Ainda
estamos de ressaca da iniciativa social. Nem sei como se conseguiu
que tudo funcionasse tão a preceito. Só o segundo cadáver que nos
ofereceram para sobremesa é que veio a ensombrar o que seria uma
merecida pausa. Mas a vida não se pode controlar totalmente e nem
sequer prever o que nos traz sem esperar. Dizem que as surpresas são
o tempero da vida; algumas são de excesso de sal e pimenta!
Por
enquanto não sabemos nenhum pormenor, pelo menos oficialmente. Mas
quando fui tomar o pequeno almoço encontrei a Idalina na palheta com
o Ernesto, ambos em voz baixa e com cara séria. Cheirou-me a que o
tema era referente ao segundo cadáver. Pus-lhes a pistola ao peito,
como quem diz, e eles não se atreveram a negar que eu acertara. E
assim soube dos boatos que corriam entre a população local.
Convém
sermos cautelosos ante de embarcar com instintiva convicção naquilo
que nos chega através de fontes não oficiais, assim como tampouco
devemos dar crédito ilimitado ao que nos transmitem pelas vias
pretensamente sérias. O melhor é beber de várias fontes e
escolher, sempre com reservas.
Dito
isso o que me contaram é que este segundo morto, antes de que seja
identificado pelas entidades competentes, deve ser aquele indivíduo
bem falante que umas duas semanas atrás andava por aqui perguntando
pelo morto que foi encontrado nos terrenos do Sr. Maragato. Ele dizia
que o conheceu quando vivo, e que, de facto, está convencido de que
era o Carlos Vicente, seu amigo de longos anos. Se calhar estas
perguntas, e outras noutros lugares, é que lhe decidiram o fim
trágico.
Nesta
altura chegou o José e disse-lhe para nos acompanhar, com sinal de
que só ouvisse. Já sossegados, o feitor e a veterana empregada
fiel, retomaram o tema. Por suas bocas soubemos que o cadáver estava
pendurado do carvalho, como se enforcado por suicídio, mas que tal
não era possível porque tinha as mãos nas costas, com fio de
cobre enrolado nos pulsos. Pior, tinham-lhe cortado a língua e toda
a aparelhagem do sexo, visível porque estava nu da cintura para
baixo. Os braços, peito e barriga estavam cheios de marcas, tanto
nódoas negras, de pancada, como pequenos cortes e queimaduras.
Aquele desgraçado foi torturado com sadismo. Um espanto que não
recomendam ver.
Nenhum
dos dois identificou a fonte original destes macabros pormenores. São
coisas que se dizem por aí, sempre com boca pequena, citando as suas
palavras. Apesar destas cautelas a Idalina referiu que muitas
novidades chegavam ao Vale através da mulher de um GNR, que sendo
ele de estatuto militar, sempre carregava uma certa má vontade em
relação à polícia, digamos civil. Este homem, que em chegando a
casa retirava a farda e gostava de se vestir como um cidadão civil
qualquer, não era muito falador, nem era cliente frequente do café,
onde as suas participações nas conversas limitavam-se ao futebol e
ao tempo frio, quente ou húmido. Sempre teve fama de ser macambúzio.
Daí que só depois dele ceder aos interrogatórios da mulher é que
as notícias, poucas aliás, nos podiam chegar a umas escolhidas
confidentes da esposa, todas elas de “confiança” e sempre
jurando que não contariam a ninguém aqueles segredos. E depois, já
se sabe... não demoravam nada a passar o mexerico aos quatro ventos.
E
não insistimos mais. Cada um seguiu para a sua vida e nós não
demos comentários a fim de evitar sermos referenciados. Ao ficar a
sós, sem testemunhas, ambos mostramos o nosso espanto e temor pelo
que tínhamos ouvido. Se, de facto, este indivíduo, foi vítima de
maus tratos mais de profissionais do crime organizado do que
de amadores, o que deixaram parece ser uma mensagem múltipla de
aviso para que, daí em diante, não aceitarão que outros curiosos
tentem mexer neste assunto. Sem hesitação captamos ter atingido um
nível inusitado. Parece que, além dos elementos nacionais, que
sempre agem a coberto de interesses e daí com alguma cobertura, é
possível que já tenha entrado em campo aquilo que se refere como
sendo as máfias a nível internacional, do crime
organizado, seja de droga ou de clandestinos, se não de ambos
campos, além de outros em paralelo. Temos que agir com muito
cuidado!
-
Isabel, nem é preciso que me avises para não ir até o local. Sei
que tu não te apresentarás nem sequer pelos arredores, até porque
não conheces a mata como eu. O mais prudente é aguardarmos
pacientemente e ao mesmo tempo muito impacientes, que seja a GNR ou a
Judiciária, nos procure, pois que como proprietários e já
anteriormente “premiados” com outro morto, é inevitável o vir a
ser incomodados, seja pouco ou muito. Entretanto vamos fazendo a
nossa vida “normal”. Tu podes ir tratar dos teus salões e
acertar contas com a dona Gertrudes e com os fornecedores de bens ou
de serviços que ela encontrou e contratou. Não se pode esperar que
fique com mais esta responsabilidade.
Pela
minha parte vou até Coimbra, dar a novidade aos advogados e tratar
de assuntos “não oficiais” que tu não deves conhecer, para teu
resguardo e tranquilidade. Devo almoçar por lá e até ter que
jantar e ter um serão “para trabalhadores”. Não te preocupes,
que a vida continua, menos para aqueles que outros lhes cortam a sua
estadia no mundo dos vivos. Ah! Mais uma coisa: gostaria que
mantivéssemos os meus filhos e o teu irmão fora deste novo
acontecimento, pelo menos antes de vir nos jornais. Não ganhamos
nada, nem eles, em os preocupar com isso. Por enquanto aguardemos
pelos acontecimentos.
-
Avisarei à Idalina que não deve esperar por nós para almoçar nem
jantar. Eu me arranjarei na Vila. Uma beijoca e bom trabalho, além
de uma boa viagem. Se a noite estiver cerrada e com pouco transito se
calhar é prudente ficares a dormir no Astória. Eu virei para o Vale
ainda com luz de dia, mas ficava sossegada se me fores telefonando
dando notícia de como vai a tua vida. Vai! Dá cá uma beijoca.
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