domingo, 29 de abril de 2018

CRÓNICAS DO VALE – cap. 43


- Luísa, esposa querida (a segunda com este diploma), não sei se captas a paz e bem-estar que sinto neste momento, em que podemos jantar a sós, sem companhia nem mirones. As minhas recordações recuam uns vinte e tal anos, quando à volta da mesa, sempre irrequietos e só sentados sossegados quando pressionados pelos pais, mas sempre mexendo-se como se tivessem lombrigas. Eu gostava de lhes dar a provar do meu prato, onde estavam condimentos que ainda não tinham saboreado. Coisa que a falecida Constança detestava e ralhava mesmo á frente das crianças. Não entendia o meu proceder, e como sentia a obrigação de lhes abrir o paladar para não se tornarem obcecados por um alimento em exclusividade. Recordo de um tio meu, dos que ainda moravam em Espanha, que todo a sua vida estava centrada no bife com batatas fritas e ovo a cavalo. Não comia outra coisa! Que desperdiço e desprezo perante a culinária!

- Meu marido, já usado e certamente que mais do que reusado. Mas deixemos estes pormenores, que devem ficar enterrados, para bem da humanidade!! Esta esteve boa. Não te vou descobrir nem ensinar nada, mas sabes bem que os costumes tem-se modificado muito, e que, até certo ponto, quase que retrocedemos. Quantos jovens haverá por aí que entre uma hambúrguer de fábrica e uma dose de cozido, ou feijoada com chispe, ou caldeirada de peixe, ou chanfana, não rejeitem toda a cozinha de tacho e tempo, de temperos honestos? Alguns, bem ensinados e que não se deixem arrastar pelas modas, mas serão poucos certamente.

- Enquanto falavas, tão acertadamente, recordei um hábito, que já foi banido por ser considerado como pernicioso, mas que eu, apesar dos ralhetes da mãe, por vezes dava como petisco aos meus filhos: uma fatia de pão caseiro, com um fio de bom azeite e polvilhado de açúcar, ou, em opção mais do povo, regado com um esguicho de tinto e igualmente polvilhado de açúcar. Deves ter a lembrança, se tiveste esta sorte, de que ambos petiscos, por assim chamar, eram merecedores de apreço.

- Pois sim- Mas daí a tornar isso como um mata bicho habitual, diário, como era costume entre o povo chão, vai uma boa distância. És ciente de que a má alimentação das crianças, começando com as tais “sopas de cavalo cansado”, era um dos factores que condicionavam a baixa estatura dos adultos. Que só com a melhoria da alimentação é que verificou, pelos registos dos quartéis quando mediam os mancebos que não conseguiam fugir da chamada, que a altura foi subindo, lenta mas progressivamente.

- Todos os exageros são prejudiciais, mas eu referi este exemplo, mal escolhido pelo que vi, mas a minha intenção de abrir aqueles paladares era mais centrada nos pratos que vinham a mesa do que em más tradições, que devemos entender e não estigmatizar só por estarem fora do que hoje é aceite.

Muitas vezes não paramos a pensar como e porque os hábitos tem mudado, e o nosso tempo de vida não nos fornece a experiência do tempo dos nossos pais e avós. Será que as gerações que nos seguem, a dos nossos filhos e daqueles netos já presentes e outros que esperam a sua vez de entrar, são conscientes de que os pobres, tanto no campo como nas zonas degradadas das urbes em crescimento, não dispunham de dinheiro para comprar farinhas e leites em pó, papas e até pomadas quando precisas, para assegurar o bom crescimento dos seus descendentes? Hoje nos incitam a que se deite fora um pacote, meio esquecido, de um alimento onde está impressa uma data de caducidade de semanas, poucas, atrás. E devíamos saber que estas caducidades não são taxativas, que aquilo se transformou, repentinamente, num veneno.

É que a educação ou ilustração, neste território onde vivemos, esteve estagnada por séculos. Que só no XIX é que a sociedade civil reagiu, com as iniciativas não governamentais, como foram as escolas financiadas pela maçonaria, tendo o Grandella como cabeça visível. Nas cidades surgiram escolas do estilo da Voz do Operário, e se imprimiram livros de ensino e pequenos opúsculos com divulgação de temas profissionais, técnicos e até de teor académico, em linguagem accessível para aqueles que se estavam iniciando na cultura. Iniciativas que os conservadores, sempre ciosos do modo como dominavam o povo, não gostavam. E estas “lanças em África” já vinham atrasadas em relação ao que na Europa central já estava consolidado.

- José, mais uma vez os nossos diálogos entram no campo do social, por não dizer da política, e nem eu nem tu somos políticos, que eu saiba. Só no estar por casa, como o robe sobre a camisa de dormir ou do pijama. E, por ser verdade, também em relação ao nosso comportamento e relações com o mundo que nos rodeia. Vamos continuar esta palestra noutra altura? É interessante e deve-se bater neste ferro, mesmo quando está frio. Mas hoje temos outros afazeres.

- Certo. Sabes que não espero que os rapazes, doutores ou simples agentes da autoridade, me sirvam as novidades em bandeja. Tenho que procurar saber quem pretende fazer-me a cama e tentar devolver a bola, com mais força. Posto isto vou sair para “o campo de batalha”.

Uma das tarefas que considero oportunas, e indispensáveis, é a de procurar localizar algum do pessoal de apoio, mais concretamente de cozinha e copa, que esteve nas últimas farras que se deram nesta zona, e que suspeitamos sejam destes eventos que se despacharam os dois mortos. Se conseguir falar com algum destes membros do pessoal de hotelaria, pois hoje é assim que gostam de ser referidos, o que me interessa saber é se as “meninas” que ali levaram para distrair os convidados eram portuguesas ou vieram de longe.

Também tenho que sondar os meus conhecimentos e alguns colaboradores, que não deves conhecer jamais, para concretizar o local onde se tem dado as tais bacanais com droga e mulheres, e também com serviços especiais para os que apreciam rabos de homem. Da primeira investida não dei muita pressão nesta identificação, que se tornou importante, pois seguindo o rasto da propriedade será possível lançar o anzol sem ser à sorte no mar alto. Hoje até os pescadores utilizam as técnicas de sonar para localizar os cardumes.

Tenho-me perguntado porque diabo, estes sacanas, escolheram as minhas terras? Será porque o tal mandarete que veio sondar a possibilidade de comprarem o casarão, quando contou da sua tentativa e da minha resposta ambígua, possa ter recebido ordens de “queimar” o local? Há gente muito retorcida neste mundo. Estou convencido de que seja o mesmo intermediário ou outro qualquer não tardará a bater à nossa porta, mostrando-se “menos interessado” na adquisição por causa dos acontecimentos, mas, mesmo assim, com vontade de nos ajudar a nos ver livres de uma propriedade que ficou assombrada, ou mal afamada.

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