segunda-feira, 29 de abril de 2019

CRÓNICAS DO VALE – Cap. 75



O que o avô não queria levar para a cova.


Como se fosse uma história “de encantar” contou que sendo ele novo, recém entrado na Escola Militar de Toledo, na Espanha monárquica, um dia viu andar pelo Alcazar, que era a antiga fortaleza casteleja dos moiros, que ficou intacta quando eles se renderam e fugiram mais para o sul, uma jóvem tão formosa que o deixou enfeitiçado. Soube que era filha do Comandante da Escola, e que se chamava Inmaculada, ou familiarmente Inma, com uns muitos apelidos de nobreza: Ponce de Leon Almagro Rodriguez de Ahumada.

Eu, um Zé Ninguém, com um apelido, Maragato, que mais não era do que uma alcunha que mostrava a sua origem numa zona esquecida e pobre, a Maragateria, sentiu que o seu coração batia como louco, latejavam-lhe as fontes e os pulsos. Chorava sem lágrimas ao avaliar que não tinha, mem teria, a mínima chance para conseguir fazer daquela mulher a sua esposa. Isso aconteceu tendo ele dezoito anos, nem agora a esqueceu, estando às portas da morte.

- Mas o avô nunca mais a viu?

- Claro que a vi, pelo menos enquanto estive naquela escola e o pai se manteve como responsável. Mas quantas mais vezes a via, mais sofria, desesperado! As agruras esmoreceram quando fui enviado já como tenente para Marrocos, em Melilha. Aquilo era uma loteria para a morte, onde nos davam bilhetes sem os comprar. Os guerrilheiros marroquis -mais correcto será chamar-lhes de bere-beres, pois eles pertenciam a esta estirpe moruna-, não nos davam tempo livre para meditar e escrever ou ler correspondência. Uma tontice da minha parte, pois nunca me atrevi a escrever à minha sonhada Inma.

Ultrapassado o tempo que me tinham destinado na defesa (?) das praças do norte de África, e já com um estilhaço de granada na perna esquerda, que como sabes ainda hoje me faz andar mancamente, fui “licenciado” e destacado para regimento aquartelado em Zamora. Ali soube, através dos mexericos da tropa, que a Inmaculada tinha casado com um oficial de cavalaria, com patente de capitão segundo diziam, e que já tinham dois filhos. Este teu avô, naquele instante admiti que estaba definitivamente arrumado, sem que a minha Dulcinéia sonhada soubesse que eu existia e menos que por ela estava apaixonado sem remédio. Em Zamora queimei as naves e decidi que tinha que rumar para outro porto.

- E então avô? O que aconteceu?

- Conheci uma senhora respeitável, com idade um pouco mais nova do que eu, e sem bigode. De boas famílias, mas não de militares! Filha, e com irmãos, de um boticário, dono da farmácia mais importante da cidade, onde eu ia encomendar os medicamentos, ligaduras e pomadas quando a distribuição do Ministério da Guerra se atrasava. Ali conheci a que veio a ser minha mulher e tua avó. A avó Eugénia.

- Tenho muitas saudades da avó Eugênia. Era muito bonita e muito simpática. Contava-me histórias em castelhano ainda quando a família, creio que por problemas políticos, se deslocou para Portugal. E que que conta a seguir, avô ?

- Pouco mais há que contar, que tu não saibas. A tua avó Eugênia era uma excelente pessoa, uma esposa sem igual e mãe insubstituível. Foi a melhor companheira que eu poderia ter tido. Sem dúvida. Mas não faças esta careta, menino, sei o que trazes na cabeça para perguntar e não te decides.

Podes estar certo que de vez em quando via a Inmaculada pela rua, ou a confundia com outra jovem, sabendo que os anos também passaram por ela e que a imagem que eu guardava, feito parvo e mais que parvo, era só uma miragem, que me acompanhará no caixão. Ali estaremos três cadáveres, a avó Eugénia, que me espera no cemitério, eu e do outro lado a Inma. De facto só estarei eu, os meus restos. Para ver a avó terei que sair do caixão e procurar a sua campa. A da Inma, quem sabe donde está ou estará. Foi um sonho de anos, de uma vida aos soluços, mas que não amargou a vida dos teus avós como casal.

- E a avó sabia dessa paixão, de romance?

- Saber sabia, mas era suficientemente inteligente para saber que dali não veria qualquer perigo. Filho, ou melhor neto, José, procura recordar, até morrer, que as mulheres são mais espertas do que os homens, e quando nós vamos elas já voltam. Nunca as poderás enganar totalmente pois que as tuas aventuras, mesmo as que fizeres a sério não passarão de imaginações, mas sempre deixarás sinais que elas captam.Isso quando estão interessadas, pois em caso contrário não ligam! O importante acontecerá com a que vier a ser a tua esposa, a mãe dos teus filhos, que ainda estás muito longe de a conhecer e mais ainda de saber quem deixarás neste mundo.

- José, marido, isto que me contaste  e que eu ouvi atentamente, é um romance dos folhetins da rádio! Não me estiveste a passar uma treta, , uma aldrabice para entreter a parva da tua mulher?, como no conto das mil e uma noites?


- Contei o que me recordo. Não garanto que tudo acontecesse assim. Mas no fundo, sei que o avô trazia esta espinha na garganta desde que era novo. E agora toca a levantar da cama, que tenho coisas para fazer!

Na entrega seguinte, que sabe-se lá quando aparecerá, saberemos quando voltou a ver o avô Paco.

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