segunda-feira, 15 de abril de 2019

CRÓNICAS DO VALE - Cap. 68



Uma chamada imprevista, mas …

Doutor, tenho um senhor ao telefone que diz ser seu amigo e que gostaria de falar consigo, pessoalmente e em pessoa, a ser possível esta tarde e na sua casa. Eu trago o aparelho.

- Estou. Maragato em linha. Quem é que me procura?

- Senhor Maragato, Doutor, desculpe, sou o Rafael Ortega, desde Aveiro, e surgiu-me um sarilho na família que gostaria de lhe apresentar, para ver se me poderá orientar melhor sendo pessoa de conhecimentos e não estar ligado às minhas gentes.

- Terei todo o prazer em o ouvir e tentarei ser-lhe útil. Mas por enquanto não sei do que se trata. Às duas horas está bem para si?

- Óptimo, e desde já agradeço a sua disponibilidade e prontidão. Estarei à sua porta como um relógio de torre.

Quem era o deste telefonema? E com tanta pressa?

Era o Rei dos ciganos da zona de Aveiro. Que conheces desde antes do almoço popular. Vem cá dentro de uma hora, mais ou menos, e creio que já me cheira o problema a que mal se referiu. Antes que me esqueça. Tenho que o atender a sós, sem ti nem testemunhas. Ele pediu assim. Manda preparar um café e uns cálices para beber um digestivo.

E agora vou-te fazer partícipe das minhas suspeitas. Deves ter lido ou ouvido, dum romance de cordel, acontecido entre membros da etnia cigana, onde se combinou, como lhes é tradção, um casamento sem contar com a opinião da noiva, que para eles é um ente ao nível da burra. Entregaram uma sobrinha do Ortega à família do noivo, e ela, que já lhe deve agradar o que sabe ser costume na sociedade igualitária das tugas, fechou-se em copas ou mais propriamente nas pernas. Ou seja, que não aceitou as normas antigas e mandou o noivo a que fosse dar uma volta. A partir daí houve um rapto, uma devolução e um problema bicudo entre duas famílias “respeitáveis”. E não me admiraria muito se me dissesse que todos eles são parentes, quase consanguíneos, ou mesmo sem o quase.

Queres apostar comigo em que não estou muito errado?

Nada de apostas e menos a dinheiro, e esta deveria ser com cacau à vista. Entre marido e mulher, como é o caso, não devemos meter os dinheiros em jogo.

Eu não teria dito melhor. E como ainda temos coisa de uma hora antes de que o Rei nos bata à porta, e se me mostrares os teus domínios, estufados, de que tínhamos falado antes dos tais negócios com o Nelson Sousa de Ermesinde?

Sinto-me em falta, envergonhado até, mas valorizo altamente o teu bom senso e sei que reparaste que saia de casa, pensativo e orientado, e nunca me deu para dar a volta ao edifício para ver o progresso dos teus domínios,nem tu me sugeriste, sempre com o bom senso característico das boas esposas. Não foi por desprezo, mas sim por preocupações “profissionais”, a bem dizer.

Querido José, nem é tarde nem é cedo. E como está bom tempo iremos de braço dado, como dois namoradinhos, até à estufa.

Um espanto! Mas isso é muito maior do que eu imaginava. Deve ter custado muita pasta e eu não entrei com nada, até agora. Tens muito que me contar. Para já, isto tem alguma garantia? É que nas minhas voltas pelos Caminhos de Portugal (lá, lá lá...) vi muitas estufas deitadas abaixo pelos vendavais, tudo em destroços e as culturas que lá existiam perdidas.

Zé. Para já lembra que estas eventualidade cobrem-se com seguros. E antes de aceitar a proposta fiz o possível para me ilustrar sobre este tema. Comprei uns livros e consultei as revistas que me indicaram. Por isso sabia, ou julgava que sabia, o que exigir não só quanto à resistência da estrutura como da grossura do filme, das aberturas reguláveis para ventilação e equilíbrio das pressõe e depressões do vento, assim como dos sistemas de controle de umidade e temperatura. Mais algumas características dos solos e adubos não poluentes, e fitossanitários que dizem ser indispensáveis, mas que eu procurarei evitar totalmente. Neste aspecto da poluição da terra e das águas freáticas estou totalmente convencida de que devemos mudar, para nosso bem e para o dos netos, quando os teus se decidirem aos encomendar.

E deram-te garantias? Certamente, ou pensas que lhes entregaria as minhas economias assim como assim, de mão beijada? Já te mostrarei o contrato com as cláusulas, que foi registado no notário! Lá estão duas garantias, em prazos diferentes. Uma diz respeito a acontecimentos imprevistos mas de fácil conserto durante 18 meses, e outra, mais ampla, por três anos, concretamente com a qualidade dos equipamentos e materiais.

Luisinha. Podes ficar viúva que não te apanharão com as calcinhas na mão. Saíste-me uma empresária de bigode! Daqueles que eram de uso corrente pelos guardas republicanos do século XIX. Esta tua capacidade não me apanhou de surpresa, pois tinha visto como organizaste os teus salões para entender que não eras uma parvinha. Se fosses não durarias comigo mais do que umas poucas noitadas, com quecas incluídas.

E tu, pensas que não te avaliei antes de “juntar os trapinhos”? Ambos somos gatos velhos, batidos na sociedade que nos rodeia. Mas neste diálogo passaram muitos minutos. Parece-te que temos tempo para ver, com olhos de ver, o que está dentro desta estufa? E que necesitamos duas horas, ou mais, para eu te poder explicar tudo, e o Ortega deve estar a bater ao ferrolho. Tu vai para a porta da frente e eu entrarei pela cozinha para tratar de que a Idalina prepare um tabuleiro que nos deixe bem vistos.

Próximo capítulo: As preocupações do Ortega.


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