Será
psicose causada pelo isolamento?
Numa
fase de insónia matinal, que posso localizar no tempo porque ao
abrir os olhos vi que a claridade da alvorada já era intensa, lutei
interiormente, com um peso na consciência. Sentia-me esmagado com as
culpas que podemos admitir como próprias, relativamente a feitos e
factos que não nos podem ser decididamente imputados.
Porém,
se esta introdução pode dar a noção de tomar como pessoal, e
esquecer que apesar de ser só um problema mental, que abrange a
todos os cidadãos, vejo-me obrigado a deduzir que, quando em
pesadelo, eu sentia-me pessoalmente culpado. Ou seja, não constava
no argumento da peça o aceitar a extensa distribuição das culpas
do passado. Mas tampouco aceito, assim de pé para a mão (uma
das tais frases feitas que tem um sentido bastante críptico)
que seja o único mortal, ainda vivo apesar do temível vírus, que
se possa sentir culpado por acontecimentos em que não teve a mais
leve acção.
É
muito provável que o meu desassossego onírico tenha sido
consequência do ter escrito -com
a vaidosa e petulante ilusão de ser lido por uma larga série de
seguidores- sem vontade de ofender nem denunciar
individualmente a ninguém, uma quase eterna situação de abuso
sobre vítimas inocentes que proporcionaram fortunas fabulosas a
indivíduos desprovidos de escrúpulos. Ainda numa sequela desta
derradeira frase é preceituário, ou deveria ser, que sem a
necessidade de utilizar um pregoeiro que desse notícia pelas ruas e
praças, que algumas das famílias hoje bem situadas e
respeitadas, usufruem de boas fortunas que se ergueram pela
actividade de mercadores de escravos. E atrevo-me a alvitrar
que não é esta memória que lhes tira o sono.
Retomando
a razão do porque fui, interiormente, empurrado para este enorme
problema histórico-social e admitindo que a imensa maioria dos
contemporâneos passam, sensatamente, ao largo deste tema, sucede
que durante décadas fui sentindo algo parecido a um remorso, misto
de responsabilidade, imaginada, como membro da sociedade e sentimento
de que ainda hoje existem vítimas, directas ou indirectas, do
comércio de mão de obra sem liberdade.
Fazer
uma análise social, mesmo que rudimentar, sobre o que de facto se
pode admitir ser um peão social com liberdade, nos pode levar
rapidamente a concluir que, de facto, a liberdade que com tanto ardor
citamos, de facto é muito mais restrita do que o que fomos induzidos
a pensar.
Sendo
pessimista ou realista (sem
ser monárquico, pois são situações só semelhantes na aparência
semântica ) depressa somos levados a vislumbrar que a
liberdade efectiva de muitas pessoas, em especial aqueles que
dependem de um salário e sem garantias de firmeza, é muito
restrita.
A
situação social que se gerou por efeito secundário da pandemia em
curso, e que não se sabe quando estabilizará, se repetirá e até
onde os seus efeitos sociais nos afectarão, além da morte
irremediável de uma percentagem dos humanos que ainda circulam por
este mundo, é tenebrosa.
As
mudanças que, quase inevitavelmente, acontecerão, tem o ferrete de
poder alterar, para pior, o esquema de vida a que muitos se
habituaram. A alteração que o ocidente sofreu com a substituição
da força motriz natural, mesmo contando coma potência conseguida
com recurso às primitivas rodas hidráulicas, mas que a descoberta
da máquina de vapor, e depois dos motores eléctricos, e
recentemente com a informática, possibilitou a industrialização e
a consequente desumanização das massas humanas, incitadas a
abandonar a tristeza da agricultura subserviente e passar a ser uma
massa anónima e mal retribuída de operários, recolocados em
habitáculos insanos, miseráveis.
No
século XX, e em consequência da evolução tecnológica e da ânsia
da economia, a sociedade foi incitada, fortemente pressionada, para o
consumismo. Contava-se não só na distribuição de uma parte
dos lucros conseguidos pela alteração dos meios de produção (mais
eficazes) como, posteriormente, com a deslocalização de muitas
actividades fabris para zonas do mundo onde a mão de obra ainda era
mais barata.
Tudo
isto é conhecido. Mas falta
referir que muitos postos de trabalho se tornaram excedentários e
que o dinheiro distribuído já não era proporcional à produção
dos habitantes dos respectivos países. Entrou-se numa
espiral progressiva na deficit nacional.
A
actual crise epidémica deu, entre outras, uma consequência social
muito importante ao se fecharem muitas actividades cuja, reabertura
não pode ser garantida. O recurso a proporcionar uma retribuição
social a muitos desempregados conduz a um incremento dos impostos
internos aos ainda empregados e consumidores em geral -dá-se
com uma mão e tira-se com a outra- e a um endividamento
nacional, carrega-se sobre a dívida externa que já
existiaa, quase que eternamente.
Se
as lições da história nos mostram ser repetitivas, é triste
imaginar que retomaremos uma fase muito difícil na vida das classes
mais desfavorecidas. Mesmo que a epidemia decresça ou mesmo termine,
nem que seja aparentemente, nada poderá vir a ser como antes. E o
passado nos orienta no sentido de que, inevitavelmente, serão os
mais fracos os que “pagarão as favas”
E
por referir as favas, que poucos jovens gostam por não estarem
habituados ao seu paladar, será que se pode prever um regresso
paulatino das populações, já citadinas, para a lavoura? E neste
caso, quase hipotético, encontrarão as terras na mesma situação
em que as deixaram' quando desiludidos ou iludidos pelas
possibilidades de progresso social que a cidade lhes oferecia, de
mão beijada?
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