O
depoimento
Boa
tarde. Entregaram esta convocação em casa. E cá estou eu, como
prova o meu cartão de cidadão.
Faça
o favor de aguardar nesta saleta. Vou avisar o Inspector.
-
Dr. José Maragato, não é assim?
-
Poderia ser, mas não é. Pela simples razão de que apesar de ter
frequentado a Universidade nunca cheguei a conquistar o canudo. Devo
ser o único que se matriculou, várias vezes, que se mascarou de
seminarista, com a capa e batina. Que desistiu por falta de vocação.
E apesar disso não aceita de bom grado o título -honorífico?- de
Doutor (seria da mula ruça).
Escapei da palhaçada Felizmente na minha época de “estudante”
escapei da palhaçada das tunas, copiada dos espanhóis.
-
Pois Sr. José Maragato, sem doutor. Sou o Inspector Quaresma, e
foi-me atribuído o papel de instrutor do processo aberto, em seu
dia, pelo meu colega Dr. Cardoso, que, depois de um curto periodo de
férias, foi destacado para a secção do Porto. Digamos que foi
promovido. Indiquei que o chamassem porque gostaria que me
esclarecese alguns pontos, um pouco anormais, que encontrei ao
estudar o processo.
-
Mas, antes de entrar nos tais esclarecimentos, eu quero saber se sou
arguido, pois se for este o caso, creio que posso requerer a presença
dos meus advogados.
-
Calma, Senhor Maragato. Nada de arguido nem de testemunha. Verá que
só pretendo tocar em questões de segunda ou terceira linha. Mesmo
assim, se a certa altura preferir ter aqui os seus advogados
interromperei a conversa e marcaremos outra data. Verá que não há
razões para recear.
-
O Dr. Quaresma, Emílio segundo reza na placa sobre a mesa, é que
fará as perguntas e, como imagina, os que tem em frente, neste caso
eu, podemos desconfiar da fartura, ou da simpatia e empatia que
emanem da pessoa que pergunta, ou interroga sendo mais correcto.
Dispare!
-
O que consta nos autos e que me causou alguma admiração é que o
Sr. Maragato, desde o primeiro momento não se mostrou admirado com a
encenação, e até se adiantou de motu próprio a dar uma explicação
à lamentável farsa montada com o primeiro cadáver. Quando lemos o
relato fica-se com a ideia de que sabia do assunto antes dos cães
terem encontrado o morto, muito mal enterrado. Pode explicar esta
situação?
-
Não sei o que escreveram nos autos, mas eu dei, de imediato, ao Dr.
Cardoso a minha dedução e as razões que me levaram a pensar
daquela forma. Para já o meu feitor, mais os homens que já se
encontravam junto do morto, reconheceram quem era. E curiosamente
tratava-se de um conhecido travesti, possívelmente homosexual, que
desfilava sacoroteando em estilo de sambista carnavalesca do Rio, em
trajos reduzidos. Mostrava ter sido mutilado e abusado, se se pode
dizer, antes de ser sacrificado. Instintivamente e porque há muitas
décadas que deixiei de chuchar no dedo, deduzi que aquele crime não
era obra de um rústico qualquer. Ali havia mostras de sadismo
“educado”.
Chegado
a este ponto recordei que pouco tempo antes veio ter comigo um
desconhecido, que se intitulava como sendo um intermediário de
compra e venda de propriedades, sem jamais se identificar e muito
menos dar um cartão de empresa. Queria saber se estava disposto a
vender a casa, mais o armazém que está ao lado; quantos quartos de
cama havia, as casas de banho, os salões, e por aí fora. Tive que
lhe travar os pés dado que não estava nos nossos planos vender a
propriedade. Se fosse coisa séria o paleio seria outro.rr
Logo
com o primeiro morto já desconfiei que alí havia uma tentativa de
nos espantar e desvalorizar o prédio. E, como disse logo ao Dr.
Cardoso, comecei a atar cabos e imaginar que os dois acontecimentos
estavam ligados, e possívelmente a festanças da alta.
Como
ve, nada que outro cidadão, experiente na vida e conhecedor de
ambientes mais “evoluídos” do que o das aldeias, não pudesse
magicar. Se estava certo ou errado, o tempo iria confirmar. Mas
sempre, e repito, dei parte ao Dr. Cardoso das minhas deduções.
Suponho, ou gostaria, que nos relatórios constassem as minhas
palavras de forma clara e sem deixar pontos escuros. Mas, posso
tentar esclarecer mais algum detalhe caso o Dr. Quaresma entenda que
seria conveniente.
-
Senhor Maragato, como pode imaginar, não lhe posso deixar ler os
documentos que estão nesta pasta. Mas confirmo que, mais palavra
menos adjectivo, o que aqui encontro condiz com o que me relatou de
viva voz. A minha ex sitação tinha como razão que não é nada
vulgar encontrar pela frente um cidadão que se atreva a pensar, e
ainda a deduzir unindo situações aparentemente desconexas, e muito
menos que as manifeste tão expontâneamente como se falasse do
último desafio de futebol entre dois rivais. O Senhor mostra ter
muito mundo no seu arquivo mental, e ainda não ficar perante a
autoridade com os joelhos a tremer.
Continuando
a ler o processo, são várias as referências a seu respeito, e
sempre positivas. Até encontrei uma, bastante velada, em que parece
que sugeriu ou mesmo fez a diligencia de propor a colaboração,
interessada como é evidente, dos ciganos desta zona para vigiar uns
forasteiros que se via estarem directamente ligados aos crimes de
morte. Segundo é descita foi uma gestão combinada, mas encapotada,
que deu bons resultados.
Como
já disse, o Dr. Cardoso só deixou escritos bons pareceres a seu
respeito. Ou seja, nada de ser arguido. Mas fiquei com muita
curiosidade e vontade de o conhecer pessoalmente. Pode ser bom a
representar ou merece a nossa estima. E dou o encontro por terminado,
agradecendo a sua comparência.
-
Tudo muito bonito. A baba já me deve cair pelo queixo abaixo. E
permita a brincadeira ou falta de respeito. Mas, não sinto que ao
fechar a pasta eu possa ficar sarisfeito. Então, e o resto do filme?
Saímos no intervalo, fazemos um xixi e vamos para casa? E os autores
putativos, os mandantes? Quando vislumbrei que aquela primeira morte,
e depois as que se seguiram, estavam ligadas a uma versão
actualizada dos famosos ballet rose de outro tempo, senti a
ilusão de que desta vez as coisas não morressem numa gaveta. E
desta feita houve mortes!
Como
disse antes, e creio que por duas vezes, eu não nasci ontem, e fui
criado por militares que tiveram que sair do seu país por
discordarem. Há sentimentos em mim que estão recalcados de
gerações. Mas isso não impede que seja consciente das pressões
que vos travam, e, dando de barato, que tanto o Dr. Cardoso como o
Dr. Quaresma são pessoas interiormente de bem, respeitaveis e
respeitadoras, não gostaria de estar no vosso lugar. Ja não falo
nas poucas vergonhas e nas sujeiras sexuais, que podemos considerar
como desvios humanos eternamente presentes nas sociedades. Mas além
de mortes, de abater vidas sem justificação plausível e menos
legal, existe a devassa de uma propriedade particular, dos bens de um
cidadão respeitável!
Posso
sair vencido, ou ir parar ao calaboiço por lhe faltar ao respeito.
Mas não sairei satisfeito com o arquivar, tácito, de um processo
onde o meu nome aparece, sem ser de minha vontade, abusivamente.
-
Senhor Maragato. As suas palavras não foram registadas. Falou
correctamente e não posso concordar com o seu conteúdo pelos
compromissos profissionais que sabe tenho. Permita-me que o despeça
com um abraço, com o qual digo o que não posso verbalizar.
Gostaria
de o encontrar em terreno neutral. Já o colega Cardoso me adiantou a
possibilidade de que o pedido de esclarecimentos seria mais uma
questáo de concordia do que de processo. Lamento o que prevé.
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