quarta-feira, 5 de setembro de 2018

CRÓNICAS DO VALE - cap. 63




Com a Isabel

Não posso dizer que saí da Judiciária mais tranquilo do que ao entrar. Mas desabafei contando a minha verdade e eles, seja o Cardoso ou o Quaresma, que cozinhem as coisas como entendam ou como lhes permitam, caso lhes entreguem um roteiro concreto para seguirem sem se desviarem. Para já vou ligar à Isabel para a tranquilizar, e também para eu tirar algum do azedume que aquela casa me deixou na boca.

Isabel, já estou na rua. Não foi desta que estrei os calabouços. E quero me encontrar contigo, almoçar e conversar. Donde estás? Diz-me donde nos podemos encontrar e a que horas. Eu posso fazer tempo visitando os teus conhecidos advogados. Mas esta visita pode esperar para outra ocasião. Fico aguardando pela tua chamada. Para já entrarei num café para relaxar junto de uma bica ou um cimbalino. Já não sei o que se diz em cada terra. Até já.

Zé, estou em Aveiro e tenho alguns assuntos a tratar antes do almoço. Nada de grave, mas já sabes que é conveniênte nunca deixar a cavalgadura sem manter as rédeas na mão. Todos e todas são excelentes pessoas, mas convêm afastar as tentações. E mesmo com cuidados não estamos resguardados de aborrecimentos. Bem aconselham (em 1780) Hum olho há de Dormir, e com o outro vigiar.

Seja como for, podemos almoçar na Vila, no “restaurante típico” CALECHE da Dona Gertrudes. Depois daquele almoço “social” no armazém da tua propriedade fiquei devedora das atenções que esta Senhora nos dedicou. O que não obstou a que pagassemos todas as contas que foram surgindo. Espero por ti entre a uma e uma e meia.

Cheguei! Como diziam num anúncio qualquer ou num programa brasileiro. Espero que aquelas quase duas semanas de andar de um lado para outro já tenham acalmado. Já tinha saudade do tal conforto do lar e de dormir acompanhado por uma pessoa amada. Ficou um bocado melosa esta frase, mas não me ocorreram palavras mais impessoais. Vamos trocar uma beijoca, e quero ouvir primeiro as tuas novidades.

Nos salões as coisas estavam normais. Tinha algumas decisões a tomar, sem ser o dos templários. Mas os anos de experiência neste ramo já me abriram caminho para me orientar, mesmo em mar revolto. Que não era o caso de hoje. Felizmente.

A única novidade, que pode ser interessante, é que mal desligaste tocou o telefone com a voz da Drª Diana, a esposa do Cardoso. Não esperava este contacto. Mas ela pediu-me que gostaria, se possível, encontrarmo-nos amanhã à tarde, em Coimbra, numa lanchonete da Rua das Montras, que sei qualé mas que, neste momento, não me surge o nome -sabes que já sinto brancas de memória? A idade já se faz notar, e não quero aceitar que caminho para a decrepitude, tal como acontece logo que nascemos- Ficamos em nos ver às quatro da tarde. Mas não me adiantou nada de nada. Não sei se eu estava com ouvidos a desconfiar ou se simplesmente prefere conversar cara-a-cara. Sabes que gostei desta Senhora, que não se armava em importante apesar de dar aulas na faculdade. E, possívelmente por eu a ter em excelente conta fez que a sentisse para o triste. Aguardaremos por amanhâ.

Se calhar não é necessário manteres-te na espectativa. Ontem soube coisas que podem ter influênciado desagradávelmente a este casal. Mas, por favor, o que ouvires de mim guarda no fundo do saco. Não faças como é costume em muitas mulheres. Logo que a sua interlocutora começa a rezar o seu terço, interropem dizemdo: já sabia disso!ortam a palavra e é muito desagradável. Coisas de mulheres, e de alguns homens.

Ao longo da entrevista-interrogatório na PJ de Coimbra, agora com um novo inspector responsável do inquérito no caso dos mortos colocados nos terrenos do Vale do Pito. Este chama-se Emílio Quaresma e faz o possível para se mostrar simpático e compreensivo. Nunca fiando com estas gentes, que foram escolhidos e treinados para não mostrar o seu jogo. Não quero dizer que joguem sujo, mas que trazem ases na manga podes ter a certeza, e isso quando não jogam com dois baralhos, como na canasta, ou mesmo três.

Este Quaresma comunicou-me que o Cardoso foi destacado para a central do Porto (aqui devem estar as razões de tristeza da esposa Diana) De imediato cheirou-me a um pontapé para a frente, possívelmente porque o Cardoso se mostrou relutante para deixar esquecer o tema, dado que, obviamente, tinha que haver gente importante, de peso e influência, aue estando implicados não desejavam aparecer nas gazetas. O dossié do Vale foi-lhe entregue a ele, Quaresma. Ele disse que depois de ler, atentamente, o que estava relatado na pasta, ficou com algumas dúvidas a meu respeito.

Depois de conversarmos, ou mais propriamente, eu desbobinar a minha verdade e as minhas deduções, que ele afirmou estavam coincidentes com o relatório que guardava fechado à sua frente, acabou por dizer que o colega Cardoso lhe disse, abertamente, que me chamasse e procurasse em mim, directamente, esclarecer o que para ele não estava claro, ou tão diáfano como gostaria.

E ao longo da longa hora que estive no seu gabinete não saiu disso, do que está nos autos. No fim dei uma dica sobre as pressões que supunha que as pessoas no seu posto recebiam quando os asuntos a inquirir podiam atingir círculos que não apreciavam serem apresentados em público. Ficou calado como um rato -de esgoto?- e quis despedir-se saíndo da sua mesa e pedindo um abraço que, acompanhou com umas palavras de apreço e concordância com as minhas reticências, bem justificadas, de sentir que aquilo tudo, onde se mataram pessoas, além das bacanais infames, podia terminar esquecido no fundo de uma gaveta.

E agora, querida Isabel, eu quero descarregar a tensão e almoçar com outros temas menos aborrecidos. Dado que chegaste primeiro admito que já deves ter conversado com a “Trudes”, como diziam os rústicos mas agora todos já falam à lisboeta como lhes ensinou a televisão. Daí que aposto em que já escolheste uma ementa para este almoço. Estou nas tuas mãos, sabendo que terás feito uma boa selecção de petiscos.


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