sábado, 21 de abril de 2018

CRÓNICAS DO VALE - Cap. 38




Desculpem que eu, Isabel, venha interromper as vossas conversas, que é possível que estejam agora mais centradas na notícia de última hora do que a reunião que nos juntou. Assim sendo, mais um morto matou a festa.

E a propósito de esta “festa” tenha sido apresentada com uma justificação bastante insólita já motivou a que, comentaristas com mais confiança, me abordassem com a dúvida, maliciosa, de se isso foi uma espécie de banquete de bodas, sem pastel nem leilão da liga e outras características habituais. Não foi assim que a concebemos; mas ao longo da preparação também imaginamos que surgissem este tipo de comentários.

Acontece que ambos já temos idade de ter juízo. Que eu não tinha pachorra nem coragem para me fardar de branco, a arrastar uma cauda, nem ter umas crianças vestidas à pajem com as cestinhas de alianças. Além de que esta propriedade, e a casa em especial, era o dote da primeira esposa do José, oferecida pelo sogro comendador. Tudo me agoniava para me sentir uma intrusa, e confio em que entendam as razões para não querer celebrar, claramente, a boda. Ambos sentimos que a vida íntima de cada um tem quase a obrigação de permanecer mesmo na intimidade. Coisa que nesta fase evolutiva da sociedade se está transferindo, sem recato, para as redes sociais.

Sobre este “pequeno pormenor” quero acrescentar, para terminar, que alguns convidados foram poupados de despesas em prendas, ofertas, e se não esperamos agradecimentos por isso, tampouco seria justo que o deixássemos passar em branco. E agora o meu marido, e vosso amigo José quer deixar um apontamento da actualidade.

-  Amigos. Lamento profundamente a notícia que minutos atrás nos chegou. Principalmente porque corresponde a mais uma morte da qual o único ligame que me une é o facto de ter sido utilizado um terreno desta propriedade para servir de depósito. Não tenho mais elementos que vos possa transmitir, porque o emissário parecia que tampouco sabia nada de nada, ou muito pouco. É possível que amanhã. Seja pela voz do povo ou pelos jornais nos apareçam alguns pormenores. Para já só tenho que agradecer a vossa comparência, o modo tão simpático como toda a gente mostrou o seu agrado e, também, desejar algo que é difícil, que este fecho do dia não venha a alterar o ambiente que mantivemos ao longo destas horas.

Não vos abro a porta para fugirem, e tampouco vos prendo contra vontade pois compreendo, por mim mesmo, como tudo se alterou. Mais uma vez agradeço a vossa estimada presença.

No dia seguinte

Passou por casa o inspector Dr. Cardoso. Só por uma questão de gentileza, pois estava já no serviço activo, dado que quando o comando da GNR deu conta da ocorrência, situada no mesmo lugar do crime de morte ainda não resolvido nem arquivado (está demasiado fresco para ser arquivado) a chefia o transferiu para ele, sem hesitação. Não podia acrescentar nada. Conhecia alguns pormenores escabrosos, com um nível de macabro pouco habitual entre nós. Mas é cedo para divulgar. E mesmo assim julgo que alguém de entre os membros da PJ e da GNR, mais os dos bombeiros e outros, dará com a língua nos dentes com os amigos dos jornais, em especial do Correio, que são avisados mais depressa do que as autoridades.

E o Dr Cardoso ainda acrescentou: logo de manhã no meu serviço, em Coimbra, mostraram dois jornais locais onde relatavam, com muitos louvores, a recepção que o Amigo José ofereceu a populares e outros cidadãos vossos amigos e familiares. Foi considerada a mais importante reunião civil, não oficial, que se deu, graciosamente (e sublinharam alguns dos adjectivos) nestes concelhos ao redor de Coimbra. Os jornalistas provincianos deviam ter saído bem comidos e bem bebidos, e com os olhos inflamados de ver tantas belezas desconhecidas, sem serem as habituais das revistas parvas. E tiveram que sair disparados para as redacções sem saber do novo morto. Fica para a número de amanhã.

Segue no capítulo XXXIX

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