CRÓNICAS
DO VALE – Cap. 73
Ortega
aparece bem disposto
Estava
eu, tranquilo e sossegado, fumando uma cigarrilha cubana e mal lendo
o caderno de Economia, para não me perder quando falo de negócios
com o Sousa em Ermesinde. Mas confesso que entre o cuidar da
cigarrilha e atender o chilrear da passarada, a metade do que já
lera se perdeu no nevoeiro, como o embuçado. E repentinamente, tinha
o Rafael Ortega a poucos metros do meu nariz.
- Então
Amigo Ortega, bons olhos o vejam (de momento são os meus, mas isso
não lhe digo) Pelo seu rosto e caminhar parece que está bem
disposto. Traz boas novidades?
- Amigo
Doutor Maragato. Saiba que ontem, seguindo as suas indicações, fiz
umas chamadas para convocar uma dúzia de homens sérios e sabedores,
mais as respectivas mulheres, como me recordou ser importante neste
caso. Só bem entrada a noite é que, sempre recordando os vossos
conselhos, se chegou a um entendimento.
Como se pode imaginar, todos sabiam do que é que se falaria, mas pensei que
seria oportuno primeiro fazer um pouco de conversa mole, para
aquecer, tal como fazem nos treinos de futebol. Lhes perguntei como
tinham ido as vendas nas feiras, se a falta de dinheiro nos bolsos da
excelentíssima clientela se fez sentir; se tiveram chatices com a
PSP e pior com os homens da ASAE. Ou seja, as coisas do nosso ofício.
Nesta fase circularam uns copitos de jerez e de coñac espanhol, que
a nossa gente aprecia bastante, para não perder os costumes que nos
ligam com os da nossa etnia -como dizem nos jornais e nos
noticiários. Entre nós somos calés ou romanís, a escolher- do lado de lá da fronteira.
E
claro, mais amendoas, amendoins, cajús, castanhas assadas e alguns
fritos que prepararam as mulheres da casa. Quando estavam quase na
temperatura de bater palmas e cantar, entrei no tema da noite.
Apresentei
o assunto deixando como coisa sem demasiada importância a boda e as
conversas e compromissos entre familias, e, seguindo sempre as vossas
orientações, fui dizendo que certamente todos eles tinham notado,
nas suas casas, que os nossos jovens não eram tão submissos quanto
nós fomos na sua idade. Que o conviver com os nacionais, e até com
estrangeiros, os influenciaram, especialmente nas raparigas, para outras formas de vestir que não as tradicionais. Que gostavam de
andar com o cabelo ao ar e arranjado, sem lenços como as moiras. Que
teimam em continuar com saias curtas mesmo depois de já serem,
fisiológicamente (ninguém pediu que explicasse esta palavra!
Mesmo os “velhos” estão mudando sem darem por isso)
mulheres.
Elas não querem saber de história, e muito menos de as casarem novitas e ficarem carregando churumbeles à cintura. Que estes tempos de hoje são mais agradáveis, e que quando lhes calhar ter filhos os querem passear em carrinhos jeitosos. Numa participação geral foram apresentadas mais reclamações, mais exigências de mudanças. Ou seja, que todas as famílias tinham os mesmos problemas pela frente. Os rapazes parece que são mais adeptos a guardar os costumes, porque se criaram machistas e dominadores, mas as raparigas... Para já todas querem tirar a carta de condução !
Elas não querem saber de história, e muito menos de as casarem novitas e ficarem carregando churumbeles à cintura. Que estes tempos de hoje são mais agradáveis, e que quando lhes calhar ter filhos os querem passear em carrinhos jeitosos. Numa participação geral foram apresentadas mais reclamações, mais exigências de mudanças. Ou seja, que todas as famílias tinham os mesmos problemas pela frente. Os rapazes parece que são mais adeptos a guardar os costumes, porque se criaram machistas e dominadores, mas as raparigas... Para já todas querem tirar a carta de condução !
Portanto,
o clima entre os presentes era de derrota ou de claudicação.
Nitidamente preparados para atender a minha proposta. Levei mais
tempo nos preparatórios do que em chegar a uma solução para o não
cumprimento do compromisso de casamento. Até os da família directa
do noivo, que como já lhe disse são meus primos, estavam ansiosos
para chegar a um entendimento calmo.
Seguindo
os vossos conselhos eu comprometi-me -e assim fiz esta manhã
antes de cá vir- em levar a afilhada à polícia para retirar a
queixa. Como o Doutor me preparou, não houve dificuldade nenhuma em
anular o processo, que pelo que cheirei nem sequer tinha avançado. Ou
seja, do casamento negado, nem das ameaças de rapto, não ficou
nada...
Para
adoçar a boca do noivo, que já vimos ser bruto e convencido,
ficamos em que seria “despachado” para casa de um primo -mais
um- que vive em Málaga, que, como quase todos, também negoceia
em roupas de saldo, sapatos e quinquilharia. Mas dizem que também faz uns
biscates de intermediário na compra de casas e terrenos,
especialmente com clientes da mesma raça e com migrantes que
conseguiram transferir capital desde as suas terras de origem.
Entre
uma coisa e outra eles partem amanhã para Espanha e eu, para dar
mostras de solidariedade, além de ser padrinho da rapariga, disse que estava
disposto a colaborar na compra de uma viatura, a ser possível uma
“fragonete”, como se fosse o dote do casamento perdido, mas com a
intenção de que entrasse na vida de feirante, com as penas e alegrias
que nos acompanham desde sempre. O meu primo e quase compadre aceitou
a ideia, mas queria comprar o veículo em Espanha, por ser mais em
barato. No regresso faziamos contas.
Depois
deste relato, tão prolongado e completo, já entendeu que não foi
necessária a sua ajuda, presencial. Creio que todos traziam a mesma
ideia para arrumar o problema. Mas isso não impede que em nome de
todos os que estavam presentes, e em meu nome em especial, não
esquecemos a ajuda e boa orientação que nos deu, e lhe pedimos
desculpa por o meter num assunto que, forçosamente, para si não
tinha cabimento.
- Amigo
Ortega. De facto era um assunto dependente dos vossos costumes e
regras, que não são os nossos, embora sabe que se aceita aquilo de
que Cada terra com seu uso e cada roca com seu fuso. Ou seja,
temos que aceitar e compreender os usos e costumes dos outros, mas
tal não impede da conveniência em nos assimilar quando nos radicamos em terra
estranha. Tal como fizeram muitos dos nossos emigrantes, quando mesmo que
roídos de saudades, quando viram que os filhos e as filhas, nascidos lá,
sentiam que não queriam continuar a ser estrangeiros. Compreendeu?
- Com
certeza. E penso que este tema tem que ficar fechado, para todo o
sempre. E já agora, antes de sair de casa, junto com a afilhada, a
minha mulher mercou um robalo e umas ameijoas, tudo acabado de
apanhar. Colocou tudo nesta cesta e me pediu lhe entregasse
pessoalmente, mas em nome dela, reconhecida em representação das
pessoas do seu grupo, em especial as mulheres e moças.
Nas
nossas conversas de casal confirmou que muitos estão desejosos de
se adaptar aos tempos actuais, em especial dos costumes da sociedade
que nos acolheu, com direitos e obrigações, que tentamos fugir sem
entender que nos prejudica. Ela diz que eu, Ortega, tive muita sorte
em poder conviver e pedir conselho a uma pessoa do outro mundo, no
qual os novos querem pertencer.
- Amigo
Ortega. Estou a ficar atrapalhado com as suas palavras. Não fiz mais do que o
acompanhar, dentro das minhas capacidades, e tentar procurar uma solução
que não vos envergonhasse. Agradeço à sua senhora a lembrança que
teve, e de imediato a entregarei à minha mulher para que decida, com
a cozinheira, como podemos degustar estes produtos do mar.
- Doutor:
Mais uma vez os nossos agradecimentos, E não o maço mais.
Cumprimentos para a Dona Isabel. E para si, permita que lhe dê um
abraço de amizade.
Na
entrega seguinte iremos à estufa. Prometido!
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