quarta-feira, 17 de abril de 2019

CRÓNICAS DO VALE - Cap. 70



Cá vem a cunha que se previa.

- Amigo Ortega. Este problema que provoca desassossego, a meu ver, é um assunto de família, que deveria ser resolvido internamente dentro do seu clã. Mas... como já chegou ao tribunal, agora estão num sarilho que não podem acalmar internamente. Penso que só poderiam tentar anular o processo se a noiva Júlia, se apresentasse no tribunal dizendo que queria retirar a queixa. O que equivale a dizer que se sujeitava às regras da vossa etnia. E, se como o Ortega diz, ela é de nariz torcida, não é muito provável que ceda.

- Diz bem o Doutor, mas desconhece como pensam as novas gerações dos ciganos. Há costumes e obrigações que eles rejeitam, negam totalmente. E os casamentos fora do grupo étnico, por assim dizer, estão mais presentes cada dia. No nosso clâ de Ortegas, os mais velhos, vem dizer-me que nas suas casas todos aqueles com menos de 30 anos estão a favor de Júlia e contra o Macário. Especialmente as raparigas, que dizem ser donas do seu corpo e não os pais, tios ou chefes do grupo. Estou num sarilho pior do que quando nos aparecem os da ASAE para nos lixar. A estes sabemos como os manobrar.

- Então, amigo Rafael, tem alguma ideia em mente com a qual lhe parece que eu possa colaborar?

- Se não tivesse não lhe teria telefonado. Sabe, gostei muito do tratamento que o Doutor Inspector-Chefe da Judiciária, de seu nome, se não estou confundido, Dr. Silvio CARDOSO. E pela forma nada presunçosa com que sempre me tratou. Imaginei -e desculpe a ousadia- que se o Amigo Dr. Maragato não aceitaria o pedido de sondar este Senhor no sentido de que, com a experiência que deve ter, nos pode sugerir algum caminho, sensato e com possibilidades de arrumar este problema sem alterar gravemente os nossos costumes, que já lhe disse estão em processo de desagregação.

- Senhor Ortega. Já nos conhecemos e falamos de muitas coisas, mas dos vossos costumes pouco ou nada me atreví a comentar. Agora, porém, e mesmo antes de prometer, e cumprir, que ainda hoje vou tentar falar com o Dr. Cardoso, sem que à partida lhe possa garantir nada mais do que a minha seriedade e boa vontade. Que sem dúvida me merece. Gostaria de dizer umas palavras, curtas, que não serão novidade para si.

O grupo da vossa etnia, que já anda por este País, e pelos outros da orla mediterrânica, à volta de 500 anos, insistiram e conseguiram viver no meio dos nacionais como se estivessem num universo paralelo, com uma língua própria, embora possa ser vista como uma mistura de influências, e uns costume possivelmente ancestrais que para vocés, devem ser leis a cumprir, sem discussão. Hoje tem Cartão de Cidadão, passaportes (possível que vários por cabeça...) que imagino só os comprometem em certas e determinadas ocasiões. Para a vida normal e familiar insistem em seguir as vossas regras especiais.

Mas nem que seja pela influência das novas gerações e, certamente que pela instrucção obrigatória consequência de terem deixado a vida nómada, pelo menos alguns, mesmo que as raparigas sejam afastadas da escolaridade quando chegam à puberdade, o certo é que os vossos costumes e regras tem o futuro muito comprometido.

Teriam que migrar todos de retorno ao Paquistão ou seja qual for o local de onde partiram. Coisa que obviamente não farão. Ou então ceder aos tempos actuais, abdicando de algumas das características que insistem em manter para se diferenciar dos paios.

Veremos o que nos dirá o Dr, Cardoso. Hoje nada mais podemos fazer, eu nem o Ortega. Só podemos conversar de assuntos sem importância, até que decida que são horas de regressar à sua casa.

Como no fado de Coimbra, chegou a hora das despedidas, pelo menos por hoje. Esteja descansado, vou telefonar à hora de jantar ao Dr. Cardoso e procurarei ser seu advogado, pois entendo que só se decidiu a pedir ajuda porque estava entre a espada e a parede -que fica entre Carcavelos e São Pedro de Estoril-

........

- Isabel, já viste como pensando um pouco nos acontecimentos recentes, e ligando ao passado, podemos ter algum sucesso na previsão. Neste assunto do Ortega de facto era fácil, quase infantil. Depois do jantar, para não dar uma noção de ser assunto oficial, vou pedir que sejas tu a ligar para casa dos Cardoso, perguntes pela Doutora Diana. Fica bem começar com uma conversa social, com os temas próprios das senhoras. Podes, se entenderes estar na onda, deixar cair, como se por acaso, que já avançamos com a tua estufa, pois recordo que a Doutora lamentava-se de não ter um jardim donde descargar da pressão do trabalho. E, tens liberdade, se estiveres para esta maçada, para combinar um almoço,ou jantar, em casa ou num local público.

E depois a parte mais importante: perguntar se o marido, dr. Cardoso, está disponível para uns minutos, poucos, de conversa comigo. Podes tratar disso “meu amor perfeito, matizado?”

- José, tens tão pouco jeito para salamaleques … só comparável à tua táctica de entrar logo a matar nas  conversas. Assim espantas a caça, nos dois tabuleiros. Mas vou fazer a chamada... pois claro...isso de matrimónio traz obrigações...
    .....
Doutora Diana, agradeço a sua sempre clara simpatia em me dedicar uns minutos, e já que está disposta a entregar o aparelho ao seu marido, Doutor Cardoso. Vou passar o telefone ao meu José Maragato, a quem já recomendei que não seja muito maçador.

- Doutor? Como está de trabalho este amigo? Uma amizade relativamente recente, de meses, mas que ficou nas minhas entranhas como se nos conhecêssemos desde a primária!

- Pois eu, normal. Já me encontro encaixado na estrutura do Porto, e com bastantes assuntos a que me dedicar. O pessoal que aqui encontrei é mais profissional, quase do nível da Central, mas com as características especiais da gente nortenha. Posso dizer que não estou a desgosto. E o amigo Maragato? Creio saber -pois aqui, neste meio, sempre temos as fichas abertas...- que teve uns tempos bastante atarefados com negócios dentro da normalidade, ou melhor, que não despertaram suspeitas.

Mas conhecendo o Maragato, tenho a impressão de que a sua chamada não é de simples convívio social. Algum tema o pressionou para procurar o parecer profissional deste seu amigo, que assim me considero, fielmente.

- O Dr. tem uma calejo de inspector e uma pituitária tão treinada, que até de longe, e através de um telefone, é capaz de prever da existência de um gato escondido. De facto me vi pressionado para lhe pedir uma opinião, desta vez, por enquanto, não implica crime de sangue. Vou tentar ser breve..

O Dr. Deve recordar o termos tido uma espécie de “joint-venture” com o chefe dos ciganos de Aveiro … bla, bla, bla..... Antes de aceitar o pedido de lhe transmitir, a si, o assunto, dei a minha opinião ao Ortega... bla, bla, bla. . . . Mas o homem estava muito aflito e “ateimou”. E por isso agora estou a maçar em casa, para não dar ao assunto um ar oficial, nem sequer oficioso, sem papéis nem a necessidade de abrir uma pasta.

Sei que o Doutor tem uma mente, além de esclarecida, rápida para estruturar os factos. Daí que, mesmo “na hora”, como dizem os brasileiros, me atreva a lhe perguntar se tem alguma ideia, útil e factível, que possa transmitir ao Ortega. Como pode imaginar, o homem está nervoso, aos saltinhos, como se com isso tentasse reter a bexiga.

Na entrega seguinte veremos se o Dr. Cardoso consegue sossegar ao Rei Ortega.

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