quarta-feira, 3 de maio de 2017

A INFANCIA NOS MARCA



Damos como certo que as primeiras impressões que recebemos, depois de nascer, mesmo que hoje também se admita que muito se fixa enquanto permanecemos no ventre materno, atribuímos as memórias de infância a factos que damos como vividos pessoalmente. É muito provável que uma parcela importante destas memórias foram moldadas pelo que, ao longo da convivência com os familiares, fomos ouvindo e acrescentando.

No que me respeita as memórias da infância cada vez surgem com mais intensidade. Deve ser coisa clássica nos que chegam à velhice e ainda conseguem comunicar sem se babar e ter a cabeça de lado. FIGAS CANHOTO.

Uma das situações que recordo, com suma tristeza e congoxa, é a longa fase que a população vencida passou, depois da vitória das forças multi-mixtas sob a bandeira da cruzada contra o comunismo. A população desprotegida, entendendo como tal as pessoas que não constavam nas listas dos aceites como partidários do governo que se impôs pela força das armas enquanto durou a contenda e depois com a repressão despiedada. Faltava a água nas torneiras. As horas com que se podia usar a energia eléctrica eram poucas e incertas. Socorrer-se de velas era um problema,pois o que estava à venda não tinham estearina e muito menos cera; eram de um sebo que deitava fumo e mau cheiro. Era preferível a luz de chama de carbureto, libertava gás acetileno com chama viva e fortemente luminosa. Recordo, ou imagino recordar, o seu cheiro adocicado, para mim agradável

À falta de liberdade sobrepuseram a escassez de bens essenciais, principalmente na alimentação mais básica. Organizaram um racionamento, sumamente escasso e que proporcionava, sem uma possível previsão e muito menos a garantia de servir os mínimos, alimentos de ínfima categoria. Grassaram todas as doenças derivadas da carência alimentar e higiénica, principalmente a tuberculose, a sarna e outras doenças da pele.

Poucos anos atrás uma escritora, por acaso da Catalunha, escreveu um romance-denúncia do negro passado, com o título, bem explícito Molta roba i poc sabó (muita roupa e pouco sabão). Quem viveu aquele período sendo adulto, e principalmente se dona de casa, recorda que havia escassez de sabão e quando surgia a possibilidade de o adquirir com a caderneta na mão, era, pelo que ouvia da minha mãe, uma coisa pastosa escura, quase negra, que mais sujava do que lavava. Feita com uma gordura desconhecida, possivelmente sebos que nunca se utilizaram na indústria de sabão, e sem o álcali que garantisse a saponificação.

Toda a lista de produtos que se punham à venda, em quantidades estipuladas e inamovíveis, seguiam o mesmo critério: o pão, quando havia, era negro, como se feito com barreduras e farinha de alfarrobas ou cereais inhabituais; o azeite era também um líquido negro, infecto. Arroz e legumes, nomeadamente grão de bico, implicava uma tarefa de escolha que dava trabalho a todos os que estavam na casa; as pedras e grãos a rejeitar deixavam a porção que entregavam reduzida a quase a metade.

Em compensação não era raro que incluíssem proteínas animais, caso não se importassem de comer os gorgulhos. Feijão era coisa rara e só uma importação de uns feijões pequenos, amarelos enviados da Argentina, podiam dar um ar de comer leguminosas.

Apesar deste panorama “oficial” existia o sistema “oficioso” onde não faltava nada. Aquilo que por cá se chamou de candonga, ou mercado paralelo e escondido, ali era conhecido por estraperlo, e muitos dos fornecedores “clandestinos” eram familiares dos guardas que se encarregavam de confiscar os bens que os transportavam desde o ponto de origem até a zona que se propunham abastecer.

Uma situação penosa que não afligia a quem tinha poder e dinheiro. Estes não tinham falta de nada. Como assim?

O cerne do problema não estava na agricultura, pois os camponeses, com esforço e seus braços ou algum animal que tivesse escapado com vida, produziam aquilo que poderia ser suficiente para abastecer a população espanhola de então. Mas... o vencedor tinha uma enorme dívida de guerra com a Alemanha e Itália, e logo que as tropas franquistas iam conquistando terreno requisitavam a produção agrícola para a enviar aos que estavam metidos na segunda guerra mundial; possivelmente dando melhor e maior atenção às necessidades do exército alemão. De onde se entende que aquilo que restava para a população, culpada de perder a guerra, nem sequer era próprio para alimentar animais.


Detalhes sem importância, mas que ressurgem com nitidez na memória de um velho.

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