- Quem
toca a estas horas?
- Fui
eu que marquei que nos acordassem cedo, pois temos que apanhar o
comboio para Coimbra logo que chegarmos à estação. Daí que,
menina e moça, toca a levantar fazer uma toilette sumária, quase à
gato, fechar o saco a descer. Eu já estou pronto, e logo que veja
que estás em andamento vou para a recepção fazer contas e pedir um
taxi. Tá tudo entendido?
- Certo,
Senhor Coronel. E para matar o bicho, quê? Sabes que esta pequena
refeição está incluída no preço.
- Só
podemos aviar de corrida, practicamente em pé. Tinha pensado tratar
disso na estação ou no comboio em andamento. Mas, atendendo ao que
necessitas, desço já e pedirei ao consierge que veja a que horas
parte o comboio que nos interessa. Espero por ti no lobby ou na sala
de pequeno almoço; depende do que me informem.
- Bom
dia. Queria fechar contas, mas antes necessitava de um favor da sua
parte. Pode ver nos horários da CP quando passa pela Gare do Oriente
o próximo comboio para Coimbra?
- É
um instante, Senhor Doutor. Creio que como já partiu o primeiro
ainda terão tempo de tomar o nosso pequeno almoço com um certo
sossego.
- Afinal
estarei à tua espera, a não ser que desças primeiro, na sala de
pequeno-almoço.
- Aceitarei
o seu conselho e necessito de mais uma atenção da sua parte. Caso
não venha um táxi por decisão própria até a porta do hotel, seria
tão amável que daqui a uns 15-20 minutos peça um carro, com
indicação de que será directo para a Gare do Oriente? É que não
quero dar de cara com um esperto que me leve a passear até Montes
Claros ou os Jerónimos.
…..
- Bem,
tudo encaixou. Já temos os bilhetes e o rápido, Intercidades ou
seja como lhe chamarem, deve estar a chegar. Se viemos até esta
estação, que nem sequer é da minha preferência, foi para fugir ao
transito que a esta hora se dirige à baixa. Assim conseguimos perder
menos tempo.
…..
- Estes
lugares são cómodos e espero que seja possível conversar com
alguma intimidade, pois nenhum dos dois gosta de transferir e
terceiros, e para mais desconhecidos, os temas das nossas conversas.
E recordas que antes de adormecer prometeste iniciar-me, com as
devidas cautelas, nos mistérios da vida dos Maragatos. Sim, porque
tenho o palpite de que muito do que decidas contar, que certamente
não será tudo, remonta a um passado muito interessante.
- Se
queres que eu desbobine terás que aceitar as meias palavras e as
metáforas com que tente camuflar pormenores sigilosos. De qualquer
forma já te contei que tudo começou com o meu avô. Um militar
espanhol que fugiu para a Guarda depois de uma intentona, pifiada, de golpe de
estado.
Não sendo parva deves saber que os militares, quando não
andam aos tiros, tem pouco ou nada que fazer. Passam os dias
massacrando os magalas, conversando na messe ou nos cafés. Naquela
época os milicos andavam pelas ruas fardados, e se eram novos, e
mais até se alunos da escola do exército, faziam os possíveis para
galar as meninas casadoiras, que enxameavam as casas de chá e os
passeios públicos.
O
avô, não sendo militar no exército português, sabia dos hábitos dos milicos. E de como os bolsos dos oficiais estavam, em geral, magros, carentes
de fundos. Ele, habituado à galhardia de convidar dos espanhóis e
como já tinha proventos especiais, por assim dizer, depressa se
tornou popular entre as autoridades militares, civis e até
religiosas, da cidade fria, feia e farta.
Devia ter, nos seus bons
tempos, uma figura interessante, um bigode à maneira e à sua volta uma núvem de
fulanos ansiosos de comer e beber às suas custas. Digamos que o avô
começou a semear numa seara que não era da sua propriedade, pelo
menos então, pois com o tempo tornou-se um proprietário de bens
imóveis e terrenos tanto de cultivo como de provável interesse
urbanístico futuro. Teve olho nestas formas de amealhar.
Concretizando:
O avô a partir dos contactos que já tinha em Portugal, deu outro
impulso ligando os conhecimentos em Espanha, principalmente entre os
militares e o comércio de armamento, e o que foi descobrindo, com o
seu feitio nada acanhado, mas sempre prudente. Do contrabando de
artigos de consumo, ao se abrir o conflito da guerra civil, ou melhor
da rebelião militar de índole fascista foi pertinente atender outro
tipo de solicitações. Mais ou menos as mesmas que se ampliaram
quando rebentou a segunda guerra mundial. As possibilidades de
negócio em Portugal cresceram exponencialmente. Nesta altura também
o meu pai entrou no esquema.
Não
podes imaginar a lista, enorme, de artigos que, por estarem em
bloqueio, e com Portugal neutral, nos pediam, sem descanso, e que os Maragatos, pelo seu próprio interesse conseguíam contrabandear. Havia tantos a lucrar que era impossível manter
segredo. Ou seja, todos sabiam das artimanhas, quase sempre infantis,
que se usavam para enviar para os franquistas e depois para o eixo. Havia mãos estendidas por
repartições, estradas e fronteiras. Tudo comeu à farta. Enquanto os
desgraçados passavam agruras e nos países em guerra morriam ou
ficavam estropiados. Até papel se enviava para além de Elvas
Era
um mundo insuspeitado onde poder fazer negócio, ganhando dinheiro,
ouro, diamantes, tudo o que tivesse valor e com o qual podiam pagar
as contas. Desde o volfrâmio, passando aos combustíveis, conservas
e todos os bens alimentares, metais em barra e trabalhados, como fio
de cobre. Cortiça para isolamento. Medicamentos passados dos aliados
para o eixo, em especial a penicilina. A lista era longa e cada dia era actualizada.
Na
casa paterna o dinheiro fresco entrava aos sacos. O avô e o meu pai
aplicaram fortunas em bancos, dentro e fora, em propriedades, etc. Os
rendimentos foram de tal ordem que, se assim desejássemos, não
tínhamos necessidade de mexer numa palha no resto das nossas vidas.
- Então
vives dos rendimentos! É isso?
- Podia
ser, mas tendo uma estrutura omnipresente seria uma burrice se a
deixasse morrer. Mas este é outro capítulo. Fica para outro dia.
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