terça-feira, 23 de abril de 2019

CRÓNICAS DO VALE - Cap. 73


CRÓNICAS DO VALE – Cap. 73

Ortega aparece bem disposto

Estava eu, tranquilo e sossegado, fumando uma cigarrilha cubana e mal lendo o caderno de Economia, para não me perder quando falo de negócios com o Sousa em Ermesinde. Mas confesso que entre o cuidar da cigarrilha e atender o chilrear da passarada, a metade do que já lera se perdeu no nevoeiro, como o embuçado. E repentinamente, tinha o Rafael Ortega a poucos metros do meu nariz.

- Então Amigo Ortega, bons olhos o vejam (de momento são os meus, mas isso não lhe digo) Pelo seu rosto e caminhar parece que está bem disposto. Traz boas novidades?

- Amigo Doutor Maragato. Saiba que ontem, seguindo as suas indicações, fiz umas chamadas para convocar uma dúzia de homens sérios e sabedores, mais as respectivas mulheres, como me recordou ser importante neste caso. Só bem entrada a noite é que, sempre recordando os vossos conselhos, se chegou a um entendimento.

Como se pode imaginar, todos sabiam do que é que se falaria, mas pensei que seria oportuno primeiro fazer um pouco de conversa mole, para aquecer, tal como fazem nos treinos de futebol. Lhes perguntei como tinham ido as vendas nas feiras, se a falta de dinheiro nos bolsos da excelentíssima clientela se fez sentir; se tiveram chatices com a PSP e pior com os homens da ASAE. Ou seja, as coisas do nosso ofício. Nesta fase circularam uns copitos de jerez e de coñac espanhol, que a nossa gente aprecia bastante, para não perder os costumes que nos ligam com os da nossa etnia -como dizem nos jornais e nos noticiários. Entre nós somos calés ou romanís, a escolher-  do lado de lá da fronteira.

E claro, mais amendoas, amendoins, cajús, castanhas assadas e alguns fritos que prepararam as mulheres da casa. Quando estavam quase na temperatura de bater palmas e cantar, entrei no tema da noite.

Apresentei o assunto deixando como coisa sem demasiada importância a boda e as conversas e compromissos entre familias, e, seguindo sempre as vossas orientações, fui dizendo que certamente todos eles tinham notado, nas suas casas, que os nossos jovens não eram tão submissos quanto nós fomos na sua idade. Que o conviver com os nacionais, e até com estrangeiros, os influenciaram, especialmente nas raparigas, para outras formas de vestir que não as tradicionais. Que gostavam de andar com o cabelo ao ar e arranjado, sem lenços como as moiras. Que teimam em continuar com saias curtas mesmo depois de já serem, fisiológicamente (ninguém pediu que explicasse esta palavra! Mesmo os “velhos” estão mudando sem darem por isso) mulheres. 

Elas não querem saber de história, e muito menos de as casarem novitas e ficarem carregando churumbeles à cintura. Que estes tempos de hoje são mais agradáveis, e que quando lhes calhar ter filhos os querem passear em carrinhos jeitosos. Numa participação geral foram apresentadas mais reclamações, mais exigências de mudanças. Ou seja, que todas as famílias tinham os mesmos problemas pela frente. Os rapazes parece que são mais adeptos a guardar os costumes, porque se criaram machistas e dominadores, mas as raparigas... Para já todas querem tirar a carta de condução !

Portanto, o clima entre os presentes era de derrota ou de claudicação. Nitidamente preparados para atender a minha proposta. Levei mais tempo nos preparatórios do que em chegar a uma solução para o não cumprimento do compromisso de casamento. Até os da família directa do noivo, que como já lhe disse são meus primos, estavam ansiosos para chegar a um entendimento calmo.

Seguindo os vossos conselhos eu comprometi-me -e assim fiz esta manhã antes de cá vir- em levar a afilhada à polícia para retirar a queixa. Como o Doutor me preparou, não houve dificuldade nenhuma em anular o processo, que pelo que cheirei nem sequer tinha avançado. Ou seja, do casamento negado, nem das ameaças de rapto, não ficou nada...

Para adoçar a boca do noivo, que já vimos ser bruto e convencido, ficamos em que seria “despachado” para casa de um primo -mais um- que vive em Málaga, que, como quase todos, também negoceia em roupas de saldo, sapatos e quinquilharia. Mas dizem que também faz uns biscates de intermediário na compra de casas e terrenos, especialmente com clientes da mesma raça e com migrantes que conseguiram transferir capital desde as suas terras de origem.

Entre uma coisa e outra eles partem amanhã para Espanha e eu, para dar mostras de solidariedade, além de ser padrinho da rapariga, disse que estava disposto a colaborar na compra de uma viatura, a ser possível uma “fragonete”, como se fosse o dote do casamento perdido, mas com a intenção de que  entrasse na vida de feirante, com as penas e alegrias que nos acompanham desde sempre. O meu primo e quase compadre aceitou a ideia, mas queria comprar o veículo em Espanha, por ser mais em barato. No regresso faziamos contas.

Depois deste relato, tão prolongado e completo, já entendeu que não foi necessária a sua ajuda, presencial. Creio que todos traziam a mesma ideia para arrumar o problema. Mas isso não impede que em nome de todos os que estavam presentes, e em meu nome em especial, não esquecemos a ajuda e boa orientação que nos deu, e lhe pedimos desculpa por o meter num assunto que, forçosamente, para si não tinha cabimento.

- Amigo Ortega. De facto era um assunto dependente dos vossos costumes e regras, que não são os nossos, embora sabe que se aceita aquilo de que Cada terra com seu uso e cada roca com seu fuso. Ou seja, temos que aceitar e compreender os usos e costumes dos outros, mas tal não impede da conveniência em nos assimilar quando nos radicamos em terra estranha. Tal como fizeram muitos dos nossos emigrantes, quando mesmo que roídos de saudades, quando viram que os filhos e as filhas, nascidos lá, sentiam que não queriam continuar a ser estrangeiros. Compreendeu?

- Com certeza. E penso que este tema tem que ficar fechado, para todo o sempre. E já agora, antes de sair de casa, junto com a afilhada, a minha mulher mercou um robalo e umas ameijoas, tudo acabado de apanhar. Colocou tudo nesta cesta e me pediu lhe entregasse pessoalmente, mas em nome dela, reconhecida em representação das pessoas do seu grupo, em especial as mulheres e moças.

Nas nossas conversas de casal confirmou que muitos estão desejosos de se adaptar aos tempos actuais, em especial dos costumes da sociedade que nos acolheu, com direitos e obrigações, que tentamos fugir sem entender que nos prejudica. Ela diz que eu, Ortega, tive muita sorte em poder conviver e pedir conselho a uma pessoa do outro mundo, no qual os novos querem pertencer.

- Amigo Ortega. Estou a ficar atrapalhado com as suas palavras. Não fiz mais do que o acompanhar, dentro das minhas capacidades, e tentar procurar uma solução que não vos envergonhasse. Agradeço à sua senhora a lembrança que teve, e de imediato a entregarei à minha mulher para que decida, com a cozinheira, como podemos degustar estes produtos do mar.

- Doutor: Mais uma vez os nossos agradecimentos, E não o maço mais. Cumprimentos para a Dona Isabel. E para si, permita que lhe dê um abraço de amizade.


Na entrega seguinte iremos à estufa. Prometido!

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