quinta-feira, 23 de maio de 2019

CRÓNICAS DO VALE - Cap. 86



Passeio com os Cardoso

José, agora que estamos sós, e fechados no quarto, tens que me ouvir. E aviso que vem aí um ralhete. Tu hoje deves ter bebido mais do que a conta. Logo tu, que nem sequer tens graça ao contar anedotas; antes és uma desgraça, e sabes disso, como prova que raramente te atreves a esta façanha, foste contar a história das vacas e dos bois, em véspera de sairmos de passeio com uns amigos e com a mesma distribuição de lugares que retrataste! Até o Badaró tinha mais piada do que tu, e recorda que ele era um emplastro. Querias ofender as pessoas? Não sei como não se levantaram e deram o fosques no mesmo instante.

- Isabel. És uma exagerada. As pessoas deste meio onde nos movemos estão mais do que habituadas a ouvir e contar anedotas, muitas delas bastante mais agressivas do que esta, que estava ao nível do primeiro ciclo do liceu. Apesar de ser velha, requentada, eles bem que se riram, pois já estavam bem dispostos do serão. Vá, Isabelinha, deixa-te de manias. Olha, eu vou tomar um duche relaxante, quentinho, mas sem sabão que já tenho a pele demasiado ressequida. E se estiveres para aí virada, convido-te a me acompanhares, como numa aventura de namorados de primeira vez.

- Está bem. Esqueçamos e vou-te acompanhar. MASSSS mesmo sabendo que detestas, aviso que entrarei com a touca na cabeça. Não estou com paciência para secar o cabelo com o secador durante longos minutos; quero manter a cabeleira bem arrumada logo de manhã. E se me vires colocar uma rede, “auguinta Zé!” Vou recompensar-te como se fosse uma gueixa de olhos amendoados, mas com uns quilitos a mais do que a normativa nipónica permite.

- Tu tranquila e segue em frente, já sabes que as mulheres magras, para meu gosto, são desconfortáveis. Pelo menos na posição do missionário.

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- Bom dia! Nós não quisemos vir demasiado cedo para evitar ruído e já estão estes recentes nortenhos, do “Puorto”, adiantados. Espero que a Amélia vos tenha atendido condignamente. Não duvido disso, pois já deu excelentes provas de estar imbuída nos costumes da casa.

- Também quero participar nas boas-vindas matinais, incluídos os apertos de mão e dos beijinhos da praxe. E já comodamente sentado vos pergunto se dormiram bem? Se a cama permitia descansar, e se a temperatura do quarto era aceitável. Não digo nada de melgas e mosquitos porque até esta semana ainda não nos visitaram.

- O leite, é duma qualidade difícil de conseguir actualmente. Vem de uma vacaria que está perto da casa, A nossa governanta, quando vai ao pão fresco do dia, ainda quente, sempre traz uma leiteira das antigas, daquelas de alumínio, com tampa e asa, para o nosso pequeno almoço. E outra mais se avisei que queria puré de batata na refeição ou algum pudim que leve leite. Ou seja, é natural do Vale do Pito, antes de ser desnatado e lotado, certamente com água, quando entra no circuito da cooperativa, cuja camionete refrigerada aparece de madrugada para recolher o verdadeiro leite do dia. Mesmo assim, a cooperativa de Aveiro, ou do Vale do Vouga, que é esta zona, tem fama de entregar leite em óptimas condições e qualidade.

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- Estamos já preparados para passear? E o Cardoso me aceita como pendura? Como não me deu o trajecto a seguir pouco posso ajudar, alertar sobre as velocidades recomendáveis e outros cuidados no percurso. Fraco copiloto! E tenho que retrair a vontade de conversar, para não distrair quem vai ao volante. 
 
- Pois entremos na viatura

Por enquanto a zona por onde passamos vos é conhecida. Mas dentro de pouco vos darei uma surpresa, ou uma novidade. Quando chegarmos ao topo daquele morro pararei num espaço aberto para apreciar a paisagem. Entretanto comentarei a passada noite, especialmente a madrugada. Tivemos o prazer de acordar com o cantar dos melros, coisa que na nossa casa no Porto ainda não demos por eles. Possivelmente porque o barulho de fundo que as rodovias nos oferecem, mesmo que não nos agrade, ofusca os sons muito mais capitosos da natureza.

Do lado das nossas janelas, que deixamos entreabertas, deviam estar, pelo menos, dois melros em despique de canto para seduzir alguma fêmea. Os seus chilreios eram merecedores de ser ouvidos, gravados e passados para uma pauta por algum musicólogo com conhecimentos suficientes para os traduzir.

Ora chegamos ao local que anunciei. Sugiro que desçam todos e comentemos o que nos é dado ver.

- Eu nunca estive neste ponto, mas pelas descrições que tive em seu dia, ou dias, apostaria que este é precisamente o que se pode chamar o lugar do crime. Vocês até podem estranhar esta minha falta de curiosidade, mas eu, com o meu feitio, quando um local, uma pessoa, um tema, me incomoda, prefiro bani-lo no máximo das minhas capacidades. E, se de facto, esta mansão corresponde ao tal centro de festejos sexuais de terceiro, ou quarto, grau...

- O Maragato acertou e partilho a sua adversão. Eu é que, pela minha profissão, não pude escapar de vasculhar neste antro. Que de facto é um antro, em muitos pontos até tenebroso. Não quero estragar o ambiente, especialmente as senhoras, mas quem tenha lido ou visto no cinema, descrições de câmaras de tortura, de aparelhos, de argolas, de sangue nas paredes, aqui existe um repositório completo.

Nós, os da PJ, não nos podíamos manter totalmente ao largo, mesmo que desde as instâncias superiores nos empurrassem para outras investigações. Practicamente, desobedecendo as ordens que sibilinamente nos davam, continuamos sem deixar apagar este escândalo. O que se compilou, num dossier totalmente reservado, o mais SECRETO, que internamente nos permitimos, e que poucas pessoas, além de mim, puderam consultar, ficou gravada uma lista de pessoas graúdas que estão directamente implicadas. Não digo que seja espantosa, porque desde sempre nos corredores dos murmúrios, se soube que os membros das altas esferas tem uma paixão por não obedecer regras, já não digo exclusivamente as escritas em códigos, mas inclusive as mais instintivas acerca do bom comportamento humano. Aquelas que uma pessoa de bem não necessita que lhe sejam apontadas. 

Como devem ver há sinais de que a edificação está em obras. Toda a mansão tem andaimes! E se é grande, mesmo enorme! O quer irá sair daqui? Existe uma escritura de compra e venda pela qual toda a propriedade foi adquirida por uma empresa sediada nas Ilhas Caimão. O que deixa um certo cheiro de esconder alguma coisa.

Voltando às características próprias da PJN, começam por não usarmos farda. Andamos “à paisana”. Depende directa e exclusivamente do poder judicial, ou seja do Ministério da Justiça. Não temos uma força armada, o que não quer dizer que não carreguemos armas... Quando carecemos deste tipo de apoio socorremos da PSP, da Guarda Republicana, ou da Guarda fiscal se o tema entra no espaço das fronteiras. Inclusive podemos solicitar a colaboração do exército, marinha e força aérea. Mas só em casos muito excepcionais. As nossas investigações são pouco espectaculares, e por isso nem sempre carecem de apoio militar ou militarizado. Quando em campo aberto é normal ter a colaboração da GNR.

Cito este aspecto do funcionamento interno para justificar a acção que nos facilitou a GNR, que tem homens no terreno, com contactos na malandragem, do estilo de uma mão lava a outra, que nos poupa muito trabalho. A GNR e as outras forças militarizadas, como sabem, tem também as suas secções de investigação judiciária. De facto, é difícil escapar à densa rede de controle. A não ser quando exista uma porta propositadamente aberta, seja para conseguir um fim ou por um desvio punível do comportamento individual.

Por exemplo. Aqui o Maragato contou-nos, em seu dia, que fora sondado por um indivíduo, esquisito, que pretendia comprar ou arrendar a sua casa no Vale. Mas não conhecia o nome, nem um telefone ou endereço. Nós não tivemos dificuldade para o caçar. Este tipo de colaboradores da malandragem depressa dão nas vistas, nem que seja através de escrituras notariais. Mas, em geral, mal um deles pós o pé fora da casota, nós já o temos debaixo de olho. E este, em particular, mal dei o sinal de caça, após saber da sua existência pelo Maragato, no dia seguinte já foi hospede dos nossos calabouços em Coimbra.

- Muito me conta o Doutor Cardoso. Pelo que diz até a dormir está de serviço! Tenho que ter cuidado consigo Ah! Ah! Ah! É um bom profissional e sabem agir na sombra, sem que a maioria dos cidadãos se apercebam da vossa importância e probidade. E então, o tal homem angariador de novas propriedades, contou muita coisa? Não pretendo entrar nos segredos da investigação. Só por curiosidade e por o ter, eu, qualificado de ser um mero intermediário.

- De facto, depois de uma noite e uma manhã “de molho”, antes de o alimentar e soltar, foi devidamente exprimido. Inicialmente eu mesmo quis calibrar o indígena, e depois os meus colaboradores lhe tiraram o sumo todo. De facto, tinha pouco que contar. Ou era mais habilidoso em disfarçar do que nós a interrogar. Duvido. No fundo não passava de um peão de terceira linha. O seu contacto para cima estava restrito a uma caixa postal, e esta era seguida por uma agência. Quem contratou na agência, que vimos ser um estaminé de gestor, o fez pelo telefone, e depois com estafetas d  empresas, tal como os distribuidores de pizzas. E aí se perdia o fio da meada. São profissionais no que se refere a resguardarem as costas. 

Mas nós somos teimosos, e quando nos colocam pedras em frente das rodas ainda ficamos mais curiosos. Por isso, o Maragato não se admire se lhe digo que fiquei a saber de muitos grandes nomes envolvidos nas mortes que lhe tentaram colocar sobre as suas costas.

Claro que, como é tradicional em quase todos os países, mesmo naqueles que julgamos serem mais abertos, este assunto ficou fechado a sete chaves. E eu “ganhei” por tabela uma promoção. Digamos um pontapé para a frente, que me transferiu para o Porto. Podia ser pior. Se me enviassem para Beja, o que faria eu ali? Alguém, la pelos mais altos gabinetes, entendeu que ainda poderia ser útil caso os ventos mudassem e viesse a ser pertinente bicar na crista de algum galo.

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