sexta-feira, 15 de maio de 2020

MEDITAÇÕES – Penar por culpa alheia



Será psicose causada pelo isolamento?

Numa fase de insónia matinal, que posso localizar no tempo porque ao abrir os olhos vi que a claridade da alvorada já era intensa, lutei interiormente, com um peso na consciência. Sentia-me esmagado com as culpas que podemos admitir como próprias, relativamente a feitos e factos que não nos podem ser decididamente imputados.

Porém, se esta introdução pode dar a noção de tomar como pessoal, e esquecer que apesar de ser só um problema mental, que abrange a todos os cidadãos, vejo-me obrigado a deduzir que, quando em pesadelo, eu sentia-me pessoalmente culpado. Ou seja, não constava no argumento da peça o aceitar a extensa distribuição das culpas do passado. Mas tampouco aceito, assim de pé para a mão (uma das tais frases feitas que tem um sentido bastante críptico) que seja o único mortal, ainda vivo apesar do temível vírus, que se possa sentir culpado por acontecimentos em que não teve a mais leve acção.

É muito provável que o meu desassossego onírico tenha sido consequência do ter escrito -com a vaidosa e petulante ilusão de ser lido por uma larga série de seguidores- sem vontade de ofender nem denunciar individualmente a ninguém, uma quase eterna situação de abuso sobre vítimas inocentes que proporcionaram fortunas fabulosas a indivíduos desprovidos de escrúpulos. Ainda numa sequela desta derradeira frase é preceituário, ou deveria ser, que sem a necessidade de utilizar um pregoeiro que desse notícia pelas ruas e praças, que algumas das famílias hoje bem situadas e respeitadas, usufruem de boas fortunas que se ergueram pela actividade de mercadores de escravos. E atrevo-me a alvitrar que não é esta memória que lhes tira o sono.

Retomando a razão do porque fui, interiormente, empurrado para este enorme problema histórico-social e admitindo que a imensa maioria dos contemporâneos passam, sensatamente, ao largo deste tema, sucede que durante décadas fui sentindo algo parecido a um remorso, misto de responsabilidade, imaginada, como membro da sociedade e sentimento de que ainda hoje existem vítimas, directas ou indirectas, do comércio de mão de obra sem liberdade.

Fazer uma análise social, mesmo que rudimentar, sobre o que de facto se pode admitir ser um peão social com liberdade, nos pode levar rapidamente a concluir que, de facto, a liberdade que com tanto ardor citamos, de facto é muito mais restrita do que o que fomos induzidos a pensar.

Sendo pessimista ou realista (sem ser monárquico, pois são situações só semelhantes na aparência semântica ) depressa somos levados a vislumbrar que a liberdade efectiva de muitas pessoas, em especial aqueles que dependem de um salário e sem garantias de firmeza, é muito restrita.

A situação social que se gerou por efeito secundário da pandemia em curso, e que não se sabe quando estabilizará, se repetirá e até onde os seus efeitos sociais nos afectarão, além da morte irremediável de uma percentagem dos humanos que ainda circulam por este mundo, é tenebrosa.

As mudanças que, quase inevitavelmente, acontecerão, tem o ferrete de poder alterar, para pior, o esquema de vida a que muitos se habituaram. A alteração que o ocidente sofreu com a substituição da força motriz natural, mesmo contando coma potência conseguida com recurso às primitivas rodas hidráulicas, mas que a descoberta da máquina de vapor, e depois dos motores eléctricos, e recentemente com a informática, possibilitou a industrialização e a consequente desumanização das massas humanas, incitadas a abandonar a tristeza da agricultura subserviente e passar a ser uma massa anónima e mal retribuída de operários, recolocados em habitáculos insanos, miseráveis.

No século XX, e em consequência da evolução tecnológica e da ânsia da economia, a sociedade foi incitada, fortemente pressionada, para o consumismo. Contava-se não só na distribuição de uma parte dos lucros conseguidos pela alteração dos meios de produção (mais eficazes) como, posteriormente, com a deslocalização de muitas actividades fabris para zonas do mundo onde a mão de obra ainda era mais barata.

Tudo isto é conhecido. Mas falta referir que muitos postos de trabalho se tornaram excedentários e que o dinheiro distribuído já não era proporcional à produção dos habitantes dos respectivos países. Entrou-se numa espiral progressiva na deficit nacional.

A actual crise epidémica deu, entre outras, uma consequência social muito importante ao se fecharem muitas actividades cuja, reabertura não pode ser garantida. O recurso a proporcionar uma retribuição social a muitos desempregados conduz a um incremento dos impostos internos aos ainda empregados e consumidores em geral -dá-se com uma mão e tira-se com a outra- e a um endividamento nacional, carrega-se sobre a dívida externa que já existiaa, quase que eternamente.

Se as lições da história nos mostram ser repetitivas, é triste imaginar que retomaremos uma fase muito difícil na vida das classes mais desfavorecidas. Mesmo que a epidemia decresça ou mesmo termine, nem que seja aparentemente, nada poderá vir a ser como antes. E o passado nos orienta no sentido de que, inevitavelmente, serão os mais fracos os que “pagarão as favas

E por referir as favas, que poucos jovens gostam por não estarem habituados ao seu paladar, será que se pode prever um regresso paulatino das populações, já citadinas, para a lavoura? E neste caso, quase hipotético, encontrarão as terras na mesma situação em que as deixaram' quando desiludidos ou iludidos pelas possibilidades de progresso social que a cidade lhes oferecia, de mão beijada?

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