domingo, 10 de maio de 2020

MEDITAÇÕES – Arquipélagos III – Cabo Verde



Uns apontamentos sobre o tráfego de escravos.

Reconheço que desde os primórdios da civilização europeia, sem esquecer que a cultura nos veio por via terrestre desde o Oriente, o mocho se tomou como representação da deusa Atenas, e por extensão da sabedoria em geral. Não se sabe ao certo quem o escolheu, a par das corujas, como representante de uma fonte inesgotável do saber.

Procurando o tema, todos sabemos que no arquipélago de Cabo Verde já não ondeia, como sinal de poder, a bandeira portuguesa. Mas nem que seja pelo facto de muitos dos seus cidadãos estarem radicados em Portugal, e ainda que entre eles sejam bastantes os que usufruem da nacionalidade lusitana. Uns naturalizados e outros por nascimento.

A decisão de escrever acerca de Cabo Verde surgiu por tabela, reflexo de uma situação caseira sem maior importância. Quando nós tínhamos a oficina de cerâmica em funcionamento, a minha esposa prestava uma colaboração, preciosa e indispensável, atendendo os clientes. Tinha mais paciência e melhor trato do que eu, por efeito de ter sempre mais trabalho a meu cargo do que tempo disponível. Mas um dia aconteceu que o cliente viu que a empregada natural de Cabo Verde que se encarregava, por horas, da lida da casa, e só de relance disse à minha mulher que aquela senhora era da ilha de Santo Antão.

Surpreendida perguntou-lhe se por acaso a conhecia. Nunca a tinha visto, mas a sua estrutura corpórea denuncia de que ilha procede. Esta afirmação ficou gravada na minha memória e passados uns tempos decidi averiguar se, de facto, existia uma razão plausível para tanta certeza.

E, por indução, segui o rastro da escravatura, tema que já me despertara o interesse anteriormente. Para começar fiquei a saber que o nome correcto daquele arquipélago é o de As Ilhas de Cabo Verde, sendo este Cabo Verde a ponta mais avançada do que hoje conhecemos como Senegal, concretamente nos arredores de Dakar, e em direcção ao arquipélago. De facto aquelas ilhas, de origem vulcânica, como todas as atlânticas, são extremamente áridas e com pouca vegetação. O que implica que de cabos verdejantes... nada. Faltava a explicação para que fosse possível identificar os povoadores de uma ilha em relação com os das outras ilhas.

Decidi retomar o estudo da escravatura, que sempre existiu, desde os tempos mais recuados até a modernidade. Todos os povos se apropriaram de cativos de guerra, condenados ou vendidos pelos seus familiares para pagar dívidas, para serem servidores em regime de escravidão. Não existiu povo algum na história da humanidade que dispensasse a mão de obra escrava. Quando o mercado tinha escassez de oferta os negociantes de carne humana tinham que procurar mais “mercadoria” noutras zonas e mesmo noutros continentes. A situação geográfica do arquipélago em questão, perto da zona da África negra, onde os negreiros se abasteciam, o tornava interessante para ter uma base em terra firme onde instalar um entreposto.

Estes entrepostos eram não só uma base de acumulação dos cativos, como de ser o acolhimento até chegar o navio onde os embarcar para negociar. Não só eram um armazém de escravos como até de criação de novos elementos, sem necessidade de os ter que adquirir aos tratantes africanos. Os europeus negociavam as “peças” -como eles os denominavam- normalmente com africanos muçulmanos, fossem de origem magrebino ou negros islamizados.

Eram estes africanos os que caçavam, em conluio com os sovas locais, em terrenos practicamente delimitados como tendo, em exclusivo. Um coto privado de caça humana. Cada negociante, e transportador de escravos para as Américas, tinha os seus fornecedores certos, e por isso o mais normal é que as suas vítimas tivessem uma etnia identificável.

A seguir verificaram-se as evoluções conhecidas. Se uma escrava boçal, recém chegada do interior de África, ficasse grávida de um feitor branco ou mesmo que mulato, o filho/filha teria um valor comercial maior do que uma criança de origem. E, possivelmente, seria ilustrado na língua europeia vigente na feitoria onde nascera. -O mesmo acontecia já em posse dos donos nas Américas, onde estes mulatos podiam vir a ser alfabetizados e , se a sorte os acompanhasse, chegar a ser aforrados- Também convêm saber que as concessões de ancorar e povoar uma certa área da ilha não eram dadas exclusivamente aos negreiros portugueses. A procura era muita e o dinheiro sobre a mesa sempre foi valorizado mais do que a nacionalidade.

Apesar de que este tema é desagradável, o facto de ter sido o responsável de uma deslocação de milhares, mesmo mais de um milhão, de pessoas diferentes mas também seres humanos, e neste caso transferidos de um continente para outro no intuito de substituir os habitante indígenas locais, ser um tema desagradável, não é razão para o ignorar. Os efeitos ainda hoje estão visíveis.

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