Uma
chamada imprevista, mas …
Doutor,
tenho um senhor ao telefone que diz ser seu amigo e que gostaria de
falar consigo, pessoalmente e em pessoa, a ser possível esta tarde
e na sua casa. Eu trago o aparelho.
- Estou.
Maragato em linha. Quem é que me procura?
- Senhor
Maragato, Doutor, desculpe, sou o Rafael Ortega, desde Aveiro, e
surgiu-me um sarilho na família que gostaria de lhe apresentar, para
ver se me poderá orientar melhor sendo pessoa de conhecimentos e não estar
ligado às minhas gentes.
- Terei
todo o prazer em o ouvir e tentarei ser-lhe útil. Mas por enquanto
não sei do que se trata. Às duas horas está bem para si?
- Óptimo,
e desde já agradeço a sua disponibilidade e prontidão. Estarei à
sua porta como um relógio de torre.
Quem
era o deste telefonema? E com tanta pressa?
Era
o Rei dos ciganos da zona de Aveiro. Que conheces desde antes do
almoço popular. Vem cá dentro de uma hora, mais ou menos, e creio
que já me cheira o problema a que mal se referiu. Antes que me
esqueça. Tenho que o atender a sós, sem ti nem testemunhas. Ele
pediu assim. Manda preparar um café e uns cálices para beber um
digestivo.
E
agora vou-te fazer partícipe das minhas suspeitas. Deves ter lido ou
ouvido, dum romance de cordel, acontecido entre membros da etnia
cigana, onde se combinou, como lhes é tradção, um casamento sem
contar com a opinião da noiva, que para eles é um ente ao nível da
burra. Entregaram uma sobrinha do Ortega à família do noivo, e ela,
que já lhe deve agradar o que sabe ser costume na sociedade
igualitária das tugas,
fechou-se em copas ou mais propriamente nas pernas. Ou seja, que não
aceitou as normas antigas e mandou o noivo a que fosse dar uma volta.
A partir daí houve um rapto, uma devolução e um problema bicudo
entre duas famílias “respeitáveis”. E não me admiraria muito
se me dissesse que todos eles são parentes, quase consanguíneos, ou
mesmo sem o quase.
Queres
apostar comigo em que não estou muito errado?
Nada
de apostas e menos a dinheiro, e esta deveria ser com cacau à vista.
Entre marido e mulher, como é o caso, não devemos meter os
dinheiros em jogo.
Eu
não teria dito melhor. E como ainda temos coisa de uma hora antes de
que o Rei nos bata à porta, e se me mostrares os teus domínios,
estufados, de que tínhamos falado antes dos tais negócios com o
Nelson Sousa de Ermesinde?
Sinto-me
em falta, envergonhado até, mas valorizo altamente o teu bom senso e
sei que reparaste que saia de casa, pensativo e orientado, e nunca me
deu para dar a volta ao edifício para ver o progresso dos teus
domínios,nem tu me sugeriste, sempre com o bom senso característico
das boas esposas. Não foi por desprezo, mas sim por preocupações
“profissionais”, a bem dizer.
Querido
José, nem é tarde nem é cedo. E como está bom tempo iremos de
braço dado, como dois namoradinhos, até à estufa.
Um
espanto! Mas isso é muito maior do que eu imaginava. Deve ter
custado muita pasta e eu não entrei com nada, até agora. Tens muito
que me contar. Para já, isto tem alguma garantia? É que nas minhas
voltas pelos Caminhos de Portugal (lá, lá lá...) vi muitas estufas
deitadas abaixo pelos vendavais, tudo em destroços e as culturas que
lá existiam perdidas.
Zé.
Para já lembra que estas eventualidade cobrem-se com seguros. E
antes de aceitar a proposta fiz o possível para me ilustrar sobre
este tema. Comprei uns livros e consultei as revistas que me
indicaram. Por isso sabia, ou julgava que sabia, o que exigir não só
quanto à resistência da estrutura como da grossura do filme, das
aberturas reguláveis para ventilação e equilíbrio das pressõe e
depressões do vento, assim como dos sistemas de controle de umidade e temperatura. Mais algumas características dos solos e adubos não
poluentes, e fitossanitários que dizem ser indispensáveis, mas que
eu procurarei evitar totalmente. Neste aspecto da poluição da terra
e das águas freáticas estou totalmente convencida de que devemos
mudar, para nosso bem e para o dos netos, quando os teus se decidirem aos
encomendar.
E
deram-te garantias? Certamente, ou pensas que lhes entregaria as
minhas economias assim como assim, de mão beijada? Já te mostrarei
o contrato com as cláusulas, que foi registado no notário! Lá
estão duas garantias, em prazos diferentes. Uma diz respeito a
acontecimentos imprevistos mas de fácil conserto durante 18 meses, e
outra, mais ampla, por três anos, concretamente com a qualidade dos
equipamentos e materiais.
Luisinha.
Podes ficar viúva que não te apanharão com as calcinhas na mão. Saíste-me uma empresária de bigode! Daqueles que eram de uso
corrente pelos guardas republicanos do século XIX. Esta tua
capacidade não me apanhou de surpresa, pois tinha visto como
organizaste os teus salões para entender que não eras uma parvinha.
Se fosses não durarias comigo mais do que umas poucas noitadas,
com quecas incluídas.
E
tu, pensas que não te avaliei antes de “juntar os trapinhos”?
Ambos somos gatos velhos, batidos na sociedade que nos rodeia. Mas
neste diálogo passaram muitos minutos. Parece-te que temos tempo
para ver, com olhos de ver, o que está dentro desta estufa? E que necesitamos duas horas, ou mais, para eu te poder explicar tudo, e
o Ortega deve estar a bater ao ferrolho. Tu vai para a porta da
frente e eu entrarei pela cozinha para tratar de que a Idalina
prepare um tabuleiro que nos deixe bem vistos.
Próximo
capítulo: As preocupações do Ortega.
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