segunda-feira, 22 de abril de 2019

CRÓNICAS DO VALE - Cap 72


Medeiros bate à porta

Doutor, da licença? O Senhor Presidente da Junta está na sala e pediu para ser recebido pelo Doutor.
..
- Amigo Presidente, desculpe se teve que esperar por mim. Garanto que não foi de propósito. Estava preso por um telefonema de trabalho. Mas é com muito prazer que o vejo em casa. Faço figas para que não seja nada grave o que o orientou a me visitar.

- De facto existe um motivo especial, preocupante mas não tão grave nem urgente, mas o suficiente para me empurrar para que o vir incomodar na sua propriedade. Pode parecer uma infantilidade, que me leva a qualificar a minha vinda como, metafóricamente «ir chorar no seu ombro” e o que me pesa não é só devida às minhas responsabilidades e obrigações na Junta, como por não saber como atender, satisfactoriamente, aos cidadãos do Vale. 

Para começar por algum lado é de minha obrigação dizer que o Amigo Maragato se adiantou a tratar dos cuidados que se podiam, e agora nos dizem que são obrigatórios, aplicar na prevenção dos incêndios florestais. Pode ser visto como um exemplo a seguir, se não fosse que a realidade social nem sempre está de modo a que todos possam cumprir com o que o Governo decretou ser uma obrigação, sujeita a coimas para quem não cumprir o exigido.

E, por tabela, eu me encontro no meio de um problema de difícil solução. Como certamente sabe, e mais porque a sua decisão teve uma repercussão monetária nada desprezível, que pode imaginar não está ao nível das capacidades económicas da maioria dos nossos proprietários, mini fundistas e com explorações hortícolas, vinha, pastos ou madeira, que só lhes podem garantir, e nem sempre, uma vida pacata.

Não há um só dia em que não venha alguém chorar, as vezes mesmo com lágrimas abundantes, com medo de ser multado por não limpar a faixa de seu terreno que faz linde com a via pública. A dimensão de alguns talhões é de tal maneira reduzida que se desbastam as tais faixas, practicamente desaparece a propriedade!

Estas pessoas, em geral idosos e sem familiares jovens por perto -pois todos abalaram para conseguir emprego remunerado-  raramente tem corpo nem força para cortar árvores, roçar mato e dar-lhe seguimento. E tampouco podem comprometer-se a pagar uma equipa de homens que trate disso. Quando decidem vender umas árvores, sejam pinheiros ou eucaliptos, negoceiam com um madeireiro, que se incumbe do serviço. E as fracas vindimas, ou são feitas com a ajuda de vizinhos e parentes, numa permuta de favores, ou vendem as uvas ainda nas cepas.

Como sabem do que aparece na televisão -ou no jornal dos alarmes, o tal Correio -que vão ler no clube ou no café- me encaram dizendo que, em casos destes, as ordens parece que indicam que a Junta, ou a Câmara, teria que se encarregar do cumprimento do legislado. E aqui é que eu entro mais directamente na dificuldade de dormir.

Se peço ajuda à Câmara, dali respondem que estes custos não estão devidamente discriminados no seu orçamento, e que não receberam qualquer notícia de transferência para este compromisso. Não sei se isto é mesmo assim, ou se é uma desculpa. Só sei que na Câmara são especialistas em sacudir a água do capote.

Eu estou entre a espada e a parede. Não tenho pessoal na Junta, nem o equipamento necessário, que possa escalar para esta tarefa. Mesmo com os terrenos camarários já tenho dificuldades que cheguem. Doutor, não durmo sossegado, a minha mulher também está nervosa, e os homens da GNR de vez em quando, quase dia-sim-dia-não, aparecem na Junta para me pressionar, ameaçando com a lista dos proprietários incumpridores. Eles, com as suas fardas e o comando militar que os apoia já ficam cobertos. E nós?

- Amigo Presidente, sabe se as outras freguesias e até concelhos limítrofes, conseguiram arranjar verbas e pessoal para cumprir esta lei? É que eu, que não estou por dentro, não creio que a situação que o amigo Medeiros me contou se possa considerar como um caso isolado. Se a única solução que a governação conseguiu engendrar é a de multar sem atender às reais capacidades da cidadania pode cumprir esta normativa. Mesmo que a consideremos pertinente e merecedora de ser cumprida, mostra, tão só, que desconhece a realidade do nosso território rural.

Pelo meu lado, não sou um exemplo a tomar, pois felizmente, tenho rendimentos que não dependem das terras -das quais só tenho despesas e obrigações fiscais-. Após ter conhecimento destas novas regras chamei o meu feitor, o Ernesto Carrapato que o Presidente conhece, e fomos dar uma volta pelos caminhos que passam ou delimitam os nossos terrenos. Dei indicações para levar um ou dois homens com ele, mais as ferramentas e máquinas necessárias no tractor com o reboque, deixar aquelas faixas sem nada que constitua um perigo de fogo, fosse posto por malandragem ou por causas naturais.

- Mas isso pode decidir e efectivar o Doutor Maragato, e outros proprietários abastados. E como podem cumprir esta obrigação estas gentes que até poucos anos nem sabiam ler e menos escrever? Tem alguma ideia que me possa ajudar? Eu estou de mãos e pés atados. Até tenho dores de estômago. Deixei de beber um copito, esqueci o café e mesmo assim sinto-me doente!

- Amigo Aníbal Medeiros. Eu, com toda a sinceridade, além de não ter muita confiança nalgumas decisões tomadas pelos governantes, mesmo que, como neste caso, me pareçam pertinentes e aconselháveis, sinto que nem sempre são ponderados devidamente os reflexos que implicam. Dito de outra forma, por vezes dá ideia de que decidem sentados na praia, assinam por cima do joelho, e assim passam a bola a outros. No seu caso concreto, actual, e enquanto as coisas não se arrumarem com bom senso, eu lhe aconselharia que tivesse calma, que aguardasse até ver em como param as modas, e que mantenha uma  auscultação, quase que diária, no que se decidiram fazer nas freguesias e concelhos vizinhos, nomeadamente os rurais, como são a maioria. Se eu vier a saber de alguma novidade positiva, lha comunicarei de imediato.

Posso ajudar, de facto, nalguma coisa que esteja ao meu alcance? Eu gostaria de o convidar a um café e uma bebida, mas receio que o sue estômago, que me alertou estar ressentido, não aceite o convite.

- Amigo Maragato, reconheço que não resolvemos o problema, mas pude desabafar com alguém com mais conhecimentos do que os homens da terra. Vou seguir o seu conselho. Farei uma lista dos telefonemas a bater e os escalarei em dias diferentes, em três grupos, para não ser excessivamente maçador. Para já, alguns colegas já têm sido eles a me pedirem ajuda, que não posso dar. Só palavras. Teremos que ir ao Governador Civil do Distrito ou ao organismo que agora o substitui, pois esta gente passa as semanas a mudar o nome dos gabinetes e colocar mais alguns parentes!
  • Próxima entrega: O Ortega traz novidades

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