfarçar e assobiar- pois sabe que as mulheres tem um faro muito apurado para sarilhos. Ficamos como disse. Entretanto eu também farei umas pesquisas, que dificilmente darão um resultado imediato.
    ......

Nessa mesma tarde e princípio da noite.

Boa tarde Carlos Costa. Sou o Maragato. Desde já lhe peço que desculpe o meu atrevimento em o procurar para um assunto profissional, sendo hoje um dia de dedicação à família. Podia falar nisso amanhã, mas sei que terei uma segunda feira muito ocupada.

Não se preocupe com estes pruridos. Diga-me em que tenho alguma possibilidade de lhe ser útil.

- Certamente recorda o problema, desagradável e potencialmente perigoso, em que me meteram ao colocar uns mortos, assassinados, num meu terreno em Vale do Pito? Pois estes mortos vieram, já bem defuntos, desde um solar, bem grande, lá pelas bandas do Buçaco. É uma história feia que mexeu com personagens da Alta Roda, e da ralé, que são os encarregados de efectuar as porcarias. O solar ficou uns meses vazio e sem uso, mas agora, de repente, vi que estava a sofrer obras de vulto.

E fiquei com curiosidade para saber quem está por trás desse empreendimento, e mais por o local ser muito conhecido, no meio rural e citadino, até nacional, por ali se terem efectuado vários crimes, entre eles, possivelmente, mais do que duas mortes violentas.
Eu fui apanhado de tabela, ou de propósito. Mas fiquei intrigado. E sempre desconfiei de causalidades. Ao ver aquele movimento de andaimes, gruas e pessoal, mais os barracões de obra. Era evidente que pretendiam lavar o passado do local.

Se, através dos seus conhecimentos, seja nos bancos ou no cartório de advogados e notários, conseguir uns elementos que me permitam tranquilizar, agradeço que me informa. Já sabe que o gato escaldado foge até da água fria, e eu estive em risco de apanhar um escaldão valente, que ainda me tira o sono em certas noites. Eu podia ter chegado mais ao pé das barracas da obra e com o telemóvel tirar uma fotografia daquele quadro branco identificativo que é obrigatório. Mas receiei ser reconhecido e, sem querer, levantar a lebre.

- Doutor Maragato, não se preocupe com isso. Terei todo o gosto de o poder ajudar. E não será difícil, pois conheço muita gente nas obras, desde empreiteiros, sub-empreiteiros, encarregados e até operários. E estes da parte inferior da escala não é raro que conheçam mais do que aparentam.
- Desde já agradeço a sua disponibilidade. E confio que este assunto não lhe estrague o resto do domingo.
....

Outros telefonemas, muito semelhantes, quase idênticos, tive com:
CHICO FAÍSCA. Um chefe de equipa de electricistas que sempre tem pessoal destacado em muitas obras.

MACÁRIO CORREIA. Um notário de Coimbra, muito capaz para desembrulhar assuntos obscuros. Trabalho com ele desde muitos anos.

VÍTOR MENESES, advogado de Coimbra, que foi meu colega durante o tempo em que frequentei a faculdade de Direito.

NELSON DE SOUSA, industrial de Ermesinde que é meu sócio nalguns negócios e empreendimentos.

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