quarta-feira, 25 de abril de 2018

CRÓNICAS DO VALE – Cap. 40

    - Não dei pela tua chegada, mas como me avisastes de que dormirias no Astoria, deixei-me dormir tranquila. Levantas-te-te cedo e daí imaginar que o tal serão de trabalho não foi muito prolongado, ou então que alguma ocorrência te fez sair da cama mais cedo do que o habitual.

  • - As razões foram duplas. Por um lado os temas que tinha a tratar estavam em bom andamento e depois senti que estava a ser seguido, e num caso destes o melhor é fazer de conta que não se deu por isso, mas reduzir as actividades no mínimo. Ou muito me engano ou esta manhã teremos uma visita oficial. Daí que te peço que te arranjes com uma certa celeridade e te prepares como se estivesses prestes a partir de viagem,por exemplo para Aveiro 

  • De facto convinha que desse um salto à capital do distrito; mas antes aguardarei a tal visita que prevês esteja quase a chegar. Vou dizer que me sirvam o mata-bicho na saleta. Até que convêm ver se a ajudante que contratei par aliviar a Idalina, que não tem idade para muita coisa, mas vale muito pela sua veteranice e dedicação. Quero ver como esta Amélia se desenrasca. Tive-a em observação quando da preparação do almoço, na atenção ao pessoal e recolher de pratos e copos, e me pareceu ser aproveitável. Parece ser uma moça educada, séria e com vontade de se adaptar aos nossos hábitos.

  • - Senhor Doutor, está um cavalheiro na sala de entrada, que eu recordo ser um dos convidados no domingo passado. Fica ali especado ou mando entrar?

  • - Deixe Amélia, eu vou atender.

  • - Zé, pareces bruxo!

  • - Olá Dr. Cardoso, faça o favor de entrar, estávamos num tranquilo pequeno almoço, mas a sua chegada sempre ajuda a quebrar este isolamento que pesa num casarão deste tamanho, sem filhos nem netos que acompanhem. A que devemos esta visita?

  • - Lamento que esta vez eu venha em missão oficial. Preferia que fosse por gentileza, e precisamente em sua atenção, Senhor Maragato optei por passar pela sua casa em vez de o convocar para uma presença, mais séria dizendo assim, na sede da PJ em Coimbra. E até que poderia ter sido fácil esta convocação, dado que soube que o Senhor esteve na cidade ontem, pelo menos durante a tarde e até depois de jantar. 

  • Não se admire de nos sabermos dos seus passos. Já sabe que a polícia só descarta alguém da lista de possíveis suspeitos depois de conferir e votar a conferir. De qualquer forma, e como o amigo Maragato deve saber, pois não é nenhum tolo, os Maragato tem uma pasta em vosso nome que já foi aberta no fim da monarquia. Sem que conste nela  terem aberto nenhum processo. Nem sequer uma multa de trânsito.

  • Indo para adiante. O terem colocado outro morto, que estamos certos de ter sido assassinado, nos seus terrenos e no mesmo local do que o anterior, nos obriga a ter uma conversa com o proprietário, mesmo que a nível de testemunha indirecto. Pois que, atendendo às circunstâncias, não se sinta que o Maragato seja culpado. Daí que por respeito e atenção, que desde o primeiro encontro me mereceu, pensei que uma conversa, até certo modo informal, poderia ajudar a vislumbrar o macabro panorama.

  • - Dr. Cardoso, tenho que agradecer a forma como me abordou, e dado que não temos testemunhas inconvenientes, a não ser, se me permite, a minha esposa, sua conhecida, apresentarei a minha visão quanto a este mais recente desacato, para não ser mais agressivo no adjectivar. 

  • Sem pretender ensinar a missa ao vigário, esta atitude com o segundo cadáver parece-me, além de um desafio duplo, a mim, sem ter entendido o porque, e também às autoridades. Além disso, a meu ver, mostra a mão de uma organização criminosa, pois que plantar este morto no mesmo local, e com pormenores de que nós ainda não falamos, mas que alguns deles já me chegaram aos ouvidos, há aqui uns avisos que mais parecem ter saído dos relatos de actividades mafiosas. Não são próprios dos hábitos tradicionais na nossa população. Que temos que admitir nem sempre se portam como anjinhos de altar.

  • - Amigo Maragato. Mais uma vez me mostrou uma percepção e análise quase que de profissional. Pelos vistos entendo que já tem algum indício de a quem corresponde este falso enforcado, e das suas palavras deduzo que sabe terem-no mutilado, na língua e no sistema urogenital. Daí que partilho consigo que estas mutilações, mais os sinais de tortura que encontramos no corpo, mostram que por um lado queriam saber o que procurava e possa ter encontrado este homem, E por outro lado mostraram que não querem linguarudos em volta do assunto. E mais nos dizem, que o castrarem depois de morto, como deixou escrito o médico legista, era mensagem endereçada aos invertidos. Os assasinos se gabam de serem machões!

  •  - O Doutor Cardoso tirou-me as palavras da boca. Sei, por ser dos livros, que deve ter informadores. As polícias sempre tiveram ajudas de colaboradores voluntários ou gratificados e também imagino que nem tudo aquilo que vos “vendem” serve, Mas na investigação é basilar ouvir, perguntar, conferir e voltar a procurar. Se eu fosse polícia estaria sempre jogando com vários baralhos. Isso por influência dos muitos romances policiais que li desde o liceu até já bem adulto. São formativos e os recomendaria.(1)

  • Seja como for, caso o Dr. entender que devo comparecer na vossa sede em Coimbra, sempre e tanto que possa entrar e sair sem ser com grilhetas, estou evidentemente disponível. Até pode ser que, para cumprir as regras internas que possam existir, mas que obviamente eu desconheço, convinha que a minha presença fosse notada. Até podia ir lá para denunciar o insulto de que nos sentimos vítimas, feito por desconhecidos.

  • - Tudo pode ser, Senhor Maragato. Por enquanto eu farei um relatório interno do que comentamos. Não de tudo e com os pormenores que são claramente de índole reservada, pessoal. Os meus superiores gostam muito de relatórios... Agora volto para o local da provocação, pois que nos parece ter sido noutro sitio onde cometeram o assassinato, dado que não encontramos o fluxo de sangue que era de esperar. E não o convido a me acompanhar, por razões que sei entende e escuso de discriminar.

  • - Se me permitem darei a visita por terminada. Minha Senhora, Dona Isabel, que esteve pacientemente nos acompanhando, muda e atenta, os meus respeitosos cumprimentos.

  • - Eu o acompanho. E não o abraço em público pelas mesmas razões que apontou.
  •    
(1) A.A. Fair, Agatha Christie, Ellery Queen, Georges Simenon, Mickey Spillane, e outros.

Sem comentários:

Enviar um comentário