terça-feira, 17 de março de 2020

MEDITAÇÕES – Incongruências I



O PECADO ORIGINAL

Fiz a primária num colégio anexo a um convento de freira de São Vicente de Paul -que eu confundia com o Perrault dos contos para infantes- e as aulas eram dadas por freiras fardadas “à maneira”, com aquelas toucas com asas que mais pareciam gaivotas a voar. E dada a época em que isto decorria, mal terminada a guerra civil, e com a pressão da dupla fascismo-catolicismo, as opções de que as pessoas não adictas ao regime e com vocação para conseguir ser deixadas sossegadas eram poucas. Como eles dizem: a la fuerza ahorcan.

Daí que, neste colégio, que era de uma ordem menos rígida do que outras que se dedicavam ao mesmo mister, rezava-se -ou papagueava-se- antes de começar a aula. Cada um em pé ao lado da sua carteira-banco. Aos sábados só nos aturavam até a hora do almoço. Ao longo deste tempo nos elucidavam acerca do catecismo e uma versão seleccionada do Antigo Testamento -ler a Bíblia completa, incluído o Antigo Testamento, continuava interdito, excepto as histórias da arca de Noé; do sacrifício de Abraão, outras pelo estilo- Mesmo esta norma de comportamento sabatino tinha uma escapatória “legal”.

O catecismo era dado, sentados em cadeirinhas, no vestuário, sito na antecâmara da sala de aula. Ali havia um armário onde se guardavam os utensílios da fuga! Recordo que havia um balde de folha, um saco com serradura, vassouras, um rodo e o melhor e mais procurado umas bolas de cera, feitas com as lágrimas das velas e círios da capela, -com as quais se deviam encerar os tampos das carteiras- e uns bocados de baeta que serviam para dar lustre ao tais tampos. Estes equipamentos só davam para quatro ou cinco avessos contumazes aos ensinamentos do catecismo, e por isso nas manhãs de sábado se verificavam umas correrias para conseguir uma vaga na equipa das limpezas! Tudo menos ouvir a catequese!

A sessão iniciava-se enchendo o balde com serradura, quase até o topo, e depois ir à torneira para a molhar. Depois de bem amassada entrava-se na aula e espalhava-se a serradura num dos topos da sala de aula, justamente aquele onde estava a porta para o vestiário. As forças dividiam-se em duas tarefas: uns arredavam os blocos de carteira-banco, e espalhavam serradura molhada naquela área livre, e os outros varriam esta mixórdia para a frente. Tornar a situar a mobília onde já estava varrido e recomeçar. Até chegar ao topo oposto, onde havia uma porta de cada lado. Uma delas dava para a sala das meninas e a outra para outra sala de rapazes. Esta era a meta desejada! O jogo incluía enviar a serradura já preta por debaixo da porta dos outros, e vice-versa. Uma espécie de ténis rasteiro e sem bola, mas com pancadas na porta e gritaria desportiva. Só parava quando a freira vinha impor ordem.

Nesta altura passava-se à fase de encerar as carteira. Uns tinham as bolas de cera, com as quais riscavam o tampo, fazendo bonecos e escrevendo asneiras. Os outros vinham a seguir, armados com os panos de baeta e esfregando davam lustre. Um par de horas bem passadas.

Mas ainda tínhamos tempo de arrumar as “ferramentas “ no armário e rezar o terço, no qual nunca consegui coordenar as ladainhas, que sendo repetitivas mudam de repente. Fui sempre apanhado em falso! Como é que os outros sabiam da mudança na cantilena? Mistério!

No próxima capítulo especificarei o que anunciava no cabeçalho, e que versará sobre o terrível pecado original!

NOTA - Tenho a sensação, sensacional mesmo, de que esta história já a deixei aqui noutra, ou noutras, ocasiões. "Esculpem"

FICA PROMETIDO! Palavra de escuteiro-mirim. Ou na linguagem de Castela nas crianças: Palabrita del Niño Jesús.

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