segunda-feira, 3 de setembro de 2018

CRÓNICAS DO VALE – cap. 62




O depoimento

Boa tarde. Entregaram esta convocação em casa. E cá estou eu, como prova o meu cartão de cidadão.

Faça o favor de aguardar nesta saleta. Vou avisar o Inspector.

- Dr. José Maragato, não é assim?

- Poderia ser, mas não é. Pela simples razão de que apesar de ter frequentado a Universidade nunca cheguei a conquistar o canudo. Devo ser o único que se matriculou, várias vezes, que se mascarou de seminarista, com a capa e batina. Que desistiu por falta de vocação. E apesar disso não aceita de bom grado o título -honorífico?- de Doutor (seria da mula ruça). Escapei da palhaçada Felizmente na minha época de “estudante” escapei da palhaçada das tunas, copiada dos espanhóis.

- Pois Sr. José Maragato, sem doutor. Sou o Inspector Quaresma, e foi-me atribuído o papel de instrutor do processo aberto, em seu dia, pelo meu colega Dr. Cardoso, que, depois de um curto periodo de férias, foi destacado para a secção do Porto. Digamos que foi promovido. Indiquei que o chamassem porque gostaria que me esclarecese alguns pontos, um pouco anormais, que encontrei ao estudar o processo.

- Mas, antes de entrar nos tais esclarecimentos, eu quero saber se sou arguido, pois se for este o caso, creio que posso requerer a presença dos meus advogados.

- Calma, Senhor Maragato. Nada de arguido nem de testemunha. Verá que só pretendo tocar em questões de segunda ou terceira linha. Mesmo assim, se a certa altura preferir ter aqui os seus advogados interromperei a conversa e marcaremos outra data. Verá que não há razões para recear.

- O Dr. Quaresma, Emílio segundo reza na placa sobre a mesa, é que fará as perguntas e, como imagina, os que tem em frente, neste caso eu, podemos desconfiar da fartura, ou da simpatia e empatia que emanem da pessoa que pergunta, ou interroga sendo mais correcto. Dispare!

- O que consta nos autos e que me causou alguma admiração é que o Sr. Maragato, desde o primeiro momento não se mostrou admirado com a encenação, e até se adiantou de motu próprio a dar uma explicação à lamentável farsa montada com o primeiro cadáver. Quando lemos o relato fica-se com a ideia de que sabia do assunto antes dos cães terem encontrado o morto, muito mal enterrado. Pode explicar esta situação?

- Não sei o que escreveram nos autos, mas eu dei, de imediato, ao Dr. Cardoso a minha dedução e as razões que me levaram a pensar daquela forma. Para já o meu feitor, mais os homens que já se encontravam junto do morto, reconheceram quem era. E curiosamente tratava-se de um conhecido travesti, possívelmente homosexual, que desfilava sacoroteando em estilo de sambista carnavalesca do Rio, em trajos reduzidos. Mostrava ter sido mutilado e abusado, se se pode dizer, antes de ser sacrificado. Instintivamente e porque há muitas décadas que deixiei de chuchar no dedo, deduzi que aquele crime não era obra de um rústico qualquer. Ali havia mostras de sadismo “educado”.

Chegado a este ponto recordei que pouco tempo antes veio ter comigo um desconhecido, que se intitulava como sendo um intermediário de compra e venda de propriedades, sem jamais se identificar e muito menos dar um cartão de empresa. Queria saber se estava disposto a vender a casa, mais o armazém que está ao lado; quantos quartos de cama havia, as casas de banho, os salões, e por aí fora. Tive que lhe travar os pés dado que não estava nos nossos planos vender a propriedade. Se fosse coisa séria o paleio seria outro.rr

Logo com o primeiro morto já desconfiei que alí havia uma tentativa de nos espantar e desvalorizar o prédio. E, como disse logo ao Dr. Cardoso, comecei a atar cabos e imaginar que os dois acontecimentos estavam ligados, e possívelmente a festanças da alta.

Como ve, nada que outro cidadão, experiente na vida e conhecedor de ambientes mais “evoluídos” do que o das aldeias, não pudesse magicar. Se estava certo ou errado, o tempo iria confirmar. Mas sempre, e repito, dei parte ao Dr. Cardoso das minhas deduções. Suponho, ou gostaria, que nos relatórios constassem as minhas palavras de forma clara e sem deixar pontos escuros. Mas, posso tentar esclarecer mais algum detalhe caso o Dr. Quaresma entenda que seria conveniente.

- Senhor Maragato, como pode imaginar, não lhe posso deixar ler os documentos que estão nesta pasta. Mas confirmo que, mais palavra menos adjectivo, o que aqui encontro condiz com o que me relatou de viva voz. A minha ex sitação tinha como razão que não é nada vulgar encontrar pela frente um cidadão que se atreva a pensar, e ainda a deduzir unindo situações aparentemente desconexas, e muito menos que as manifeste tão expontâneamente como se falasse do último desafio de futebol entre dois rivais. O Senhor mostra ter muito mundo no seu arquivo mental, e ainda não ficar perante a autoridade com os joelhos a tremer.

Continuando a ler o processo, são várias as referências a seu respeito, e sempre positivas. Até encontrei uma, bastante velada, em que parece que sugeriu ou mesmo fez a diligencia de propor a colaboração, interessada como é evidente, dos ciganos desta zona para vigiar uns forasteiros que se via estarem directamente ligados aos crimes de morte. Segundo é descita foi uma gestão combinada, mas encapotada, que deu bons resultados.

Como já disse, o Dr. Cardoso só deixou escritos bons pareceres a seu respeito. Ou seja, nada de ser arguido. Mas fiquei com muita curiosidade e vontade de o conhecer pessoalmente. Pode ser bom a representar ou merece a nossa estima. E dou o encontro por terminado, agradecendo a sua comparência.

- Tudo muito bonito. A baba já me deve cair pelo queixo abaixo. E permita a brincadeira ou falta de respeito. Mas, não sinto que ao fechar a pasta eu possa ficar sarisfeito. Então, e o resto do filme? Saímos no intervalo, fazemos um xixi e vamos para casa? E os autores putativos, os mandantes? Quando vislumbrei que aquela primeira morte, e depois as que se seguiram, estavam ligadas a uma versão actualizada dos famosos ballet rose de outro tempo, senti a ilusão de que desta vez as coisas não morressem numa gaveta. E desta feita houve mortes!

Como disse antes, e creio que por duas vezes, eu não nasci ontem, e fui criado por militares que tiveram que sair do seu país por discordarem. Há sentimentos em mim que estão recalcados de gerações. Mas isso não impede que seja consciente das pressões que vos travam, e, dando de barato, que tanto o Dr. Cardoso como o Dr. Quaresma são pessoas interiormente de bem, respeitaveis e respeitadoras, não gostaria de estar no vosso lugar. Ja não falo nas poucas vergonhas e nas sujeiras sexuais, que podemos considerar como desvios humanos eternamente presentes nas sociedades. Mas além de mortes, de abater vidas sem justificação plausível e menos legal, existe a devassa de uma propriedade particular, dos bens de um cidadão respeitável!

Posso sair vencido, ou ir parar ao calaboiço por lhe faltar ao respeito. Mas não sairei satisfeito com o arquivar, tácito, de um processo onde o meu nome aparece, sem ser de minha vontade, abusivamente.

- Senhor Maragato. As suas palavras não foram registadas. Falou correctamente e não posso concordar com o seu conteúdo pelos compromissos profissionais que sabe tenho. Permita-me que o despeça com um abraço, com o qual digo o que não posso verbalizar.

Gostaria de o encontrar em terreno neutral. Já o colega Cardoso me adiantou a possibilidade de que o pedido de esclarecimentos seria mais uma questáo de concordia do que de processo. Lamento o que prevé.

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