quarta-feira, 24 de maio de 2017

COM BARBAS OU DE CARA RAPADA



Ontem decidi mudar de ramo. Entenda-se de ramo pseudo artístico. Opção que tomo periodicamente quando me farto de fazer inutilidades num capítulo das manualidades e passo para outro. Desta feita retomei à talha em madeira, que não se deve confundir com ir talar árvores para o reino do Alberto João.

Sempre tenho alguns troncos na reserva para estes momentos de crise existencial, em que necessito descarregar problemas sérios que não posso escrever para editar. Bastantes dores cranianas tenho sem me atirar para o teclado. A principal, nesta altura, é conhecida por muitos e não carece de ser referida. Sentir-se enganado e jamais ser recompensado é duro de roer.

A brincadeira vai avançada, com um espalhafato de aparas e serradura que enerva à “minha senhora”, com há quem denomine a companheira que, sendo a dona da casa é, por indução e por direito social inerente, dona disto tudo.

Reconhecendo que quando me oriento para representar a figura humana não consigo dominar a minha tendência para retratar monstruosidades, optei para tentar vogar para as praias do não figurativo. Veremos. Caso alguém tiver a oportunidade e o interesse em ver o que sairá quando decidir que chegou ao ponto de não retorno.

Enquanto lutava com formões, goivas e maceta lembrei uma anedota que referia um sujeito, desempregado mas ansioso para conseguir trabalho remunerado, que ao passar pelo portão de um barracão de onde emanava um aroma de madeira recêm cortada e o barulho de ferramentas, pediu para entrar e tentar que o contratassem. O dono, cuja especialidade era a de ser santeiro (como o famoso Roque) perguntou-lhe:

- ajeita-se bem com as ferramentas de carpintaria?
    - óptimamente, como se formassem parte das minhas mãos.
    - e tem algum problema com a figura de santos?
    - é a minha especialidade!
    - aceita fazer um trabalho a prova?
    - com certeza. É só vestir uma roupa de trabalho e cá estou para o que vier.
    - Então tome este bocado de madeira e tire-me daí um Santo António. Tem aí um banco e ferramenta para trabalhar.

Passadas duas horas o ínclito artista tinha à sua volta um monte de aparas e serradura. Do tronco só restava um pedaço com menos de um palmo.

    - Então, e o Santo António?
    - O senhor disse-me que o tirasse daí, mas ele está escondido. Mas garanto que não se safa, tanto farei até que o encontre! Tem que sair!

    Outra história de cariz semelhante é a que aconteceu a um canteiro quando estava iniciando um trabalho de imaginaria. O desbaste estava na fase inicial, e um curioso perguntou: mestre, o que vai sair deste bloco, depois de aplicar a sua arte?

Pois a verdade é que ainda não estou decidido. Se vier com barbas será Santo Antão, e se não, a Puríssima Conceição.

Eu não direi que estou na mesma do santeiro escultor, mas a falta de melhor orientação aplicarei a sentença de que até o lavar dos cestos é vindima e assim dou-me uma margem de manobra para ir alterando a orientação do trabalho consoante a madeira reagir e as ferramentas obedecerem à mente pretensamente criativa. O que posso garantir é que, seja o que for, não terá um acabamento a folha de ouro, nem sequer de purpurina pretensiosa.


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