Uns
apontamentos sobre o tráfego de escravos.
Reconheço
que desde os primórdios da civilização europeia, sem esquecer que
a cultura nos veio por via terrestre desde o Oriente, o mocho se
tomou como representação da deusa Atenas, e por extensão da
sabedoria em geral. Não se sabe ao certo quem o escolheu, a par das
corujas, como representante de uma fonte inesgotável do saber.
Procurando
o tema, todos sabemos que no arquipélago de Cabo Verde já não
ondeia, como sinal de poder, a bandeira portuguesa. Mas nem que seja
pelo facto de muitos dos seus cidadãos estarem radicados em
Portugal, e ainda que entre eles sejam bastantes os que usufruem da
nacionalidade lusitana. Uns naturalizados e outros por nascimento.
A
decisão de escrever acerca de Cabo Verde surgiu por tabela, reflexo
de uma situação caseira sem maior importância. Quando nós
tínhamos a oficina de cerâmica em funcionamento, a minha esposa
prestava uma colaboração, preciosa e indispensável, atendendo os
clientes. Tinha mais paciência e melhor trato do que eu, por efeito
de ter sempre mais trabalho a meu cargo do que tempo disponível. Mas
um dia aconteceu que o cliente viu que a empregada natural de Cabo
Verde que se encarregava, por horas, da lida da casa, e só de
relance disse à minha mulher que aquela senhora era da ilha de Santo
Antão.
Surpreendida
perguntou-lhe se por acaso a conhecia. Nunca a tinha visto, mas a sua
estrutura corpórea denuncia de que ilha procede. Esta afirmação
ficou gravada na minha memória e passados uns tempos decidi
averiguar se, de facto, existia uma razão plausível para tanta
certeza.
E,
por indução, segui o rastro da escravatura, tema que já me
despertara o interesse anteriormente. Para começar fiquei a saber
que o nome correcto daquele arquipélago é o de As Ilhas
de Cabo Verde, sendo este Cabo Verde a ponta mais avançada do
que hoje conhecemos como Senegal, concretamente nos arredores de
Dakar, e em direcção ao arquipélago. De facto aquelas ilhas, de
origem vulcânica, como todas as atlânticas, são extremamente
áridas e com pouca vegetação. O que implica que de cabos
verdejantes... nada. Faltava a explicação para que fosse possível
identificar os povoadores de uma ilha em relação com os das outras
ilhas.
Decidi
retomar o estudo da escravatura, que sempre existiu, desde os tempos
mais recuados até a modernidade. Todos os povos se apropriaram de
cativos de guerra, condenados ou vendidos pelos seus familiares para
pagar dívidas, para serem servidores em regime de escravidão. Não
existiu povo algum na história da humanidade que dispensasse a mão
de obra escrava. Quando o mercado tinha escassez de oferta os
negociantes de carne humana tinham que procurar mais “mercadoria”
noutras zonas e mesmo noutros continentes. A situação geográfica
do arquipélago em questão, perto da zona da África negra, onde os
negreiros se abasteciam, o tornava interessante para ter uma base em
terra firme onde instalar um entreposto.
Estes
entrepostos eram não só uma base de acumulação dos cativos, como
de ser o acolhimento até chegar o navio onde os embarcar para
negociar. Não só eram um armazém de escravos como até de criação
de novos elementos, sem necessidade de os ter que adquirir aos
tratantes africanos. Os europeus negociavam as “peças” -como
eles os denominavam- normalmente com africanos muçulmanos,
fossem de origem magrebino ou negros islamizados.
Eram
estes africanos os que caçavam, em conluio com os sovas locais, em
terrenos practicamente delimitados como tendo, em exclusivo. Um coto
privado de caça humana. Cada negociante, e transportador de escravos
para as Américas, tinha os seus fornecedores certos, e por isso o
mais normal é que as suas vítimas tivessem uma etnia identificável.
A
seguir verificaram-se as evoluções conhecidas. Se uma escrava
boçal, recém chegada do interior de África, ficasse grávida de um
feitor branco ou mesmo que mulato, o filho/filha teria um valor
comercial maior do que uma criança de origem. E, possivelmente,
seria ilustrado na língua europeia vigente na feitoria onde nascera.
-O mesmo acontecia já em
posse dos donos nas Américas, onde estes mulatos podiam vir a ser
alfabetizados e , se a sorte os acompanhasse, chegar a ser aforrados-
Também convêm saber que as concessões de ancorar e povoar uma
certa área da ilha não eram dadas exclusivamente aos negreiros
portugueses. A procura era muita e o dinheiro sobre a mesa sempre foi
valorizado mais do que a nacionalidade.
Apesar
de que este tema é desagradável, o facto de ter sido o responsável
de uma deslocação de milhares, mesmo mais de um milhão, de pessoas
diferentes mas também seres humanos, e neste caso transferidos de um
continente para outro no intuito de substituir os habitante indígenas
locais, ser um tema desagradável, não é razão para o ignorar. Os
efeitos ainda hoje estão visíveis.
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