encontro
com o Dr. Cardoso
- Luísa,
ontem eu estava não só distraído como absorto com este problema,
duplo, que nos colocaram sem que saibamos a razão. E, mesmo com o
café carregado, não consegui dar-te a atenção que merecias
quando, a meu pedido, me contaste como tem andado os teus negócios.
Não duvido de que me contaste explicitamente, mas não entrou cá
nada. E como o meu interesse era real, não um pró-forma, que não
teria sentido entre nós, tenho que te pedir que me dês uma segunda
dose do mesmo, Tão explicadinha ou mais do que a de ontem.
Aquilo
que menos desejaria é que, pelo facto de me acompanhares, aquele
trabalho que começaste sozinha e conseguiste erguer com o te saber
e sexto sentido, sofresse um declínio por minha causa. Ficaste
ofendida com este meu bloqueamento
-
Não sejas tonto. E pensas que não notei que tu estavas noutro
mundo. E eu te acompanho nesta tua preocupação. Os salões
felizmente continuam em bom rumo e, como sabes, visito sempre que
tenho um tempo disponível no matrimónio, até agora não deram
sinais de declínio. Antes parece que as responsáveis querem
mostrar mais empenho do que eu mesma.
Quando
chegarem as férias de verão, terei que gratificar, com
magnanimidade, estas mostras de lealdade, sem esquecer que com as
idas das clientes à praia, entrem ou não nas águas gélidas, há
mais fluxo de trabalho nalguns períodos do dia, entre cortes e
reposição de penteados. Tenho que programar bem esta fase, pois
este ano, atrelada a ti, não tenho a mesma possibilidade de tapar
buracos, ou faltas de pessoal, como noutras alturas. Para já vou
pedir a opinião às duas encarregadas sobre se entendem ser
conveniente contratar alguma cabeleireira extra para o verão. È
possível que elas conheçam alguma profissional que tenha deixado
de trabalhar no ramo, mas que lhe convenha ganhar umas horas para
atender a despesas anormais. Tudo se vai encaixar, podes ter a
certeza. Cá vem a Amélia com algum recado.
-
Dona Luísa, Senhor Doutor, está um Senhor na entrada que perguntou
por si. Deixei-o na saleta ao pé da porta. E agora a Amélia traz um recado.
- Fizeste bem. O meu marido vai receber o visitante. Que
supomos saber de quem se trata. É um amigo nosso que certamente
viste no dia do almoço.
-
Dr Cardoso. Passou bem? Mentiria se dissesse que este encontro é uma
surpresa. Desde a notícia do falso enforcado que tenho andado
ansioso para poder trocar impressões com o
Doutor.
Cheguei a estar tentado para lhe pedir que me atendesse no seu
gabinete de trabalho em Coimbra. Estava eu nervoso como um
adolescente. Mas consegui refrear os impulsos, ultrapassando o bom
entendimento que, pessoalmente, criamos e avaliando que o seu
trabalho e a sua hierarquia não tem o mesmo nível do que falar numa
repartição qualquer.
-
Fez muito bem o Amigo Maragato -um
dia tem que me explicar, se sabe, onde diabo se iniciou este nome de
família-
Pois, de facto, eu prefiro poder dialogar consigo, frente-a- frente,
sem todos os preceitos que imperam na Polícia Judiciária, mesmo
tendo como tema de conversa um assunto profissional de que ambos
temos algum conhecimento. E ontem nos informaram, da GNR do Vale, da
sua denúncia contra terceiros, desconhecidos. Fez muito bem, apesar
de ter demorado demasiados dias. Dizem que nunca
é tarde quando chega.
-
Não sabe a satisfacção que sinto por ver que travei a tempo e
aguardei a ocasião que entendeu ser propícia. Das suas palavras
deduzi que os seu serviço já encontrou alguns pontos de interesse
no sentido de esclarecer o sucedido. E, dando seguimento à sua
última frase, de facto demorei demasiado a reagir. Fiquei baralhado
com o segundo cadáver. Tenho magicado, sem sossego, à procura de
razões para estes crimes e até, sem ter meios para isso, tentar
imaginar quem terão sido os
autores e se agiram por iniciativa própria ou a mando de alguém que
está resguardado à sombra. São muitas perguntas sem resposta para
um cidadão sem poder oficial.
- Já supunha que o
Maragato não estava sossegado “à sombra da bananeira”, e por
lhe reconhecer a astúcia e possuidor de uma intranquilidade
congénita, mantive-o não só vigiado mas também protegido. Além
de o considerar como uma possível fonte de novos caminhos de
investigação. Isso não impede de que o considere como um atrevido
quando me informam que mete-se em meios perigosos e com as mãos a
abanar. Pois sim, soube que esteve reunido, em duas ocasiões e em
Aveiro, com um cabecilha de etnia cigana. Deve estar ciente de que na
Judiciária, seja directamente ou por meio de informadores, tentamos
seguir todas as pistas e o Maragato, mesmo que estamos convencidos
que é uma vítima secundária, tem que ser acompanhado.
- Já imaginei que sabia,
e até o disse à minha mulher. Mas sou crescidinho e atrevido, além
de que conheço um leque de gente muito mais amplo do que a maioria
dos cidadãos. Mas fiquemos por aqui, se não se importa. Todavia,
como não podemos andar com segredos, vou contar como e porque
procurei o tal rei dos ciganos desta zona.
Através de pessoas que
conversam com uns e outros, que espalham boatos falsos mas que também
acertam à tangente, soube que naquela festa onde admito ter estado
presente o primeiro morto, e depois o segundo também teve alguma
ligação. Aquele que andou por aqui fazendo perguntas e com esta
iniciativa deve ter ganho que lhe cortassem a língua, soube o que
era de imaginar sem esforço. Naquela Rave ou Bacanal houve muita
droga dura, e dizem que foi fornecida por uns forasteiros bastante
estranhos.
Ora, por estas bandas
todos sabemos, desde a PSP, passando pela GNR e a PJ. Que a ciganagem
é uma das fontes de distribuição de droga, em despique com os
africanos. Daí que deduzi, mesmo com risco de errar, que os da tal
etnia especial deviam estar bastante chateados com a intromissão de
novos fornecedores. Conhecia, de bastantes anos atrás, ainda os
dois éramos rapazes, o Rafael Ortega, que certamente tem ficha no
vosso serviço. Pedi um encontro, que foram dois.
No primeiro contei-lhe os
meus problemas, ou até insultos recebidos por parte de desconhecidos
com o depósito de dois cadáveres nas nossas terras. Ele sabia
-sabem mais coisas do que nós, os civis caseiros imaginamos-
e lhe disse que, da minha parte, pensava que ele tampouco estava
satisfeito por lhe pisarem o terreno (metafórica-mente falando). Que
eu meditei que estes atrevidos podiam ser gente do Leste e por isso
lhe pedia que se pudesse passar palavra à sua gente, e viessem a
confirmar as minhas suspeitas, me informasse.
No segundo encontro já
me pode dizer que eu tinha acertado e que, de facto, eles estavam
muito danados com esta intromissão. Mas que não se atreviam com
aquela gente, que diziam ter treino militar e armamento pesado. E
até, naquilo de que palavra puxa palavra disse-me que dentro das
capacidades da sua gente, hábeis em se infiltrarem e disfarçar ao
que iam, podia ser que, indirectamente, através de mim, pudessem dar
uma ajuda para poder engavetar ou afugentar de Portugal estes
bárbaros. E não lhe posso dizer mais porque não há mais.
- O Amigo Maragato, mais
uma vez não me desiludiu. E, através dos meus informadores, pois
que também dentro dos ciganos temos quem nos mantenha ao corrente,
posso dizer, com satisfacção, que o seu relato encaixa
perfeitamente no que tenho nos meus apontamentos. É evidente que,
com os meios nossos e porque já entramos em contacto directo com a
Interpol, sabemos da identidade do grupo de bandidos, misto de
albaneses e romenos que actuam por esta zona do litoral e centro. Os
nossos serviços centrais estão preparando, com a ajuda de Coimbra,
uma redada para apanhar não só estes que agiram nesta festa rija,
como outros que sabemos estão ligados aos clubes de prostituição.
Pode dizer ao seu
conhecido Ortega, se lhe vier à mão, que sabe da incorporação de
gente dele na vigilância permanente, onde se revezam homens e
mulheres, incumbidos de os termos localizados. Tal como o Amigo
deduziu, isto de que Uma mão lava a outra, é uma regra de
ouro no nosso ofício, não a podemos descurar. Claro que os favores
pagam-se, em geral fechando os olhos em assuntos menos importantes. È
a vida!
Se me permite um
conselho, o Maragato já fez mais do que qualquer cidadão comum
teria feito. Já lhe disse que é um atrevido. Deve ter herdado do
seu pai e avô. Mas nesta altura não me convêm, e a si muito menos,
que interfira. Não faça ondas. Entretenha-se como se tudo tivesse
passado, faça jardinagem, plantem novas espécies arbóreas e
arbustivas. Mas pode ter a certeza de que eu o irei informando, na
condição de que aquilo que ouvir não pode ser transferido. Aqui
também se aplica aquilo de que O segredo é a alma do negócio.
- Agradeço,
profundamente, a sua visita e a abertura na troca de impressões.
Receava estar a interferir, mas não esquecerei as suas
recomendações. E com isto chegamos à hora de almoçar. Se puder
acompanhar este casal, isolado no campo, gostosamente partilharemos
uma refeição caseira, sem pretensões, mas com garantia de
qualidade. E faremos o possível para não falar dos temas em aberto!
-
Agradeço a vossa hospitalidade, desta vez a nível caseiro como
disse. Assim aproveitarei para conversar um pouco com a sua simpática
esposa.
Seguirá
no cap. LVIII
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