terça-feira, 21 de maio de 2019

CRÓNICAS DO VALE - Cap. 84


Serão tranquilo

  • Afinal, depois da catástrofe que imaginávamos encontrar em face do discurso tenebroso que a Isabel nos deu, como dona e responsável da iniciativa, digamos da estufa, vimos que existia bastante obra feita e até já estavam plantas em fase de aclimatação. Isso não desmerece a sua decisão em reorientar o projecto. Posso dizer, tanto em meu nome como no do meu marido, que os Cardoso concordam totalmente com as suas decisões actualizadas. Agora cabe ao casal Maragato definir a nova rota e conseguir um acordo “de cavalheiros” com aqueles que vos queriam ajudar. Penso que é preferível dar-lhes alguns aplausos e louvores a fim de reduzir a sua presença, sem nunca fechar a porta totalmente.
  • Amiga Diana, agradecemos de coração as suas palavras, por serem sensatas e mostrarem que nos apoiam. A nossa maneira de ver as situações com que nos temos deparado ao longo da vida tem sempre com cuidado de evitar litígios.Tanto quanto possível. Mesmo quando se sabia que nos podiam causar algum prejuízo, pois a norma é que depois, quando as águas acalmam, a nossa posição sempre foi positiva.
  • O José, aqui ao meu lado, já me disse que daqui em diante, pelo menos enquanto não se enquadrar tudo na nova orientação, estará, como nos filmes de caboiada, costas com costas comigo. E até se mostra arrependido de não ter feito tentativas mais explícitas, alarmantes até, quando sentiu que o meu entusiasmo estava a patinar, como se derramasse o leite que se tinha posto ao lume.
-Isabek«l, e3u quero entrar na conversa, mas já fora do tema concreto da vossa estufa, que estou certo de que conseguirão reorientar a tempo. Desejo aplaudir, em nome de todos, e com satisfacção, a sua decisão de mandar acender esta lareira, que gostaríamos, se for possível, a ter por perto quando chegar o momento de cear ou jantar, que espero seja frugal. Apesar dos dias estarem quentes e a chuva ter parado, reconheço que este mês não é de confiança. Não tem fama de ser constante, antes volúvel e caprichoso.

E para mudar de tema, e por ter certos pontos de coincidência com as razões que nos expôs a Isabel, embora noutra escala ainda maior. Recordei umas meditações que tivemos quando comentávamos os possíveis prazeres que se podiam ter se navegassem num iate próprio. Imaginemos que depois de gozar dum muito agradável passeio num veleiro de turismo, convidados pelo dono, nos deixássemos voar na fantasia e “decidir levianamente” fazer o possível para conseguir pertencer ao clube dos felizes navegantes. Mais claramente: imaginaram em comprar um iate com um ou mais mastros. Sem tentar quantificar os custos que este capricho sempre implica.

Dizem que sonhar é fácil, e deviam acrescentar que o acordar é um pesadelo real. Nós, os Cardoso, nem sequer sonhamos com estas veleidades, pois por muito fotografadas e badaladas que apareçam nas revistas de cabeleireiro, como a Isabel deve saber, as pessoas normais tem a obrigação de considerar que este tipo de luxos só está à mão de gente que não sua a camisola para conseguir dinheiro, muito dinheiro.

E entre aqueles que tinham herdado fortunas, que vinham dos séculos XVII a XIX, poucos sabem que estas riquezas foram conseguidas com o negócio da escravatura, fosse no capítulo do transporte de escravos de África, sempre comprados a intermediários também africanos, fossem eles sovas pretos, chefes tribais, ou moiros que se encarregavam de reunir e vender a carne humana. Ou os colonos nas Américas, fosse no Brasil ou noutra costa qualquer. Os escravos, sendo um investimento do mesmo estilo do que tractores ou ceifeiras mecânicas foram mais tarde, Esta mão de obra, sem capacidade para exigir, renderam grandes fortunas.

Por prudência, que é a mulher do Prudêncio, não darei nomes de famílias que com a exploração da energia humana subiram na sociedade, e que ainda estão no topo da consideração social. Quem se sentir vocacionado para levantar o tapete não terá dificuldade em encontrar os livros que descrevem de onde saíram as fortunas, as de aqui e as de outros países evoluídos. Entre eles destacou-se o Rei Leopoldo da Bélgica, que se fez amo e senhor de todo o território do Congo, incluídos as pessoas, os animais, as plantas, os minérios e a exploração de tudo o que lhe podia render sem esforço.

Retomando o exemplo das despesas que implicam o manter certos caprichos, sem quantificar deixo uma curta e incompleta relação de compromissos monetários que se sobrepõem, quase a perpetuidade, ao custo inicial do barco. A manutenção, o arrendamento de um posto de amarração numa marina, ou o erguer para uma base seca, as limpezas de casco e pintura. A manutenção das velas e cordame; o ter algum tripulante profissional; as vistorias e impostos; os cuidados a ter com o motor auxiliar, indispensável; os seguros. E mais um longo etcétera. Uma lista que, se algum entendido nos ajudasse a quantificar, nos fazia desistir antes mesmo de começar. O sonho rebentaria como uma bolha de sabão.

  • Creio que todos compreendemos o moral da história. Quando eu tive que me responsabilizar pela manutenção desta casa, que de repente nos parrece um solar, já imaginava que implicaria uns custos pesados e permanentes. Nem só ficavam compensados pelo facto de ter sido habitada como morada permanente. Mesmo agora o pessoal fixo é reduzido ao mínimo, mas nas épocas áureas o número de pessoas ao serviço da família era muito superior. Hoje algumas tarefas ficaram simplificadas com a utilização de máquinas, e os soalhos deixaram de ser esfregados e encerados manualmente: passaram a estar envernizados e só carecer de esforços menos estafantes.
E eu ainda quero introduzir outra fonte de despesas mal programadas. Refiro-me às segundas residências, as casas de férias, que muitos casais organizaram com entusiasmo quando os filhos eram crianças. Mais tarde, alguns anos depois viram que ao crescer muitos preferiram viajar sem os pais, com grupos ou à aventura, sempre para novos destinos. E aquelas casas ficaram sem uso ou só para que os velhos tentassem justificar a despesa que, inevitavelmente, comportam. Isso sem falar em impostos, seguros, reparações, roubos, vandalismo, deterioração inevitável, problemas com a distribuição de água ou dos esgotos. Quantas vezes o que encontram ao chegar não os incita a virar costas, fechar e fugir a sete pés?

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