Cá
vem a cunha que se previa.
- Amigo Ortega. Este problema que provoca desassossego, a meu ver, é um assunto de família, que
deveria ser resolvido internamente dentro do seu clã. Mas... como
já chegou ao tribunal, agora estão num sarilho que não podem
acalmar internamente. Penso que só poderiam tentar anular o
processo se a noiva Júlia, se apresentasse no tribunal dizendo que
queria retirar a queixa. O que equivale a dizer que se sujeitava às
regras da vossa etnia. E, se como o Ortega diz, ela é de nariz torcida, não é muito provável que ceda.
- Diz bem o Doutor, mas desconhece
como pensam as novas gerações dos ciganos. Há costumes e
obrigações que eles rejeitam, negam totalmente. E os casamentos
fora do grupo étnico, por assim dizer, estão mais presentes cada
dia. No nosso clâ de Ortegas, os mais velhos, vem dizer-me que nas
suas casas todos aqueles com menos de 30 anos estão a favor de
Júlia e contra o Macário. Especialmente as raparigas, que dizem
ser donas do seu corpo e não os pais, tios ou chefes do grupo.
Estou num sarilho pior do que quando nos aparecem os da ASAE para
nos lixar. A estes sabemos como os manobrar.
- Então, amigo Rafael, tem alguma
ideia em mente com a qual lhe parece que eu possa colaborar?
-
Se não tivesse não lhe teria telefonado. Sabe, gostei muito do
tratamento que o Doutor Inspector-Chefe da Judiciária, de seu nome, se
não estou confundido, Dr. Silvio CARDOSO. E pela forma nada
presunçosa com que sempre me tratou. Imaginei -e
desculpe a ousadia- que
se o Amigo Dr. Maragato não aceitaria o pedido de sondar este Senhor
no sentido de que, com a experiência que deve ter, nos pode sugerir
algum caminho, sensato e com possibilidades de arrumar este problema
sem alterar gravemente os nossos costumes, que já lhe disse estão
em processo de desagregação.
- Senhor Ortega. Já nos conhecemos
e falamos de muitas coisas, mas dos vossos costumes pouco ou nada me
atreví a comentar. Agora, porém, e mesmo antes de prometer, e
cumprir, que ainda hoje vou tentar falar com o Dr. Cardoso, sem que à
partida lhe possa garantir nada mais do que a minha seriedade e boa
vontade. Que sem dúvida me merece. Gostaria de dizer umas palavras,
curtas, que não serão novidade para si.
O
grupo da vossa etnia, que já anda por este País, e pelos outros da
orla mediterrânica, à volta de 500 anos, insistiram e conseguiram
viver no meio dos nacionais como se estivessem num universo paralelo,
com uma língua própria, embora possa ser vista como uma mistura de
influências, e uns costume possivelmente ancestrais que para vocés,
devem ser leis a cumprir, sem discussão. Hoje tem Cartão de
Cidadão, passaportes (possível
que vários por cabeça...)
que imagino só os comprometem em certas e determinadas ocasiões.
Para a vida normal e familiar insistem em seguir as vossas regras
especiais.
Mas
nem que seja pela influência das novas gerações e, certamente que
pela instrucção obrigatória consequência de terem deixado a vida
nómada, pelo menos alguns, mesmo que as raparigas sejam afastadas da
escolaridade quando chegam à puberdade, o certo é que os vossos
costumes e regras tem o futuro muito comprometido.
Teriam
que migrar todos de retorno ao Paquistão ou seja qual for o local de
onde partiram. Coisa que obviamente não farão. Ou então ceder aos
tempos actuais, abdicando de algumas das características que
insistem em manter para se diferenciar dos paios.
Veremos o que nos dirá o Dr,
Cardoso. Hoje nada mais podemos fazer, eu nem o Ortega. Só podemos
conversar de assuntos sem importância, até que decida que são
horas de regressar à sua casa.
…
Como
no fado de Coimbra, chegou a hora das despedidas, pelo menos por
hoje. Esteja descansado, vou telefonar à hora de jantar ao Dr.
Cardoso e procurarei ser seu advogado, pois entendo que só se
decidiu a pedir ajuda porque estava entre a espada e a parede -que
fica entre Carcavelos e São Pedro de Estoril-
........
- Isabel, já viste como pensando um pouco nos acontecimentos
recentes, e ligando ao passado, podemos ter algum sucesso na
previsão. Neste assunto do Ortega de facto era fácil, quase
infantil. Depois do jantar, para não dar uma noção de ser assunto
oficial, vou pedir que sejas tu a ligar para casa dos Cardoso,
perguntes pela Doutora Diana. Fica bem começar com uma conversa
social, com os temas próprios das senhoras. Podes, se entenderes
estar na onda, deixar cair, como se por acaso, que já avançamos com a tua estufa, pois recordo que a Doutora lamentava-se de não
ter um jardim donde descargar da pressão do trabalho. E, tens
liberdade, se estiveres para esta maçada, para combinar um
almoço,ou jantar, em casa ou num local público.
E
depois a parte mais importante: perguntar se o marido, dr. Cardoso,
está disponível para uns minutos, poucos, de conversa comigo. Podes
tratar disso “meu amor perfeito, matizado?”
-
José, tens tão pouco jeito para salamaleques … só comparável à
tua táctica de entrar logo a matar nas conversas. Assim
espantas a caça, nos dois tabuleiros. Mas vou fazer a chamada...
pois claro...isso de matrimónio traz obrigações...
….....
Doutora
Diana, agradeço a sua sempre clara simpatia em me dedicar uns
minutos, e já que está disposta a entregar o aparelho ao seu marido,
Doutor Cardoso. Vou passar o telefone ao meu José
Maragato, a quem já recomendei que não seja muito maçador.
-
Doutor? Como está de trabalho este amigo? Uma amizade relativamente
recente, de meses, mas que ficou nas minhas entranhas como se nos conhecêssemos desde a primária!
-
Pois eu, normal. Já me encontro encaixado na estrutura do Porto, e
com bastantes assuntos a que me dedicar. O pessoal que aqui
encontrei é mais profissional, quase do nível da Central, mas com
as características especiais da gente nortenha. Posso dizer que não
estou a desgosto. E o amigo Maragato? Creio saber -pois aqui, neste
meio, sempre temos as fichas abertas...- que teve uns tempos
bastante atarefados com negócios dentro da normalidade, ou melhor,
que não despertaram suspeitas.
Mas
conhecendo o Maragato, tenho a impressão de que a sua chamada não
é de simples convívio social. Algum tema o pressionou para
procurar o parecer profissional deste seu amigo, que assim me
considero, fielmente.
-
O Dr. tem uma calejo de inspector e uma pituitária tão
treinada, que até de longe, e através de um telefone, é capaz de
prever da existência de um gato escondido. De facto me vi
pressionado para lhe pedir uma opinião, desta vez, por enquanto,
não implica crime de sangue. Vou tentar ser breve..
- O Dr. Deve recordar o termos tido uma espécie de “joint-venture” com o chefe dos ciganos de Aveiro … bla, bla, bla..... Antes de aceitar o pedido de lhe transmitir, a si, o assunto, dei a minha opinião ao Ortega... bla, bla, bla. . . . Mas o homem estava muito aflito e “ateimou”. E por isso agora estou a maçar em casa, para não dar ao assunto um ar oficial, nem sequer oficioso, sem papéis nem a necessidade de abrir uma pasta.
- O Dr. Deve recordar o termos tido uma espécie de “joint-venture” com o chefe dos ciganos de Aveiro … bla, bla, bla..... Antes de aceitar o pedido de lhe transmitir, a si, o assunto, dei a minha opinião ao Ortega... bla, bla, bla. . . . Mas o homem estava muito aflito e “ateimou”. E por isso agora estou a maçar em casa, para não dar ao assunto um ar oficial, nem sequer oficioso, sem papéis nem a necessidade de abrir uma pasta.
Sei
que o Doutor tem uma mente, além de esclarecida, rápida para
estruturar os factos. Daí que, mesmo “na hora”, como dizem os
brasileiros, me atreva a lhe perguntar se tem alguma ideia, útil e
factível, que possa transmitir ao Ortega. Como pode imaginar, o
homem está nervoso, aos saltinhos, como se com isso tentasse reter a
bexiga.
Na
entrega seguinte veremos se o Dr. Cardoso consegue sossegar ao Rei
Ortega.
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