Já
deglutido o almoço
Tal
como ficou anteriormente registado o grupo de dois casais foi direito
a um local conhecido e recomendado pelo Dr. Sílvio Cardoso. E que
não identifico para o manter em reserva especial. Alem de mostrar um
ementa, reduzida, mas excelentemente seleccionada, também é de
salientar e agradecer o facto que não ser permitida a entrada
daqueles grupos, muito maçadores, de fulanos envergando capas e
batinas, eles e elas, e que fazendo barulho com instrumentos
portáteis, cantavam traduções em portunhol, tais como “cravinhos”.
Como se isso não bastasse para estragar a digestão de quem não os
chamou, é habitual fazerem saltos e trejeitos bastante apalhaçados.
Só por esta rejeição a ser invadido, merece o local muitas
estrelas.
Tampouco
darei as receitas da ementa. Só direi que apesar de manter um
respeito assinalável pela gastronomia nacional clássica, os
apontamentos de modernidade, que o chefe considerou aceitáveis, não
colidiram com o nome, quase secular, dos pratos, assim como se notou
o evitaram as repelentes riscas coloridas a que muitos cozinheiros
aderiram, creio que com o intuito de se mostrar “a la page”.
Foi
um repasto agradável e sem pressas. Ultrapassada a fase das
sobremesas e cafés, quando as esposas se dirigiram, em tropel de
duas, às casas de banho, o Dr Cardoso, quase que em surdina, me
disse que depois do que eu apresentei quando estávamos de fronte da
casa dos festejos eróticos, e não só, ficou interessado pelas
perspectivas que eu tinha apresentado, mas também inquieto, ou
alertado negativamente, com o alarme que lhes mostrei. Dai que me
propunha um encontro a duo, em data próxima e em local e hora que
ele se encarregaria de definir: possivelmente na próxima segunda ou
terça feira.
-
Tanta pressa?
-
E pode ser que já seja tarde. Esta noite porei em andamento alguns
colaboradores de Coimbra, que sempre foram dedicados e eficientes,
para ver de descobrir quem é que está por trás destas obras. Temos
que malhar quando o ferro está bem quente.
É
questão de entrar nas conservatórias e puxar de cordelinhos, e nos
estúdios de engenharia, e na Câmara Municipal a que pertence aquele
local. Pois que pouco ou muito tem que se ter deixado para justificar
as obras. Os membros da Judiciária temos porta aberta, e sem
perguntas, em todos os gabinetes e repartições.
-
Pois, ao Cardoso posso garantir que aquela discursata que lhes dei
não tinha sido meditada. Foi saindo espontâneamente, por si mesma. As palavras e pensamentos vieram agarrados como as cerejas. E
quanto mais avançava naquela hipótese bizarra, também eu ficava
paulatinamente mais preocupado.
As
damas devem estar a chegar. É melhor mudar de assunto - disfarçar e
assobiar- pois sabe que as mulheres tem um faro muito apurado para
sarilhos. Ficamos como disse. Entretanto eu também farei umas
pesquisas, que dificilmente darão um resultado imediato.
…......
Nessa
mesma tarde e princípio da noite.
Boa
tarde Carlos Costa. Sou o Maragato. Desde já lhe peço que desculpe
o meu atrevimento em o procurar para um assunto profissional, sendo
hoje um dia de dedicação à família. Podia falar nisso amanhã,
mas sei que terei uma segunda feira muito ocupada.
Não
se preocupe com estes pruridos. Diga-me em que tenho alguma
possibilidade de lhe ser útil.
-
Certamente recorda o problema, desagradável e potencialmente
perigoso, em que me meteram ao colocar uns mortos, assassinados, num
meu terreno em Vale do Pito? Pois estes mortos vieram, já bem
defuntos, desde um solar, bem grande, lá pelas bandas do Buçaco. É
uma história feia que mexeu com personagens da Alta Roda, e da ralé,
que são os encarregados de efectuar as porcarias. O solar ficou uns
meses vazio e sem uso, mas agora, de repente, vi que estava a sofrer
obras de vulto.
E
fiquei com curiosidade para saber quem está por trás desse
empreendimento, e mais por o local ser muito conhecido, no meio rural
e citadino, até nacional, por ali se terem efectuado vários crimes,
entre eles, possivelmente, mais do que duas mortes violentas.
Eu
fui apanhado de tabela, ou de propósito. Mas fiquei intrigado. E
sempre desconfiei de causalidades. Ao ver aquele movimento de
andaimes, gruas e pessoal, mais os barracões de obra. Era evidente
que pretendiam lavar o passado do local.
Se,
através dos seus conhecimentos, seja nos bancos ou no cartório de
advogados e notários, conseguir uns elementos que me permitam
tranquilizar, agradeço que me informa. Já sabe que o gato escaldado
foge até da água fria, e eu estive em risco de apanhar um escaldão
valente, que ainda me tira o sono em certas noites. Eu podia ter
chegado mais ao pé das barracas da obra e com o telemóvel tirar uma
fotografia daquele quadro branco identificativo que é obrigatório.
Mas receiei ser reconhecido e, sem querer, levantar a lebre.
-
Doutor Maragato, não se preocupe com isso. Terei todo o gosto de o
poder ajudar. E não será difícil, pois conheço muita gente nas
obras, desde empreiteiros, sub-empreiteiros, encarregados e até
operários. E estes da parte inferior da escala não é raro que
conheçam mais do que aparentam.
-
Desde já agradeço a sua disponibilidade. E confio que este assunto
não lhe estrague o resto do domingo.
…....
Outros
telefonemas, muito semelhantes, quase idênticos, tive com:
CHICO
FAÍSCA. Um chefe de equipa de electricistas que sempre tem pessoal
destacado em muitas obras.
MACÁRIO
CORREIA. Um notário de Coimbra, muito capaz para desembrulhar
assuntos obscuros. Trabalho com ele desde muitos anos.
VÍTOR
MENESES, advogado de Coimbra, que foi meu colega durante o tempo em
que frequentei a faculdade de Direito.
NELSON
DE SOUSA, industrial de Ermesinde que é meu sócio nalguns negócios
e empreendimentos.
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