Medeiros
bate à porta
- Doutor,
da licença? O Senhor Presidente da Junta está na sala e pediu para
ser recebido pelo Doutor.
…..
-
Amigo Presidente, desculpe se teve que esperar por mim. Garanto que
não foi de propósito. Estava preso por um telefonema de trabalho.
Mas é com muito prazer que o vejo em casa. Faço figas para que não
seja nada grave o que o orientou a me visitar.
-
De facto existe um motivo especial, preocupante mas não tão grave
nem urgente, mas o suficiente para me empurrar para que o vir
incomodar na sua propriedade. Pode parecer uma infantilidade, que me
leva a qualificar a minha vinda como, metafóricamente «ir chorar no
seu ombro” e o que me pesa não é só devida às minhas
responsabilidades e obrigações na Junta, como por não saber como
atender, satisfactoriamente, aos cidadãos do Vale.
Para
começar por algum lado é de minha obrigação dizer que o Amigo
Maragato se adiantou a tratar dos cuidados que se podiam, e agora nos
dizem que são obrigatórios, aplicar na prevenção dos incêndios
florestais. Pode ser visto como um exemplo a seguir, se não fosse
que a realidade social nem sempre está de modo a que todos possam
cumprir com o que o Governo decretou ser uma obrigação, sujeita a
coimas para quem não cumprir o exigido.
E,
por tabela, eu me encontro no meio de um problema de difícil
solução. Como certamente sabe, e mais porque a sua decisão teve
uma repercussão monetária nada desprezível, que pode imaginar não
está ao nível das capacidades económicas da maioria dos nossos
proprietários, mini fundistas e com explorações hortícolas, vinha,
pastos ou madeira, que só lhes podem garantir, e nem sempre, uma
vida pacata.
Não
há um só dia em que não venha alguém chorar, as vezes mesmo com
lágrimas abundantes, com medo de ser multado por não limpar a faixa
de seu terreno que faz linde com a via pública. A dimensão de
alguns talhões é de tal maneira reduzida que se desbastam as
tais faixas, practicamente desaparece a propriedade!
Estas
pessoas, em geral idosos e sem familiares jovens por perto -pois
todos abalaram para conseguir emprego remunerado- raramente
tem corpo nem força para cortar árvores, roçar mato e dar-lhe
seguimento. E tampouco podem comprometer-se a pagar uma equipa de
homens que trate disso. Quando decidem vender umas árvores, sejam
pinheiros ou eucaliptos, negoceiam com um madeireiro, que se incumbe
do serviço. E as fracas vindimas, ou são feitas com a ajuda de
vizinhos e parentes, numa permuta de favores, ou vendem as uvas ainda
nas cepas.
Como
sabem do que aparece na televisão -ou no jornal dos alarmes, o
tal Correio -que vão ler no clube ou no café- me encaram
dizendo que, em casos destes, as ordens parece que indicam que a
Junta, ou a Câmara, teria que se encarregar do cumprimento do
legislado. E aqui é que eu entro mais directamente na dificuldade de
dormir.
Se
peço ajuda à Câmara, dali respondem que estes custos não estão
devidamente discriminados no seu orçamento, e que não receberam
qualquer notícia de transferência para este compromisso. Não sei
se isto é mesmo assim, ou se é uma desculpa. Só sei que na Câmara
são especialistas em sacudir a água do capote.
Eu
estou entre a espada e a parede. Não tenho pessoal na Junta, nem o
equipamento necessário, que possa escalar para esta tarefa. Mesmo
com os terrenos camarários já tenho dificuldades que cheguem.
Doutor, não durmo sossegado, a minha mulher também está nervosa, e
os homens da GNR de vez em quando, quase dia-sim-dia-não, aparecem
na Junta para me pressionar, ameaçando com a lista dos proprietários
incumpridores. Eles, com as suas fardas e o comando militar que os
apoia já ficam cobertos. E nós?
-
Amigo Presidente, sabe se as outras freguesias e até concelhos
limítrofes, conseguiram arranjar verbas e pessoal para cumprir esta
lei? É que eu, que não estou por dentro, não creio que a situação
que o amigo Medeiros me contou se possa considerar como um caso
isolado. Se a única solução que a governação conseguiu engendrar
é a de multar sem atender às reais capacidades da cidadania pode
cumprir esta normativa. Mesmo que a consideremos pertinente e
merecedora de ser cumprida, mostra, tão só, que desconhece a
realidade do nosso território rural.
Pelo
meu lado, não sou um exemplo a tomar, pois felizmente, tenho
rendimentos que não dependem das terras -das quais só tenho
despesas e obrigações fiscais-. Após ter conhecimento
destas novas regras chamei o meu feitor, o Ernesto Carrapato que o
Presidente conhece, e fomos dar uma volta pelos caminhos que passam
ou delimitam os nossos terrenos. Dei indicações para levar um ou
dois homens com ele, mais as ferramentas e máquinas necessárias no
tractor com o reboque, deixar aquelas faixas sem nada que constitua
um perigo de fogo, fosse posto por malandragem ou por causas
naturais.
-
Mas isso pode decidir e efectivar o Doutor Maragato, e outros
proprietários abastados. E como podem cumprir esta obrigação estas
gentes que até poucos anos nem sabiam ler e menos escrever? Tem
alguma ideia que me possa ajudar? Eu estou de mãos e pés atados.
Até tenho dores de estômago. Deixei de beber um copito, esqueci o
café e mesmo assim sinto-me doente!
-
Amigo Aníbal Medeiros. Eu, com toda a sinceridade, além de não ter
muita confiança nalgumas decisões tomadas pelos governantes, mesmo
que, como neste caso, me pareçam pertinentes e aconselháveis, sinto
que nem sempre são ponderados devidamente os reflexos que implicam.
Dito de outra forma, por vezes dá ideia de que decidem sentados na
praia, assinam por cima do joelho, e assim passam a bola a outros. No
seu caso concreto, actual, e enquanto as coisas não se arrumarem com
bom senso, eu lhe aconselharia que tivesse calma, que aguardasse até
ver em como param as modas, e que mantenha uma auscultação,
quase que diária, no que se decidiram fazer nas freguesias e
concelhos vizinhos, nomeadamente os rurais, como são a maioria. Se
eu vier a saber de alguma novidade positiva, lha comunicarei de
imediato.
Posso
ajudar, de facto, nalguma coisa que esteja ao meu alcance? Eu
gostaria de o convidar a um café e uma bebida, mas receio que o sue
estômago, que me alertou estar ressentido, não aceite o convite.
- Amigo
Maragato, reconheço que não resolvemos o problema, mas pude
desabafar com alguém com mais conhecimentos do que os homens da
terra. Vou seguir o seu conselho. Farei uma lista dos telefonemas a
bater e os escalarei em dias diferentes, em três grupos, para não
ser excessivamente maçador. Para já, alguns colegas já têm sido
eles a me pedirem ajuda, que não posso dar. Só palavras. Teremos
que ir ao Governador Civil do Distrito ou ao organismo que agora o
substitui, pois esta gente passa as semanas a mudar o nome dos
gabinetes e colocar mais alguns parentes!
-
Próxima
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