- Luísa,
esposa querida (a
segunda com este diploma),
não sei se captas a paz e bem-estar que sinto neste momento, em que
podemos jantar a sós, sem companhia nem mirones. As minhas
recordações recuam uns vinte e tal anos, quando à volta da mesa,
sempre irrequietos e só sentados sossegados quando pressionados
pelos pais, mas sempre mexendo-se como se tivessem lombrigas. Eu
gostava de lhes dar a provar do meu prato, onde estavam condimentos
que ainda não tinham saboreado. Coisa que a falecida Constança
detestava e ralhava mesmo á frente das crianças. Não entendia o
meu proceder, e como sentia a obrigação de lhes abrir o paladar
para não se tornarem obcecados por um alimento em exclusividade.
Recordo de um tio meu, dos que ainda moravam em Espanha, que todo a
sua vida estava centrada no bife com batatas fritas e ovo a cavalo.
Não comia outra coisa! Que desperdiço e desprezo perante a
culinária!
- Meu
marido, já usado e certamente que mais do que reusado. Mas deixemos
estes pormenores, que devem ficar enterrados, para bem da
humanidade!! Esta esteve boa. Não te vou descobrir nem ensinar nada,
mas sabes bem que os costumes tem-se modificado muito, e que, até
certo ponto, quase que retrocedemos. Quantos jovens haverá por aí
que entre uma hambúrguer de fábrica e uma dose de cozido, ou
feijoada com chispe, ou caldeirada de peixe, ou chanfana, não
rejeitem toda a cozinha de tacho e tempo, de temperos honestos?
Alguns, bem ensinados e que não se deixem arrastar pelas modas, mas
serão poucos certamente.
- Enquanto
falavas, tão acertadamente, recordei um hábito, que já foi banido
por ser considerado como pernicioso, mas que eu, apesar dos ralhetes
da mãe, por vezes dava como petisco aos meus filhos: uma fatia de
pão caseiro, com um fio de bom azeite e polvilhado de açúcar, ou,
em opção mais do povo, regado com um esguicho de tinto e igualmente
polvilhado de açúcar. Deves ter a lembrança, se tiveste esta
sorte, de que ambos petiscos, por assim chamar, eram merecedores de
apreço.
- Pois
sim- Mas daí a tornar isso como um mata bicho habitual, diário,
como era costume entre o povo chão, vai uma boa distância. És
ciente de que a má alimentação das crianças, começando com as
tais “sopas
de cavalo cansado”,
era um dos factores que condicionavam a baixa estatura dos adultos.
Que só com a melhoria da alimentação é que verificou, pelos
registos dos quartéis quando mediam os mancebos que não conseguiam
fugir da chamada, que a altura foi subindo, lenta mas
progressivamente.
- Todos
os exageros são prejudiciais, mas eu referi este exemplo, mal
escolhido pelo que vi, mas a minha intenção de abrir aqueles
paladares era mais centrada nos pratos que vinham a mesa do que em
más tradições, que devemos entender e não estigmatizar só por
estarem fora do que hoje é aceite.
Muitas
vezes não paramos a pensar como e porque os hábitos tem mudado, e o
nosso tempo de vida não nos fornece a experiência do tempo dos
nossos pais e avós. Será que as gerações que nos seguem, a dos
nossos filhos e daqueles netos já presentes e outros que esperam a
sua vez de entrar, são conscientes de que os pobres, tanto no campo
como nas zonas degradadas das urbes em crescimento, não dispunham de
dinheiro para comprar farinhas e leites em pó, papas e até pomadas
quando precisas, para assegurar o bom crescimento dos seus
descendentes? Hoje nos incitam a que se deite fora um pacote, meio
esquecido, de um alimento onde está impressa uma data de caducidade
de semanas, poucas, atrás. E devíamos saber que estas caducidades
não são taxativas, que aquilo se transformou, repentinamente, num
veneno.
É
que a educação ou ilustração, neste território onde vivemos,
esteve estagnada por séculos. Que só no XIX é que a sociedade
civil reagiu, com as iniciativas não governamentais, como foram as
escolas financiadas pela maçonaria, tendo o Grandella como cabeça
visível. Nas cidades surgiram escolas do estilo da Voz do Operário,
e se imprimiram livros de ensino e pequenos opúsculos com divulgação
de temas profissionais, técnicos e até de teor académico, em
linguagem accessível para aqueles que se estavam iniciando na
cultura. Iniciativas que os conservadores, sempre ciosos do modo como
dominavam o povo, não gostavam. E estas “lanças em África” já
vinham atrasadas em relação ao que na Europa central já estava
consolidado.
- José,
mais uma vez os nossos diálogos entram no campo do social, por não
dizer da política, e nem eu nem tu somos políticos, que eu saiba.
Só no estar por casa, como o robe sobre a camisa de dormir ou do
pijama. E, por ser verdade, também em relação ao nosso
comportamento e relações com o mundo que nos rodeia. Vamos
continuar esta palestra noutra altura? É interessante e deve-se
bater neste ferro, mesmo quando está frio. Mas hoje temos outros
afazeres.
- Certo.
Sabes que não espero que os rapazes, doutores ou simples agentes da
autoridade, me sirvam as novidades em bandeja. Tenho que procurar
saber quem pretende fazer-me a cama e tentar devolver a bola, com
mais força. Posto isto vou sair para “o campo de batalha”.
Uma
das tarefas que considero oportunas, e indispensáveis, é a de
procurar localizar algum do pessoal de apoio, mais concretamente de
cozinha e copa, que esteve nas últimas farras que se deram nesta
zona, e que suspeitamos sejam destes eventos que se despacharam os
dois mortos. Se conseguir falar com algum destes membros do pessoal
de hotelaria, pois hoje é assim que gostam de ser referidos, o que
me interessa saber é se as “meninas” que ali levaram para
distrair os convidados eram portuguesas ou vieram de longe.
Também
tenho que sondar os meus conhecimentos e alguns colaboradores, que
não deves conhecer jamais, para concretizar o local onde se tem dado
as tais bacanais com droga e mulheres, e também com serviços
especiais para os que apreciam rabos de homem. Da primeira investida
não dei muita pressão nesta identificação, que se tornou
importante, pois seguindo o rasto da propriedade será possível
lançar o anzol sem ser à sorte no mar alto. Hoje até os pescadores
utilizam as técnicas de sonar para localizar os cardumes.
Tenho-me
perguntado porque diabo, estes sacanas, escolheram as minhas terras?
Será porque o tal mandarete que veio sondar a possibilidade de
comprarem o casarão, quando contou da sua tentativa e da minha
resposta ambígua, possa ter recebido ordens de “queimar” o
local? Há gente muito retorcida neste mundo. Estou convencido de que
seja o mesmo intermediário ou outro qualquer não tardará a bater à
nossa porta, mostrando-se “menos interessado” na adquisição por
causa dos acontecimentos, mas, mesmo assim, com vontade de nos ajudar
a nos ver livres de uma propriedade que ficou assombrada, ou mal
afamada.
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