quarta-feira, 11 de abril de 2018

CRÓNICAS DO VALE – Cap. 31




Isabel, estou cansado e não tenho cabeça para continuar esta conversa. Cada vez vejo a bola de neve maior e isso não é práctico. Creio que o mais prudente e até funcional será tomar um duche quente, caminha e dormir sem mais e amanhã tentaremos distribuir as tarefas de que sentirmos ser capazes, e ver quem poderá encarregar-se das outras. Para já, amanhã será um dia de telefonemas e decisões,ou de preparar o terreno para poder chegar a decisões favoráveis. Boa noite, querida Isabel.


- Só poso concordar com esta demonstração de sensatez. Vou-te deixar ir ao duche em primeiro lugar, pois eu,com os cuidados de pele e cabelo necessito mais tempo. Aposto que quando eu entre na cama já estarás ferrado no primeiro sono. E por isso deixo-te com um até amanhã, meu  comandante. Vamos a uma beijoca!


- Bom dia, Ninfa do Mondego -era a marca de um tónico capilar que o meu pai usava, mas que já não se encontra no mercado- Estive esperando que acordasses para tomar o mata-bicho em conjunto, mas estou a cair de fraqueza. Para aproveitar o tempo, e porque aqui nesta casa não chegam os jornais, estive escrevendo os pontos de que me lembrei. Ou seja, aquilo que colocaste como assuntos a tratar e decidir. O mais provável é que tenha esquecido alguns dos mais importantes. Mas conto contigo para recordares e completar a lista.


- A Idalina já nos ouviu. Não tarda a bater à porta com o pequeno almoço, que eu lhe disse tomaríamos nesta mesinha, tal como fazia a minha mãe, antes de se enfiar no seu espartilho, que ela chamava de cinta elástica, como de facto era.


- Bom dia meus senhores. Dormiram - Como anjinhos. Obrigada. E como cheira bem este café! O leite é caseiro? Pela nata que está à tona já sei que é da vaca de estábulo. E este pão mais os bolinhos de padaria emitem um aroma que não se encontra nas cidades. Mesmo na Vila, nem todas as padarias, e há quatro fornos em funcionamento, trabalham com farinhas de fábrica, algumas já com adição de fermentos e químicos para tornar o pão mais cheio de buracos de que uma estrada rural. Só uma padaria usa  farinhas de confiança, amassa com máquina mas junta massa da véspera para fermento; deixa levedar com sossego e coze com lenha ou gás, procurando seguir as regras dos seus pais e avós.


- Pois os vilões, que são os naturais da Vila, bem podem mimar esta padaria, que não pode vender a sua produção ao preço dos outros, que fabricam a martelo e as massas levedam à força de químicos. Mesmo assim arrisca-se a perder dinheiro em todas as fornadas. Terminará por claudicar, aceitando a pressão de entrar numa espécie de cooperativa que fabricará tudo por igual. Venderão todos a mesma coisa e passarão a ser balcões de venda. É a sina dos pequenos industriais e pequenos comerciantes.


- Quando os clientes acordem será tarde,pois os artífices de outrora terão falecido ou já não estarão para grandes trabalhos e responsabilidades. A possível solução para este padeiro conservador será a de se dedicar, quase que exclusivamente, a pães especiais e bolos tradicionais. Mas carecerá de ganhar nomeada para atrair clientes de outras zonas. E mesmo assim não garanto um êxito repentino.


- É como diz o menino José (desculpe este vício de o sentir como um rapazinho...) Os donos das três vendas de mercearias que existem no Vale estão desanimados, direi mesmo desesperados, com a quebra que em poucos anos se deu na procura dos seus artigos. Quase que só os procuram para os fiados no role, como quando eu era garota. A malta, que tanto se queixa do custo da vida, tem todos um carro e fazem as compras por junto nalgum super ou hiper da Vila.


Alguns, vaidosos, chegam a gastar gasolina até Aveiro para depois se gabarem das ofertas e de quanto compraram e pouparam! Quando de facto gastaram muito mais do que lhes custaria aviar-se numa das nossas vendas. É só vaidade e cagança! Desculpem o palavrão, mas fiquei nervosa! Voltarei para recolher o tabuleiro. Com licença.


- Já viste como a Idalina, cujos estudos devem ter ficado na terceira ou quarta classe, pois quando ela era criança as famílias dos lugares não podiam manter filhas a estudar. Precisavam da sua ajuda. Hoje pode dar aulas de social a muitos palermas que andam por aí com capa e batina.


- Dizer que o povo não presta é sinal de ignorância e soberba de quem profere tal cretinize. E mais, a responsabilidade de certo atraso é daqueles que estando em patamares superiores quanto a conhecimentos e saber, mantêm-se afastados da base da população.


- Zé. Nisto que estás a dizer é pertinente aplicar a receita de nem tanto ao mar nem tanto à terra.


- Conseguir audiência entre os habitantes dos lugares e os citadinos nem sempre é fácil. Sem ofensa intuo que. em certa maneira, se assemelha a ensinar um índio da Amazónia. O rural está historicamente escaldado, por séculos de ser dominado por uma elite, ficou visceralmente desconfiado, custa-lhe acreditar, de olhos fechados e mente blindada, quanto dos bons propósitos do “senhor”.


- Do seu lado estes carregam outros preconceitos difíceis de apagar quanto à capacidade mental dos aldeões. Falam duas linguagens diferentes e arrastam receios, justificados, de não muitos anos atrás. Digamos que não só os do tempo da monarquia como até das duas repúblicas. As guerras do Ultramar, que foram uma sangria económica e humana, sem visão de futuro, é que abriram as primeiras janelas entre letrados e rústicos, ao comerem e sofrerem juntos mal puseram os pés no terreno. E na dor e na miséria humana que se criam laços. Ver gemer e até chorar, sofrer e morrer um elemento da classe dominante o faz descer ao seu real nível de pessoa, igual ao dos outros.


Mesmo assim, quase que curadas as feridas da guerra e da ditadura, os dois lados da barricada social continuam a se sentir diferentes dos do outro lado, desconfiam e não se entendem por completo. E este atavismo só com o alargamento do acesso ao ensino é que se vai neutralizando. Até o dia em que se chegue a esbater. Ou quase. Espero que não demore muito tempo. Hoje as mudanças sociais ocorrem numa velocidade nunca vista.


- Isabel, sinto que estás carregada de bom senso e que isoladamente não se conseguem mudar os hábitos e os tais preconceitos. Mas é forçoso e até podemos apostar em que este muro, mental, que os separa vai ser derrubado mais depressa do que podemos imaginar. E com estes arrazoados comemos e bebemos tudo o que a Idalina nos trouxe, e quase que perdemos um tempo que teremos que recuperar sem devaneios.


Continuará. Quase certo..Já consegui arrumar como queria.

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