quarta-feira, 8 de maio de 2019

CRÓNICAS DO VALE – Cap. 80



Um almoço de dois casais amigos.

Se calhar viemos demasiado cedo. Mas assim tive tempo de comprovar que as equipas dos salões continuam a seguir as regras que deixei estabelecidas. Achas que devemos entrar ou esperamos no carro?

O melhor será entrar e ver que mesa nos foi reservada. Com certeza que a dona Gertrudes nos dará uma ideia do que preparou para nos servir. Mas eu prefiro ir ficando à expectativa e ter surpresas gostosas. Quando te sentares pede um cálice de porto branco seco, bem frio, e umas amêndoas torradas, daquelas que lhe mandam desde Espanha. As que só com um toque já soltam a pele. Eu vou até o quiosque da esquina e comprar o jornal, para fingir que leio. Não me demoro.

  • Boa tarde, amiga Gertrudes. Sabia que os nossos amigos, os que devem estar a chegar, ficaram muito agradados da forma como nos atenderam e do que lhes serviu no dia em que cá estivemos com eles? Pois deve ser o que acontece com todos os seus clientes, já que nunca vi quem se levantasse da mesa com cara de ter mal comido. Merece bem aquele diploma que lhe entregaram os do turismo local, e por três anos seguidos! Além dos recortes de jornais e revistas que os seus clientes lhe trazem para juntar no seu livro de recordações.
  • Ora, doutora Diana e doutor Cardoso, uma alegria vos ver. E que bem parecidos ficam com roupagens informais, livrando-se dos trajos, digamos sérios, a que os obrigam os estatutos. O José foi procurar um jornal; deve ser para se abanar pois não creio que consiga ler estando acompanhado. Cá está ele!
  • Posso  saudar este formoso casal? A doutora em primeiro lugar, como é de preceito e um abraço para o Amigo Cardoso. E se nos sentássemos?

- Amigo Maragato, um pedido, quase um ralhete, creio recordar que lhe tínhamos ficado que, quando as obrigações sociais do cargo, não estivessem presentes, gostávamos de que nos tratassem só por Diana e Sílvio, e do nosso lado os amigos continuariam como Isabel e José.

Uma boa mesa esta. Nem escondida, pois não vamos conspirar, nem exposta em demasia. O que é que a Dona do local nos preparou? Se o José não sabe, como se deduz do seu abanar de cabeça, será pertinente chamar a dona Gertrudes; não é este o nome da senhora?_

- Boa tarde, minhas senhoras e seus maridos. Se não se importam vou recitar o que escolhi da ementa geral, seguindo as indicações de liberdade total que a dona Isabel, cliente e amiga de longa data, me deu quando disse preferir ter surpresas à mesa. Podem começar, como é hábito, por umas pequenas entradas, tipo aperitivo. Algumas são tradicionais e outras as mandei vir da vizinha Espanha para agradar ao também cliente e também amigo José Maragato.

Oiçam com atenção e se alguma das coisas que nomear não agrade é dizer, que aqui nada se perde:

  • Umas lascas, pequenas, cortadas com a longa e estreita faca tradicional por lá, de jamón serrano. Do autêntico! E que tenho reservado para clientes muito especiais, como é o caso de hoje.
  • Umas ameijoas de lata, galegas, sem desprimor das nossas ameijoas abertas no momento. Mas as que eles põem como tapas nos bares tem, de facto, um sabor especial.
  • Meia dúzia, ou dúzia e meia, se eu vir que desaparecem milagrosamente, de azeitonas partidas, vindas directamente das terras dos meus pais, tios e primos.
  • Uns bocadinhos de pickles feitos na casa, com verduras seleccionadas e vinagre autêntico.
  • E finalmente um pratinho da minha versão dos callos espanhóis, com colorau e pimenta para temperar o molho.
  • Desta feita não vos falo em joaquinzinhos, nem enguias fritas ou caracoletas do mar. Nem sequer de percebes ou de ovas de pescada, nem linguiça assada na canoa com aguardente. Hoje deu-me para entrar no flamenco! Para a próxima, se estiver na época, vos apresentarei umas alcachofras fritas com polme, à maneira de uma cliente espanhola que também se tornou freguesa certa.
  • E para bebericarem com as entradas o melhor é que sejam os senhores a dar a indicação. Sei que o Dr. José, quando vem ambientado, pede um porto branco seco e bem frio. Mas atrevo-me a dizer que tenho no frio um alvarinho galego, de três estalos. Que tanto pode servir para abrir boca como para o primeiro prato a sério.
- Sílvio, e se fossemos ao tal alvarinho? As senhoras jogam neste convívio luso-galaico? Poderia ser um alvarinho de Monção, que também é bom, mas a proposta da casa creio que é para respeitar. O nacional será noutra ocasião. Prometo!

Todos estão de acordo, e ansiamos por começar a petiscar. Dona Gertrudes, isto será demorado?

- Qual que. Está tudo preparado e já fiz sinal a uma ajudante que, se repararem, já traz uma travessa bem servida de aperitivos. Sem castanholas nem saiotes de bolas, mas com boa disposição.

As doses, como podem observar, não são tão minúsculas como as tapas de alguns bares -a não ser na Galiza e na costa cantábrica- pois quis dar oportunidade a que os quatro presentes pudessem picar. Ah! E se alguma desta iguarias souber a pouco... Não se acanhem, façam sinal que existe uma reserva especial!

Quanto ao peixe, não vos adianto o que tenho para os senhores. Só que serão duas especialidades a repartir. Já verão se depois preferem continuar com pratos de carne ou se reservam um pouco de estômago para as sobremesas “da casa”, mas esta “da casa” não é uma daquelas tretas que é costume impingir a cientes de uma vez. Mais não explico, só admito que os mais curiosos se levantem e venham até à copa para deitar o olho ao que a vossa Gertrudes seleccionou.

O café pode acompanhar-se com um digestivo -será que ajuda a digerir?- mas não com um charuto, pois que a legislação não permite...


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