terça-feira, 24 de abril de 2018

CRÓNICAS DO VALE – Cap. 39




Ainda estamos de ressaca da iniciativa social. Nem sei como se conseguiu que tudo funcionasse tão a preceito. Só o segundo cadáver que nos ofereceram para sobremesa é que veio a ensombrar o que seria uma merecida pausa. Mas a vida não se pode controlar totalmente e nem sequer prever o que nos traz sem esperar. Dizem que as surpresas são o tempero da vida; algumas são de excesso de sal e pimenta!

Por enquanto não sabemos nenhum pormenor, pelo menos oficialmente. Mas quando fui tomar o pequeno almoço encontrei a Idalina na palheta com o Ernesto, ambos em voz baixa e com cara séria. Cheirou-me a que o tema era referente ao segundo cadáver. Pus-lhes a pistola ao peito, como quem diz, e eles não se atreveram a negar que eu acertara. E assim soube dos boatos que corriam entre a população local.

Convém sermos cautelosos ante de embarcar com instintiva convicção naquilo que nos chega através de fontes não oficiais, assim como tampouco devemos dar crédito ilimitado ao que nos transmitem pelas vias pretensamente sérias. O melhor é beber de várias fontes e escolher, sempre com reservas.

Dito isso o que me contaram é que este segundo morto, antes de que seja identificado pelas entidades competentes, deve ser aquele indivíduo bem falante que umas duas semanas atrás andava por aqui perguntando pelo morto que foi encontrado nos terrenos do Sr. Maragato. Ele dizia que o conheceu quando vivo, e que, de facto, está convencido de que era o Carlos Vicente, seu amigo de longos anos. Se calhar estas perguntas, e outras noutros lugares, é que lhe decidiram o fim trágico.

Nesta altura chegou o José e disse-lhe para nos acompanhar, com sinal de que só ouvisse. Já sossegados, o feitor e a veterana empregada fiel, retomaram o tema. Por suas bocas soubemos que o cadáver estava pendurado do carvalho, como se enforcado por suicídio, mas que tal não era possível porque tinha as mãos nas costas, com fio de cobre enrolado nos pulsos. Pior, tinham-lhe cortado a língua e toda a aparelhagem do sexo, visível porque estava nu da cintura para baixo. Os braços, peito e barriga estavam cheios de marcas, tanto nódoas negras, de pancada, como pequenos cortes e queimaduras. Aquele desgraçado foi torturado com sadismo. Um espanto que não recomendam ver.

Nenhum dos dois identificou a fonte original destes macabros pormenores. São coisas que se dizem por aí, sempre com boca pequena, citando as suas palavras. Apesar destas cautelas a Idalina referiu que muitas novidades chegavam ao Vale através da mulher de um GNR, que sendo ele de estatuto militar, sempre carregava uma certa má vontade em relação à polícia, digamos civil. Este homem, que em chegando a casa retirava a farda e gostava de se vestir como um cidadão civil qualquer, não era muito falador, nem era cliente frequente do café, onde as suas participações nas conversas limitavam-se ao futebol e ao tempo frio, quente ou húmido. Sempre teve fama de ser macambúzio. Daí que só depois dele ceder aos interrogatórios da mulher é que as notícias, poucas aliás, nos podiam chegar a umas escolhidas confidentes da esposa, todas elas de “confiança” e sempre jurando que não contariam a ninguém aqueles segredos. E depois, já se sabe... não demoravam nada a passar o mexerico aos quatro ventos.

E não insistimos mais. Cada um seguiu para a sua vida e nós não demos comentários a fim de evitar sermos referenciados. Ao ficar a sós, sem testemunhas, ambos mostramos o nosso espanto e temor pelo que tínhamos ouvido. Se, de facto, este indivíduo, foi vítima de maus tratos mais de profissionais do crime organizado do que de amadores, o que deixaram parece ser uma mensagem múltipla de aviso para que, daí em diante, não aceitarão que outros curiosos tentem mexer neste assunto. Sem hesitação captamos ter atingido um nível inusitado. Parece que, além dos elementos nacionais, que sempre agem a coberto de interesses e daí com alguma cobertura, é possível que já tenha entrado em campo aquilo que se refere como sendo as máfias a nível internacional, do crime organizado, seja de droga ou de clandestinos, se não de ambos campos, além de outros em paralelo. Temos que agir com muito cuidado!

- Isabel, nem é preciso que me avises para não ir até o local. Sei que tu não te apresentarás nem sequer pelos arredores, até porque não conheces a mata como eu. O mais prudente é aguardarmos pacientemente e ao mesmo tempo muito impacientes, que seja a GNR ou a Judiciária, nos procure, pois que como proprietários e já anteriormente “premiados” com outro morto, é inevitável o vir a ser incomodados, seja pouco ou muito. Entretanto vamos fazendo a nossa vida “normal”. Tu podes ir tratar dos teus salões e acertar contas com a dona Gertrudes e com os fornecedores de bens ou de serviços que ela encontrou e contratou. Não se pode esperar que fique com mais esta responsabilidade.

Pela minha parte vou até Coimbra, dar a novidade aos advogados e tratar de assuntos “não oficiais” que tu não deves conhecer, para teu resguardo e tranquilidade. Devo almoçar por lá e até ter que jantar e ter um serão “para trabalhadores”. Não te preocupes, que a vida continua, menos para aqueles que outros lhes cortam a sua estadia no mundo dos vivos. Ah! Mais uma coisa: gostaria que mantivéssemos os meus filhos e o teu irmão fora deste novo acontecimento, pelo menos antes de vir nos jornais. Não ganhamos nada, nem eles, em os preocupar com isso. Por enquanto aguardemos pelos acontecimentos.

- Avisarei à Idalina que não deve esperar por nós para almoçar nem jantar. Eu me arranjarei na Vila. Uma beijoca e bom trabalho, além de uma boa viagem. Se a noite estiver cerrada e com pouco transito se calhar é prudente ficares a dormir no Astória. Eu virei para o Vale ainda com luz de dia, mas ficava sossegada se me fores telefonando dando notícia de como vai a tua vida. Vai! Dá cá uma beijoca.

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