Damos
como certo que as primeiras impressões que recebemos, depois de
nascer, mesmo que hoje também se admita que muito se fixa enquanto
permanecemos no ventre materno, atribuímos as memórias de infância
a factos que damos como vividos pessoalmente. É muito provável que
uma parcela importante destas memórias foram moldadas pelo que, ao
longo da convivência com os familiares, fomos ouvindo e
acrescentando.
No
que me respeita as memórias da infância cada vez surgem com mais
intensidade. Deve ser coisa clássica nos que chegam à velhice e
ainda conseguem comunicar sem se babar e ter a cabeça de lado. FIGAS
CANHOTO.
Uma
das situações que recordo, com suma tristeza e congoxa, é a longa
fase que a população vencida passou, depois da vitória das forças
multi-mixtas sob a bandeira da cruzada contra o comunismo. A
população desprotegida, entendendo como tal as pessoas que não
constavam nas listas dos aceites como partidários do governo que se
impôs pela força das armas enquanto durou a contenda e depois com a
repressão despiedada. Faltava a água nas torneiras. As horas com
que se podia usar a energia eléctrica eram poucas e incertas.
Socorrer-se de velas era um problema,pois o que estava à venda não
tinham estearina e muito menos cera; eram de um sebo que deitava fumo
e mau cheiro. Era preferível a luz de chama de carbureto, libertava
gás acetileno com chama viva e fortemente luminosa. Recordo, ou
imagino recordar, o seu cheiro adocicado, para mim agradável
À
falta de liberdade sobrepuseram a escassez de bens essenciais,
principalmente na alimentação mais básica. Organizaram um
racionamento, sumamente escasso e que proporcionava, sem uma possível
previsão e muito menos a garantia de servir os mínimos, alimentos
de ínfima categoria. Grassaram todas as doenças derivadas da
carência alimentar e higiénica, principalmente a tuberculose, a
sarna e outras doenças da pele.
Poucos
anos atrás uma escritora, por acaso da Catalunha, escreveu um
romance-denúncia do negro passado, com o título, bem explícito
Molta roba i poc sabó (muita roupa e pouco sabão). Quem
viveu aquele período sendo adulto, e principalmente se dona de casa,
recorda que havia escassez de sabão e quando surgia a possibilidade
de o adquirir com a caderneta na mão, era, pelo que ouvia da minha
mãe, uma coisa pastosa escura, quase negra, que mais sujava do que
lavava. Feita com uma gordura desconhecida, possivelmente sebos que
nunca se utilizaram na indústria de sabão, e sem o álcali que
garantisse a saponificação.
Toda
a lista de produtos que se punham à venda, em quantidades
estipuladas e inamovíveis, seguiam o mesmo critério: o pão, quando
havia, era negro, como se feito com barreduras e farinha de
alfarrobas ou cereais inhabituais; o azeite era também um líquido
negro, infecto. Arroz e legumes, nomeadamente grão de bico,
implicava uma tarefa de escolha que dava trabalho a todos os que
estavam na casa; as pedras e grãos a rejeitar deixavam a porção
que entregavam reduzida a quase a metade.
Em
compensação não era raro que incluíssem proteínas animais,
caso não se importassem de comer os gorgulhos. Feijão era coisa
rara e só uma importação de uns feijões pequenos, amarelos
enviados da Argentina, podiam dar um ar de comer leguminosas.
Apesar
deste panorama “oficial” existia o sistema “oficioso” onde
não faltava nada. Aquilo que por cá se chamou de candonga, ou
mercado paralelo e escondido, ali era conhecido por estraperlo,
e
muitos dos fornecedores “clandestinos” eram familiares dos
guardas que se encarregavam de confiscar os bens que os transportavam
desde o ponto de origem até a zona que se propunham abastecer.
Uma
situação penosa que não afligia a quem tinha poder e dinheiro.
Estes não tinham falta de nada. Como
assim?
O
cerne do problema não estava na agricultura, pois os camponeses, com
esforço e seus braços ou algum animal que tivesse escapado com
vida, produziam aquilo que poderia ser suficiente para abastecer a
população espanhola de então. Mas... o vencedor tinha uma enorme
dívida de guerra com
a Alemanha e Itália, e logo que as tropas franquistas iam
conquistando terreno requisitavam a produção agrícola para a
enviar aos que estavam metidos na segunda guerra mundial;
possivelmente dando melhor e maior atenção às necessidades do
exército alemão. De onde se entende que aquilo que restava para a
população, culpada de perder a guerra, nem sequer era próprio para
alimentar animais.
Detalhes
sem importância, mas que ressurgem com nitidez na memória de um
velho.
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