quarta-feira, 26 de abril de 2017

CONFESSAR OS SEUS PECADOS

De facto confessam-se para continuar na mesma. Iris Murdoch

Antes de me dedicar a divagar sobre esta frase, cuja importância não podemos menosprezar, quero deixar bem evidente que não é meu propósito magoar aqueles que são sinceramente crentes.

Penso que muitos somos cientes de que a nossa infância nos marcou indelevelmente, mesmo sem que no dia-a-dia dermos conta disso. Darei um exemplo pessoal de um hábito infantil, que desde o seu início tentaram reprimir mas que, periodicamente reaparece, para espanto de quem partilha uma refeição ao meu lado.

Sei por memória e porque tal me foi recordado pela minha mãe, que sempre fui vagaroso a comer. Raros eram, e são, os manjares que me incitassem a um deglutir anafado, e que instintivamente tento alterar o conteúdo que me foi colocado à frente. O método mais habitual é seleccionar um dos componentes e ir petiscando nele, ou deixando-o de lado no prato, como se assim conseguisse ter duas “especialidades diferentes a partir do mesmo cozinhado.

Aquele onde caio com mais frequência, e sempre no caso de ter a cabeça noutro lugar, é o da sopa de caldo com massa, em geral cotovelos. Ali começa o desgosto de quem me acompanha, e embora existam duas variantes, ambas lhes causam o mesmo desconforto visual: ou apanho a massa, deixando escorrer o caldo inclinando a colher no rebordo do prato, até terminar com a última peça naufraga, para depois poder comer toda amassa a seco e depois dedicar-me ao caldinho como se fosse a melhor iguaria deste mundo.

Ou, em alternativa, mergulhar a colher com cuidado e ir engolindo o caldo em primeiro lugar e depois, quando a massa ficou a seco, como numa maré vaza, dedicar-me à massa. É a minha vingança silenciosa contra um cozinhado que não me apetece aquele dia.

Um filme que se repete com outros ingredientes, como seja o ter salada no mesmo prato, cuja presença me incomoda por trazer água e tempero diferente do resto. Então ou como a salada toda de uma vez, antes de tocar no resto, ou, em alternativa, empurro a salada para um sector do prato que previamente deixei vazio, e comer no fim.

Na vida social, que progressivamente foi reduzindo-se, por minha causa, sempre procedi de forma parecida. Aqueles que, por qualquer razão, senti que as suas opiniões ou comportamentos, eram incompatíveis com as minhas regras pessoais, fui deixando de lado. E dada a complexidade de cada um de nós, o meu extremismo e excessiva auto-valorização, em simultaneidade com uma reduzida complacência ou respeito pelo labirinto que também existe na mente dos outros, conduziu a que os outros também optassem por me rejeitar. Coisas.

Este longo introito pessoal pode servir para esclarecer o porque esta frase, de uma filósofa já falecida, me chamou a atenção.

Já referi, noutros escritos, que na primeira infância era frequentador, induzido, das cerimónias religiosas. Mas creio que não citei que na escola conventual nos davam um cartão no que figurava o nosso nome e que na periferia vinham os números do dia do mês. À porta da igreja estava um freira com um alicate de revisor com o qual picava o número correspondente. Uma forma “muito subtil” de controlar com descaro e ganhar adeptos!

Como o meu interesse pela cerimónia era reduzido, embora soubesse o que por lá acontecia, e teatralizasse q.b., dedicava muita atenção a observar a assistência, em especial às pessoas que já intuía serem de destaque naquela paróquia. Mais tarde, já na rua, se nos cruzássemos com algum daqueles indivíduos, incluídas “senhoras”, que vi comungar e retirarem-se para o seu lugar com cabeça baixa e ar compungido, e o referisse a quem me acompanhava, em muitas ocasiões, em vez de ouvir o comentário de que tal era uma boa pessoa, respeitável e sem grandes faltas conhecidas, noutras vezes, as mais, diziam-me que era um torcionário, um sádico torturador, um denunciante, um velhaco, um mau elemento. É o que me veio à mente quando li esta frase, que por isso a destaquei.


Antes de encerrar é preceitual esclarecer que isto aconteceu no período mais negro da repressão fascista, comandada pelo ditador Franco. Apesar de estarmos a muitas décadas dos factos a periodicidade com que as situações se repetem e o desejo de muitos de ficar bem vistos, abdicando do seu auto-respeito, faz com que, em silêncio, duvide muito da profundidade da fé e bondade inerente dos que publicamente se mostram identificados com alguma religião, especialmente se esta é, por índole, absolutista, acumuladora de riqueza e até repressiva, mesmo que practique um bondoso disfarce.

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