domingo, 10 de maio de 2020

VIVÊNCIAS – Da infância



Tempos de “inocência”

Quando criança, até os 12/13 anos, vivi e convivi com a família mais chegada e, como era habitual naquela época em que as crianças podiam circular com bastante liberdade, o grupo de coetâneos, mormente rapazes, que brincávamos em diferentes jogos. Muitos deles cativos de épocas não definidas, mas seguidas por indicação dos líderes. Jogar aos berlindes, ao pião, aos caroços de alperce, a saltar o eixo, a saltar sobre uma fila de agachados para ver se todos conseguiam manter-se montados ou escorregavam, ou até a colocar pregos sobre os carris do comboio para que ficassem esmagados e tentássemos afiar para conseguir umas faquinhas manhosas, sem grande préstimo.

Outra distracção “inocente” tinha uma época certa, concreta e curta. Bater nas portas da vizinhança para saber se tinham algum detrito de madeira que nos pudessem dar a fim de juntar ao que seria a nossa fogueira de São João. A resposta normal era que não. Mas tanto insistíamos que sempre terminavam dando uma caixa, uma cadeira sem concerto ou outro objecto passível de arder.

Existiam outras distracções que tinham uma época determinada. Por exemplo. Vivíamos numa sociedade fortemente pressionada pela Igreja, sem que isso conseguisse gerar uma unanimidade de convictos. Antes pelo contrário. Mas havia motivos de força maior para que os adultos não mostrassem, publicamente, a sua discordância. Com a garotada já se admitiam alguns desacatos “inocentes”. Assim sendo os grupos preparávamos cortejos procesionais na Semana Santa, por nossa iniciativa e com regras mais livres do que as que orientavam nas paróquias e confrarias. Abria o cortejo um pequeno grupo da imitava os soldados romanos,sem vestes apropriadas, mas cada um batendo no chão com uma vassoura velha, virada ao contrário, e seguindo o ritmo, alternando com os passo o bater à direita e à esquerda, tal como faziam nas procissões “sérias”. A seguir. E sem os trajos próprios, que não tínhamos, seguiam duas filas paralelas dos penitentes, o que fazia de Madalena e finalmente, de Jesus crucificado, que andava muito sério e compungido com os braços erguidos na horizontal. Este sofria de forma irresistível ao fim de pouco tempo, e por isso era substituído por outro voluntário. Curiosamente e apesar de ser uma evidente demostração de irreverência nunca se aproximou da malta um adulto para nos ralhar, ou mesmo um polícia municipal. Formava parte dos “abusos” consentidos desde épocas passadas.

Menos inocente, cívica mente ponderada, e que mais tarde vi também hábito entre as crianças de Lisboa, era o de tocar no batente, ou à campainha se houvesse, da porta e fugir de imediato. O risco estava em que a dona da casa, já farta de ser chamada para engano, nos despejasse um balde de água por cima. Para “refrescar as ideias”

No outono era o cair da folha, e na avenida onde morava havia, e ainda duas fileiras de plátanos, cuja sombra se agradecia nos meses de forte canícula. Estas árvores, quando já grandes, largam uma quantidade de folhas secas impressionante. O “grupo de malfeitores” se juntava e colocando-se em fila, perto uns dos outros, e arrastando os pés pelo pavimento avançávamos juntando um monte de folhas. Era a altura de encontrar uns bocados de papel e pedir um fósforo a um homem (as mulheres não fumavam em público) Normalmente, por saberem para que queríamos aquela fonte de chama, negavam-se, até alguns que marchavam com o cigarro aceso. Mas sempre aparecia um “benemérito” que nos oferecia a realização do propósito. Mais tarde deduzi que o simpático fumador não morava por perto, pois que a fumarada, mal cheirosa, que a queima das folhas produzia era um motivo de reclamação das mães, que vinham às janela ralhar aos berros. Com razão!

Uma nota. Enquanto que os fósforos em Portugal não se acendiam por fricção por serem feitos com fósforo amorfo, em Espanha, como nos cowboys de far-west, bastava raspar no chão e a chama aparecia, formosa e incendiária



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