quinta-feira, 5 de abril de 2018

CRÓNICAS DO VALE - Cap. 26



- Quem toca a estas horas?

- Fui eu que marquei que nos acordassem cedo, pois temos que apanhar o comboio para Coimbra logo que chegarmos à estação. Daí que, menina e moça, toca a levantar fazer uma toilette sumária, quase à gato, fechar o saco a descer. Eu já estou pronto, e logo que veja que estás em andamento vou para a recepção fazer contas e pedir um taxi. Tá tudo entendido?

- Certo, Senhor Coronel. E para matar o bicho, quê? Sabes que esta pequena refeição está incluída no preço.

- Só podemos aviar de corrida, practicamente em pé. Tinha pensado tratar disso na estação ou no comboio em andamento. Mas, atendendo ao que necessitas, desço já e pedirei ao consierge que veja a que horas parte o comboio que nos interessa. Espero por ti no lobby ou na sala de pequeno almoço; depende do que me informem.

- Bom dia. Queria fechar contas, mas antes necessitava de um favor da sua parte. Pode ver nos horários da CP quando passa pela Gare do Oriente o próximo comboio para Coimbra?

- É um instante, Senhor Doutor. Creio que como já partiu o primeiro ainda terão tempo de tomar o nosso pequeno almoço com um certo sossego.

- Afinal estarei à tua espera, a não ser que desças primeiro, na sala de pequeno-almoço.

- Aceitarei o seu conselho e necessito de mais uma atenção da sua parte. Caso não venha um táxi por decisão própria até a porta do hotel, seria tão amável que daqui a uns 15-20 minutos peça um carro, com indicação de que será directo para a Gare do Oriente? É que não quero dar de cara com um esperto que me leve a passear até Montes Claros ou os Jerónimos.
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- Bem, tudo encaixou. Já temos os bilhetes e o rápido, Intercidades ou seja como lhe chamarem, deve estar a chegar. Se viemos até esta estação, que nem sequer é da minha preferência, foi para fugir ao transito que a esta hora se dirige à baixa. Assim conseguimos perder menos tempo.
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- Estes lugares são cómodos e espero que seja possível conversar com alguma intimidade, pois nenhum dos dois gosta de transferir e terceiros, e para mais desconhecidos, os temas das nossas conversas. E recordas que antes de adormecer prometeste iniciar-me, com as devidas cautelas, nos mistérios da vida dos Maragatos. Sim, porque tenho o palpite de que muito do que decidas contar, que certamente não será tudo, remonta a um passado muito interessante.

- Se queres que eu desbobine terás que aceitar as meias palavras e as metáforas com que tente camuflar pormenores sigilosos. De qualquer forma já te contei que tudo começou com o meu avô. Um militar espanhol que fugiu para a Guarda depois de uma intentona, pifiada, de golpe de estado. 

Não sendo parva deves saber que os militares, quando não andam aos tiros, tem pouco ou nada que fazer. Passam os dias massacrando os magalas, conversando na messe ou nos cafés. Naquela época os milicos andavam pelas ruas fardados, e se eram novos, e mais até se alunos da escola do exército, faziam os possíveis para galar as meninas casadoiras, que enxameavam as casas de chá e os passeios públicos.

O avô, não sendo militar no exército português, sabia dos hábitos dos milicos. E de como os bolsos dos oficiais estavam, em geral, magros, carentes de fundos. Ele, habituado à galhardia de convidar dos espanhóis e como já tinha proventos especiais, por assim dizer, depressa se tornou popular entre as autoridades militares, civis e até religiosas, da cidade fria, feia e farta. 

Devia ter, nos seus bons tempos, uma figura interessante, um bigode à maneira e à sua volta uma núvem de fulanos ansiosos de comer e beber às suas custas. Digamos que o avô começou a semear numa seara que não era da sua propriedade, pelo menos então, pois com o tempo tornou-se um proprietário de bens imóveis e terrenos tanto de cultivo como de provável interesse urbanístico futuro. Teve olho nestas formas de amealhar.

Concretizando: O avô a partir dos contactos que já tinha em Portugal, deu outro impulso ligando os conhecimentos em Espanha, principalmente entre os militares e o comércio de armamento, e o que foi descobrindo, com o seu feitio nada acanhado, mas sempre prudente. Do contrabando de artigos de consumo, ao se abrir o conflito da guerra civil, ou melhor da rebelião militar de índole fascista foi pertinente atender outro tipo de solicitações. Mais ou menos as mesmas que se ampliaram quando rebentou a segunda guerra mundial. As possibilidades de negócio em Portugal cresceram exponencialmente. Nesta altura também o meu pai entrou no esquema.

Não podes imaginar a lista, enorme, de artigos que, por estarem em bloqueio, e com Portugal neutral, nos pediam, sem descanso, e que os Maragatos, pelo seu próprio interesse conseguíam contrabandear. Havia tantos a lucrar que era impossível manter segredo. Ou seja, todos sabiam das artimanhas, quase sempre infantis, que se usavam para enviar para os franquistas e depois para o eixo. Havia mãos estendidas por repartições, estradas e fronteiras. Tudo comeu à farta. Enquanto os desgraçados passavam agruras e nos países em guerra morriam ou ficavam estropiados. Até papel se enviava para além de Elvas

Era um mundo insuspeitado onde poder fazer negócio, ganhando dinheiro, ouro, diamantes, tudo o que tivesse valor e com o qual podiam pagar as contas. Desde o volfrâmio, passando aos combustíveis, conservas e todos os bens alimentares, metais em barra e trabalhados, como fio de cobre. Cortiça para isolamento. Medicamentos passados dos aliados para o eixo, em especial a penicilina. A lista era longa e cada dia era actualizada.

Na casa paterna o dinheiro fresco entrava aos sacos. O avô e o meu pai aplicaram fortunas em bancos, dentro e fora, em propriedades, etc. Os rendimentos foram de tal ordem que, se assim desejássemos, não tínhamos necessidade de mexer numa palha no resto das nossas vidas.

- Então vives dos rendimentos! É isso?

- Podia ser, mas tendo uma estrutura omnipresente seria uma burrice se a deixasse morrer. Mas este é outro capítulo. Fica para outro dia.


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