quinta-feira, 6 de setembro de 2018

CRÓNICAS DO VALE – cap. 64



No sossego da casa

- Boa tarde Dona Idalina Benditos os olhos que a vejam, que por acaso, entre outros, estão os meus! Então como vão os preparativos para a ceia? Certamente que já falou directamente com a dona da casa, mas não sei se lhe referiu que almoçamos na casa da Dona Gertrudes, na Vila, e nos deixou empanturrados. De maneira que o mais aconselhável é que seja, de facto, uma ceia leve.

- Boa Tarde. Menino Doutor José. Nesta casa já se sentia falta da sua boa disposição, das suas brinncadeiras de eternamente jóvem. Desde criança que sempre ouvi as suas graças, nunca ofensivas, se bem que algumas as repetia vezes sem conta. Quanto ao jantar, está tudo em andamento, como combinei com a menina Luísa. Mas tem tempo de descansarem uns minutos -ji ji ji- e tomarem um banho refrescante, caso a pressa para cear não seja muita.

- Gosto deste tratamento de menina, faz-me sentir mais nova. Seria agradável não fosse que tenho uma novidade que nem sequer o meu marido conhece. A Idalina deve ter conhecido casais em que, depois da esposa já pensar que o seu periodo de fertilidade tinha terminado, súbitamente e sem ter tido sinais de alarme, sentiu que estava de esperanças! Pois parece que é o que me está acontecendo. Já fiz a prova da farmácia, por três vezes seguidas, e parece que está confirmado. Uma vergonha! Já com idade de ser avó e poder mimar netos, vai daí o seu menino José deu-me uma prenda que não entrava nos nossos projectos.

Tenho um compromisso marcado em Coimbra e aproveitarei para visitar o ginecologista, que já me espreitou para dentro demasiadas vezes. Oxalá seja um falso alarme Rezarei, eu que não sou de crenças e menos de igrejas, para que aconteça o que já li naquelas revistas sem préstimo que temos nos salões: que por vezes o teste dá positivo mas, por outras causas, e não corresponde a uma gravidez.

E tu, José Maragato, escusas de fazer caretas. Não te espantes nem tenhas ilusões. O que precisas é de netos, e seria bom que insinuasses este desejo ao Bruno e à Luísa, pois esta demora que hoje se tornou habitual em muitos jóvens na sociedade evoluída, já maduros, conduz a que lhes cheguem as crianças quando já quase não tem vontade nem tempo de lhes dedicar atenção, e principalmente brincarem, os carregarem às cavalitas, ensinar-lhes a andar de biciclete, depois de treinar no triciclo, e colaborarem nas brincadeiras do faz de conta, que é uma forma de crescerem.

Vamos ao banho e a Idalina pode dar uma meia hora, comprida, para os nossos preparativos e descanso, que esta coisa de andar de um lado para outro com o carro também já cansa.

José, agora sem testemunhas, tenho que te fazer um pedido pessoal. Já te contei que nunca tive a oportunidade de ter um jardim à minha conta. Fiquei muito contente com a surpresa que o Ernesto me deu quando regressamos da nossa adiada viagem de noivos. Não passa dia em que eu deixe de visitar, e mais do que uma vez, os canteiros e as flores. É uma alegria ver como surgem os pequenos botões, que engordam até se abrirem em flores.

Apanhar uns coentros ou um raminho de salsa para colaborar na cozinha, é uma emoção que não podes imaginar. E sem falar nas galinhas poedeiras que a Idalina comprou a uma sua amiga que mora perto de nós. Ah! E um galote já desafiador, que não gosta que se entre no capoeiro para recolher os ovos. Os que moram num andar na cidade, ou mesmo na Vila caso não tenham um quintal anexo, não sabem o que perdem. O contacto com a natureza é um complemento importante na nossa vida. E, tal como parece que me acontece, uma das galinhas está no choco. A Idalina não tem a certeza de se os ovos estão devidamente galados, ou fertilizados sendo mais cultivado. Mas eu aposto no jovem galo, pois passa o dia montado nas galinhas.

- Falas tanto que não consigo absorver tudo o que dizes, e mesmo assim fiquei com a impressão de que guardaste a cereja do discurso para o fim. Por isso, continuarei calado, à espectativa.

- Zé, es um fulano muito vivido e vês de longe. Mas esta minha vontade é quase impossível que a tenhas imaginado. Como sabes fui comprando livrinhos de jardinagem e horta; já tenho uma mini biblioteca, e todos foram tidos, não como a maior parte dos volumes que se encontram expostos nas casas particulares. Alguns só tem a lombada! Pois destes livros e da paixão para as flores surgiu o interesse em ter uma mini-estufa no jardim. Já pensei onde a podiamos instalar e pedi folhetos a casas especializadas. Gostaria de ter orquídeas e cactos que não aguentam o inverno, de saber orientar as regras e o aquecimento, solar se possível. E esta mania, loucura se quisermos, ainda custa uns cobres largos. Gostaria de que autorizasses o meter-me nesta aventura e que fosse eu a financiar. Em vez de trocar de carro, por capricho, ou actualizar o vestuário como uma vítima das modas, preferiria avançar neste terreno que desconheço.

- Muitas novidades num só dia, ou em poucos minutos. Para já esta surpresa de poder vir a sermos pais em vez de avós, pelo menos eu, que tu tens mais de dez anos de diferença sobre este velho. E depois esta febre na agricultura que despontou em ti. Ambas novidades são um espanto, mas que darei o meu apoio. Na condição de que tu trates de contratar e gerir a estufa, ao teu gosto, mas com o apoio de alguém conhecedor deste ramo especial da floricultura, e depois que seja eu o financeiro responsável.

- Querido marido, sinto-me lisonjeada, mais uma vez, pelo modo simpático e carinhoso com que acolhes as minhas propostas. Quanto ao apoio técnico creio que o tenho garantido. Uma das minhas clientes do salão tem um filho, licenciado numa faculdade de couves e vinhas, agrícola se preferires, que, curiosamente, estagiou numas estufas que uns holandeses -que são uns barras nesta coisa- montaram num sapal entre Aveiro e Murtosa. Ouvi a mamá e não abri o meu jogo até falar contigo, mas tenho o palpite de que, pelo menos na instalação e num apoio ao jeito de avença, poderia contar com este moço, ou com algum colega dele se o recomendasse.

- Não sei se conseguirei digerir todo este chorrilho de histórias que me enfiaste sem respirar. Para já vamos à ceia e necessito de um gin-tónico para entrar em sintonia. E, por favor, hoje não me contes mais novidades, a não sei que desejas que tenha um AVC e fique por aí sentado com a boca torcida.

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