segunda-feira, 14 de maio de 2018

CRÓNICAS DO VALE – cap. 57



encontro com o Dr. Cardoso

Luísa, ontem eu estava não só distraído como absorto com este problema, duplo, que nos colocaram sem que saibamos a razão. E, mesmo com o café carregado, não consegui dar-te a atenção que merecias quando, a meu pedido, me contaste como tem andado os teus negócios. Não duvido de que me contaste explicitamente, mas não entrou cá nada. E como o meu interesse era real, não um pró-forma, que não teria sentido entre nós, tenho que te pedir que me dês uma segunda dose do mesmo, Tão explicadinha ou mais do que a de ontem.

Aquilo que menos desejaria é que, pelo facto de me acompanhares, aquele trabalho que começaste sozinha e conseguiste erguer com o te saber e sexto sentido, sofresse um declínio por minha causa. Ficaste ofendida com este meu bloqueamento

- Não sejas tonto. E pensas que não notei que tu estavas noutro mundo. E eu te acompanho nesta tua preocupação. Os salões felizmente continuam em bom rumo e, como sabes, visito sempre que tenho um tempo disponível no matrimónio, até agora não deram sinais de declínio. Antes parece que as responsáveis querem mostrar mais empenho do que eu mesma.

Quando chegarem as férias de verão, terei que gratificar, com magnanimidade, estas mostras de lealdade, sem esquecer que com as idas das clientes à praia, entrem ou não nas águas gélidas, há mais fluxo de trabalho nalguns períodos do dia, entre cortes e reposição de penteados. Tenho que programar bem esta fase, pois este ano, atrelada a ti, não tenho a mesma possibilidade de tapar buracos, ou faltas de pessoal, como noutras alturas. Para já vou pedir a opinião às duas encarregadas sobre se entendem ser conveniente contratar alguma cabeleireira extra para o verão. È possível que elas conheçam alguma profissional que tenha deixado de trabalhar no ramo, mas que lhe convenha ganhar umas horas para atender a despesas anormais. Tudo se vai encaixar, podes ter a certeza. Cá vem a Amélia com algum recado.

- Dona Luísa, Senhor Doutor, está um Senhor na entrada que perguntou por si. Deixei-o na saleta ao pé da porta. E agora a Amélia traz um recado.

- Fizeste bem. O meu marido vai receber o visitante. Que supomos saber de quem se trata. É um amigo nosso que certamente viste no dia do almoço.
- Dr Cardoso. Passou bem? Mentiria se dissesse que este encontro é uma surpresa. Desde a notícia do falso enforcado que tenho andado ansioso para poder trocar impressões com o
Doutor. Cheguei a estar tentado para lhe pedir que me atendesse no seu gabinete de trabalho em Coimbra. Estava eu nervoso como um adolescente. Mas consegui refrear os impulsos, ultrapassando o bom entendimento que, pessoalmente, criamos e avaliando que o seu trabalho e a sua hierarquia não tem o mesmo nível do que falar numa repartição qualquer.

- Fez muito bem o Amigo Maragato -um dia tem que me explicar, se sabe, onde diabo se iniciou este nome de família- Pois, de facto, eu prefiro poder dialogar consigo, frente-a- frente, sem todos os preceitos que imperam na Polícia Judiciária, mesmo tendo como tema de conversa um assunto profissional de que ambos temos algum conhecimento. E ontem nos informaram, da GNR do Vale, da sua denúncia contra terceiros, desconhecidos. Fez muito bem, apesar de ter demorado demasiados dias. Dizem que nunca é tarde quando chega.

- Não sabe a satisfacção que sinto por ver que travei a tempo e aguardei a ocasião que entendeu ser propícia. Das suas palavras deduzi que os seu serviço já encontrou alguns pontos de interesse no sentido de esclarecer o sucedido. E, dando seguimento à sua última frase, de facto demorei demasiado a reagir. Fiquei baralhado com o segundo cadáver. Tenho magicado, sem sossego, à procura de razões para estes crimes e até, sem ter meios para isso, tentar imaginar quem terão sido os autores e se agiram por iniciativa própria ou a mando de alguém que está resguardado à sombra. São muitas perguntas sem resposta para um cidadão sem poder oficial.

- Já supunha que o Maragato não estava sossegado “à sombra da bananeira”, e por lhe reconhecer a astúcia e possuidor de uma intranquilidade congénita, mantive-o não só vigiado mas também protegido. Além de o considerar como uma possível fonte de novos caminhos de investigação. Isso não impede de que o considere como um atrevido quando me informam que mete-se em meios perigosos e com as mãos a abanar. Pois sim, soube que esteve reunido, em duas ocasiões e em Aveiro, com um cabecilha de etnia cigana. Deve estar ciente de que na Judiciária, seja directamente ou por meio de informadores, tentamos seguir todas as pistas e o Maragato, mesmo que estamos convencidos que é uma vítima secundária, tem que ser acompanhado.

- Já imaginei que sabia, e até o disse à minha mulher. Mas sou crescidinho e atrevido, além de que conheço um leque de gente muito mais amplo do que a maioria dos cidadãos. Mas fiquemos por aqui, se não se importa. Todavia, como não podemos andar com segredos, vou contar como e porque procurei o tal rei dos ciganos desta zona.

Através de pessoas que conversam com uns e outros, que espalham boatos falsos mas que também acertam à tangente, soube que naquela festa onde admito ter estado presente o primeiro morto, e depois o segundo também teve alguma ligação. Aquele que andou por aqui fazendo perguntas e com esta iniciativa deve ter ganho que lhe cortassem a língua, soube o que era de imaginar sem esforço. Naquela Rave ou Bacanal houve muita droga dura, e dizem que foi fornecida por uns forasteiros bastante estranhos.

Ora, por estas bandas todos sabemos, desde a PSP, passando pela GNR e a PJ. Que a ciganagem é uma das fontes de distribuição de droga, em despique com os africanos. Daí que deduzi, mesmo com risco de errar, que os da tal etnia especial deviam estar bastante chateados com a intromissão de novos fornecedores. Conhecia, de bastantes anos atrás, ainda os dois éramos rapazes, o Rafael Ortega, que certamente tem ficha no vosso serviço. Pedi um encontro, que foram dois.

No primeiro contei-lhe os meus problemas, ou até insultos recebidos por parte de desconhecidos com o depósito de dois cadáveres nas nossas terras. Ele sabia -sabem mais coisas do que nós, os civis caseiros imaginamos- e lhe disse que, da minha parte, pensava que ele tampouco estava satisfeito por lhe pisarem o terreno (metafórica-mente falando). Que eu meditei que estes atrevidos podiam ser gente do Leste e por isso lhe pedia que se pudesse passar palavra à sua gente, e viessem a confirmar as minhas suspeitas, me informasse.

No segundo encontro já me pode dizer que eu tinha acertado e que, de facto, eles estavam muito danados com esta intromissão. Mas que não se atreviam com aquela gente, que diziam ter treino militar e armamento pesado. E até, naquilo de que palavra puxa palavra disse-me que dentro das capacidades da sua gente, hábeis em se infiltrarem e disfarçar ao que iam, podia ser que, indirectamente, através de mim, pudessem dar uma ajuda para poder engavetar ou afugentar de Portugal estes bárbaros. E não lhe posso dizer mais porque não há mais.

- O Amigo Maragato, mais uma vez não me desiludiu. E, através dos meus informadores, pois que também dentro dos ciganos temos quem nos mantenha ao corrente, posso dizer, com satisfacção, que o seu relato encaixa perfeitamente no que tenho nos meus apontamentos. É evidente que, com os meios nossos e porque já entramos em contacto directo com a Interpol, sabemos da identidade do grupo de bandidos, misto de albaneses e romenos que actuam por esta zona do litoral e centro. Os nossos serviços centrais estão preparando, com a ajuda de Coimbra, uma redada para apanhar não só estes que agiram nesta festa rija, como outros que sabemos estão ligados aos clubes de prostituição.

Pode dizer ao seu conhecido Ortega, se lhe vier à mão, que sabe da incorporação de gente dele na vigilância permanente, onde se revezam homens e mulheres, incumbidos de os termos localizados. Tal como o Amigo deduziu, isto de que Uma mão lava a outra, é uma regra de ouro no nosso ofício, não a podemos descurar. Claro que os favores pagam-se, em geral fechando os olhos em assuntos menos importantes. È a vida!

Se me permite um conselho, o Maragato já fez mais do que qualquer cidadão comum teria feito. Já lhe disse que é um atrevido. Deve ter herdado do seu pai e avô. Mas nesta altura não me convêm, e a si muito menos, que interfira. Não faça ondas. Entretenha-se como se tudo tivesse passado, faça jardinagem, plantem novas espécies arbóreas e arbustivas. Mas pode ter a certeza de que eu o irei informando, na condição de que aquilo que ouvir não pode ser transferido. Aqui também se aplica aquilo de que O segredo é a alma do negócio.

- Agradeço, profundamente, a sua visita e a abertura na troca de impressões. Receava estar a interferir, mas não esquecerei as suas recomendações. E com isto chegamos à hora de almoçar. Se puder acompanhar este casal, isolado no campo, gostosamente partilharemos uma refeição caseira, sem pretensões, mas com garantia de qualidade. E faremos o possível para não falar dos temas em aberto!

- Agradeço a vossa hospitalidade, desta vez a nível caseiro como disse. Assim aproveitarei para conversar um pouco com a sua simpática esposa.

Seguirá no cap. LVIII


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