sexta-feira, 7 de setembro de 2018

CRÓNICAS DO VALE - Cap. 65



Isabel e Diana

- Vou encontrar-me com a Diana Cardoso. Veremos se a vontade de falar desta amiga recente, mas que parece fixe, corresponde ao que o José imaginou. Confesso que com alguma probabilidade de ter razão. Está parada à porta da dita lanchonete. Pelos vistos não quis entrar, o que prenuncia que será noutro local, mais recatado, que deseja poder trocar as nossas ideias.

Bom dia, Doutora Diana, desculpe se cheguei atrasada, mas apanhei algum transito e alguma dificuldade para encontrar uma vaga nos parques pagos. Parece que, com a mudanço do tempo todos pensaram em por o carro a rodar.

- Cheguei mesmo agora e peço, por favor e amizade, que não me trate com cerimónias. Falemos como amigas, como se nos conhecessemos da infância. As poucas horas em que pudemos conversar, descontraídamente, ficaram-me marcadas dum mdo indelével. Se não se importa, pensei que era melhor sentarmo-nos num local menos concorrido.

Eu já tenho ideia de onde podemos conversar sem olhares e ouvidos indiscretos. É que esta terra é como uma aldeia, ou pior, pois aqui além de se conhecerem todos entre si, existem personagens cuja actividade principal é a de de vasculhar na vida alheia, e nas aldeias, onde já restam poucas tabernas e os cafés tem sempre as Tvs ligadas para os programas de que o povo gosta, os utentes estão mais interessados em estar de nariz no ar e olhando para o aparelho.

- Vejo que a Diana, se prefere assim, apesar de estar imersa no meio académico não perdeu o espírito de observação de como a sociedade, dita civil, foi alterando o seu comportamento. Seja qual forem os temas que sirvam de conversa, estou de acordo de que os outros, conhecidos ou desconhecidos, não tem o direito de nos ouvirem, e pior, de interptetar á sua maneira, sempre malévola.

- Isabel, desde que estive na vossa casa no Vale, tenho pensado, quase que com obsessão, na vossa felicidade por terem um espaço desafogado, sem vizinhos de janela, onde possa jardinar e até, como me disse pelo telefone, ter uma pequena horta, mesmo que incipiente, pois que só a prepararam, como surpresa, enquanto estiveram de viagem. Já tem alfaces aptas a irem para a mesa? E rabanetes? E cenouras? E flores de vista e de corte? Digo, sem vergonha na cara que invejo a sua sorte, e sei, por intuição, que até pode ser que descure, mas com cuidado e atenção, os seus anteriores afazeres profissionais para chegar a horas de dar umas voltas pelo seu domínio agrícola.

- Diana. As plantas do meu mini-terreno crescem lentamente, à antiga. Propositadamente não lhes são aplicados adubos químicos nem pesticidas. Quando prepararam o terreno, o feitor disse-me que procurou esterco curtido na vacaria de um vizinho, e até este material, biológico, foi devidamente misturado com a terra a fim de não queimar as raízes. Como certamente sabe, quando o esterco animal, com a palha das camas, fermenta, liberta muito calor; até se vê vapor a fumar. Mas, sem dúvida, confiamos mais nesta “porcaria” orgânica do que nos produtos indiustriais, por muitas garantias de inócuidade que nos digam.

- Chegamos Isabel. Esta leitaria, à antiga, quase nunca tem ninguêm qundo em tempo sem aulas. Vinha aqui quando estudava pois o sossego, mais algum movimento esporádico, ajudava-me a empinar e entender as malditas sebentas, e os pesados códigos.

Prefere um chá ou um leite cremoso, morno e com canela? Eu vou no chá.

- Eu optarei pelo leite com canela. Há muito tempo que não bebo este leite temperado, que era a minha delícia nos meus anos de adolescente. Mas, se não se importa, e atendendo a que quando a ouvi ontem, propondo este encontro, senti que a sua voz estava, digamos que nervosa, perturvada, e daí que, por solidariedade instintiva, também tenha vontade de poder oferecer algum sossego. Caso tiver capacidade para tal.

- Amiga Isabel, creio que não disse nada que indiciasse o que me trazia, e traz, inquieta e preocupada. Mas vejo que o seu instinto lhe anunciou que, de facto, algo havia no horizonte. Bem, em verdade não está tão longe como o horizonte, a trovoada já nos caiu em cima.

A versão curta é que o Sílvio foi transferido para o Porto, como chefe de serviço. Aparentemente é uma promoção, mas nós sabemos que foi um pontapé para a frente, que nos altera a vida fortemente.

A versão média pode ser a seguinte: O inspector Cardoso, que sempre tomou as suas responsabilidades ao pé da letra e, tanto quanto conseguisse, no sentido de se cumprirem as leis vigentes, escreveu o relatório que lhe pediram “lá de cima” sobre o que apurara sobre o escãndalo dos crimes ligados à vossa propriedade. È possível que as conversas que teve com o seu marido o levassem a pensar que, de facto, a nossa sociedade tinha-se adaptado aos tempos modernos, ao século XXI e à democracia. À noção de que a lei tinha que ser igual para todos e a justiça cega, sem olhar de lado como sempre fez.

E por isso deve ter feito um relatório, confidencial, que nem eu tive a possibilidade de ler, onde deve ter descrito o que descubriu e as conclusões a que chegou. Nomeadamente que toda aquela trapalhada, por assim dizer, embora os crimes de morte não sejam coisa de somenos. teve a sua origem numa festa-bacanal onde primavam pessoas não identificadas ou que, prudentemente, não queria identificar, embora existissem alguns indícios muito claros, apontando pessoas concretas, que naquele relatório não figuravam, por uma questão de respeito e prudência.

Fecho da versão estilo Triller: Como sucede que os poderosos, apesar dos processos mediáticos, continuam a ter muita força e não cederam a sua capacidade de influenciar na justiça, nem que para tal tenham que pressionar a quem sabem para que retirem algum juiz ou acusador público para um local afastado, a primeira medida que tiveram, antes de que as coisas chegassem aos jornais, foi a de afastar o Cardoso deste inquérito, e colocar outro inspector da sua confiança.

Repercussões: Eu tenho o meu lugar, o ganha-pão, em Coimbra. E nesta cidade montamos a nossa casa. Agora estamos físicamente afastados. A meia solução de o meu marido ir e vir, diáriamente, seja de comboio ou de carro, é posssível mas cansativa e perigosa se dependente do trânsito, Chega a casa cansado e mal disposto, especialmente chateado com o que lhe fizeram. Não quer falar do trabalho que lhe adjudicaram, pois quase que está delimitado à repressão de carteiristas e residentes clandestinos, como se fosse um polícia de giro, dos da PSP e não da PJ.

Não quis enfrentar as chefias pedindo esclarecimento, pois sabe como a casa se governa. Diriam que em vez de agradecer a promoção (?) falava como se tivesse sido castigado. E, após o tirarem bolas fora ainda lhe mostrariam má cara Por enquanto agora tudo são cínicos sorrisos.

Estamos ambos não digo que desiludidos mas sim que muito desconsolados, até íntimamente ofendidos, com o proceder das altas esferas. Os ares de mudança com que sonhávamos, os dois, cada dia que passou os sentimos mais fétidos. Não se pode esperar que a sociedade mude para a utopia. O peso dos poderosos é muito grande. Podem mudar alguns dos artistas, mas o esquema vemos que permanece igual. Ou pior, pois anos atrás tinha-se a ilusão de que as coisas melhoriam, se tornassem maiss correctas, mas, infelizmente, foi só como a beleza do arco-da-velha, que além de durar uns minutos, nem sequer existe materialmente. Não passa de um efeito de luz.

A desorientação é muita. Não sabemos se transferir a casa de família, pelo menos da que queriamos iniciar, para o Porto ou arredores, sem que antes eu tenha conseguido um lugar na faculdade. Equivalente, ou perto disso, ao que tenho em Coimbra. Ainda não tentei, nem sequer conversamos seriamente os dois sobre esta possibilidade. Tenho no Porto professores conhecidos e o meu curriculum é válido em todo o País.

E de empreitada desabafei consigo. Não tinha outro pano de lãgrimas disponível. Tenho que agradecer a sua amabilidade em não me interromper. E nem sequer me atrevo a lhe pedir um conselho, menos ainda do âmbito profissional. Mesmo assim peço que me de a sua opinião e que esta sirva para nos sossegar, mesmo que a solução esteja ainda por definir.

- Amiga Diana. Sendo franca, tal como se abriu comigo, digo que nada do que me conta me causou estranheza. Asco, raiva, nojo, sim, em quantidade. Mas era de esperar quando vimos o modo como o Dr. Cardoso, ou Sílvio -se aceitar esta falta de tratamento respeituoso, que não é tal, mas antes mostra de amizade- conversava com o meu marido.

José, foi criado num meio familiar muito céptico, pouco iluso quanto à seriedade de muitas pessoas, especialmente daquelas que se consideravam respeitáveis, mas que eram tão venais e velhacos como poderia ser um carroceiro. Coitados estes, que viviam num mundo muito limitado e os seus pecados ou deslizes, mesmo que pudessem chegar a crimes de sangue, eram uma bagatela comparativamente com as capacidades e feitos dos outros

A meu entender, e ainda não tive oportunidade de trocar impressãoes com o José, que insisto é homem com muito mundo, pode ser que neste momento vos convêm manter a calma. Dar sinais de que procuram casa na área do Porto. Que a Diana quer tentar uma transferência para uma faculdade sita no Porto. E o seu marido que faça o papel de satisfeito com a promoção e mostre trabalho que -aos de cima- incite a julgar que de facto está contente com se ver livre dos problemas de provincia. Se assim os fintar, forçosamente terão que lhe proporcionar um rumo mais de acordo com as suas capacidades.

E MUITO IMPORTANTE, manter a boca calada com colegas sobre as suas conclusões acerca do que aconteceu no Vale do Pito. A pasta deve estar fechada num cofre, mais do que dormindo numa gaveta, e ele, o Cardoso, terá que engolir este sapo, tornar-se cínico, nen que seja na apariência,

A outra solução, que não sei se serve, e da qual não tenho o menor conhecimento, é a de tentar entrar numa organização de investigação privada, de preferência de nível internacional. Deve, exsitir. Mas isso é um sonho parvo de quem está fora da jogada.

- Não sabe como agradeço o me ter ouvido e os seus comentários. Estes coincidem, quase que totalmente, com aquilo que tenho andado a moer, e de que pouco falei com o Sílvio, dado que chega a casa com um ar tão pesado e triste que não oferece uma aberta para falar tranquilamente. Agora, depois de estar com a Isabel, já me sinto mais apoiada, mais segura de mim mesma.

- Só lhe dei as minhas pobres opiniões. Que pouco valem e nada adiantam. Mas confio em que vocês, um casal educado e com os pés no chão, conseguirão salvar esta situação. Mesmo que pareça que sou curiosa em excesso, gostaria de saber como avança a vossa vida. Não me leve a mal. Aguardarei as suas notícias.

- Eu é que agradeço a sua disponibilidade e atenção. Não faltarei em lhe dar notícias, sejam boas, menos boas ou mesmo más. Beijinho e dê os meus estimados cumprimentos ao seu marido. Até breve, assim espero.
Próximo capítulo: 66 - A Luísa vai ao ginecologista



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