terça-feira, 11 de junho de 2019

CRÓNICAS DO VALE - Cap. 96


CRÓNICAS DO VALE – Cap. 96

Com Rafael Ortega, e outros temas

- De facto já aqui estivemos, os dois, no princípio do nosso conhecimento. E tenho boas lembranças, tanto do local como do marisco e até da refeição que aqui nos prepararam. A única diferença é que naquele dia o Ortega, por precaução e por não me conhecer directamente -assim pensei eu- veio acompanhado por alguns moços da sua família, que se mantiveram atentos, mas sentados prudentemente afastados da nossa mesa. Expectantes, mas dando nas vistas, dada a pouca clientela que havia no local.
- Boa memória, sim senhor. E se tudo correu bem aquele dia hoje não correrá pior. Para já e dada a hora proponho que tomemos umas leves entradas, digamos uns percebes e uns camarões quase crus, e um vinho leve, fresquinho, que depois pode continuar na mesa para ajudar a passar um robalo, com sangue na guelra e olhos vivos; que eu vi na cozinha quando entrei para lavar as mãos. Pode ser?

- Óptimo. Nada a contrariar. Mas antes de entrar em coisas sérias, sem desmerecer do assunto que pretendia expor, gostaria de saber, por curiosidade mas também por interesse pessoal entre amigos, como terminou aquele problema do casamento negado pela noiva descontente. Recordo que, depois de conversas sérias entre as duas famílias, decidiram afastar o noivo até a Andaluzia, creio que referiu Málaga como lugar de afastamento, e que ali certamente seguiria outro caminho, e não tardaria em se acasalar, a gosto, com uma da mesma etnia, ou não, mas de fala andaluza, que não é exactamente igual à de Castela, apesar de serem da mesma família linguística.

- E assim se fez. Para mal, ou bem, dos meus pecados. Para aliviar o ambiente, quando nos reunimos os representantes das duas famílias acertou-se em viajar uma comitiva bastante representativa, onde se inscreveram, massivamente, as raparigas mais novas. Mas também jovens e adultos. Aquilo parecia uma romaria à Virgem do Rocio, mas exclusiva de familiares dos Ortega, e anexos. Foi uma festa, os malaguenhos se prontificaram a nos dar um espectáculo equivalente, ou quase, ao de um casamento. E se todos se divertiram, os nossos jovens abriram os olhos como pratos de sopa, e absorveram todas as novidades que já estavam fixas entre aqueles parentes calés, mais concretamente espanhóis.

E na viagem de regresso é que se apreciaram os efeitos. Que ultrapassaram bastante ao do tema de um casamento não aceite pela noiva. A influência foi muito mais profundo e rápida. Na época em que nos encontramos, nós que já somos vistos como velhos jarreta. Tudo muda a uma velocidade equivalente à dois novos modelos de telemóveis, que quase já não se usam para falar entre familiares e amigos. Só lhes falta, por enquanto, poder estrelar ovos sobre o seu ecrã. Por isso não me admiro do facto de que o amigo Maragato, e outros da cidadania não calé, verifiquem que ao roupa preta, as barbas cerradas e os chapéus de vampiro, estão desaparecendo. Pelo que me contam os sabedores, nem os decretos dos séculos XVII a XIX conseguiram uma mudança tão notória na nossa imagem pública como a que está em andamento agora. E, sabe? Tudo isso é efeito da educação geral, da inclusão e adaptação à escola oficial. Já temos gente nas universidades, e entre eles uma percentagem notável de raparigas. Muita coisa está a mudar, também entre os calés.

- Não sei se lhe vou dar os parabéns ou os “sentimentos”, mas, de facto, não é só no seio da sociedade dos paios que as mudanças ocorrem. Imaginamos que tendemos a igualar. Mas com a minha idade desconfio que esta igualdade será, como sempre foi, parecida a dos dedos das mãos, são igualmente nomeados como dedos, mas se existe um grupo de quatro mais parecidos entre si, apesar de terem tamanhos diferentes, o quinto dedo, o oposto, é notavelmente diferente. Vistos os homens, e mulheres, em grupo, mantemos em acordo com aquela máxima que alerta: Todos somos iguais, mas uns mais iguais do que outros.
E agora lhe queria dar a palavra para que me esclarecesse o porquê o Ortega sentia que queria falar comigo.

- A sua gentileza em me dar uma entrada de tipo pessoal ao meu discurso foi bem recebida por mim. E até me está a causar um certo retraimento em relação ao assunto que me mantinha em alerta.

Não é credível que nenhum dos que se viram mais ou menos afectados com aquela inesperada “partida” que lhe fizeram, usando os seus terrenos como se fosse um vazadouro clandestino de cadáveres não propriamente mortos mas sim matados.

Alguns dos meus companheiros que colaboraram na vigilância daquela sede da maldade e da sem vergonha, ainda mantiveram o hábito, mesmo que esporádico, de irem dar uma volta por aquela zona, e espreitar o que estava acontecendo depois de uns meses de aparente abandono. E do que viram, perguntaram e ouviram se fez uma nova visão de renascença para aquele casarão. Até agora não consegui organizar de uma forma evidente as diferentes observações que me foram apresentadas. Mas conhecendo como as pessoas são e como se comportam, especialmente sobre o pouco que se muda quando se apanha um vício, não me induz a que se possa antever nada de bom, e muito menos limpo, da evolução que ali se está a preparar.

Primeiro pensei que não era plausível que no futuro se avançasse com as mesmas, ou parecidas, actividades que levaram ao seu encerramento. Tentei imaginar que tivesse sido comprada, a propriedade, por alguma igreja baptista, onde muitos ciganos estão inclusos como fiéis. Sebe que nós, os desta etnia, apesar de pragmáticos e pouco patriotas, ou ligados à sociedade onde nos radicamos, sentimos a necessidade de nos apoiar num credo, quanto mais extravagante melhor.

Mas o que me contaram da divisão do edifício em três blocos totalmente independentes. Sendo um deles o das caves, ou subterrâneo, embora que muito modificado e com pé direito normal e fachada aberta nas traseiras, com instalações sanitárias e ventilação, além de alguma iluminação natural, especialmente pelas traseiras, senti que, mesmo com diferenças notórias, ali também se deveriam albergar pessoas e não somente grades de cerveja e caixas de bebidas espirituosas. Ou as agora desmanteladas salas de castigo e tortura que lhe deram fama.

Por tudo isso e desconhecendo o que virá a seguir, queria alertar o Doutor sobre a reencarnação daquele edifício, de má memória.

- Desculpe amigo Ortega. Tenho que atender uma chamada da minha mulher.

- Estou, o que me traz de novo a querida esposa Isabel?

- Pois que estive esperando que me chamasses, e nada! Já te esqueceste de que existo. E como não te localizei já estou almoçando com as duas encarregadas das lojas. E tu, por onde andas?

- E comigo sucede que encaminhei-me para Aveiro e, inesperadamente, me dei de caras com o Amigo Ortega, que está ao meu lado. Se o visses não o conhecerias. Está com outro look totalmente diferente. Só lhe falta cortar mais um bocado a cabeleira e pintar o cabelo de ruivo ou loiro. Então é que ninguém o identificaria. Até diria que está mais magro, mais elegante. Tinha vontade de o ver, especialmente para saber como evoluiu aquele casamento desfeito. E o Ortega também me disse que estava pensando em me chamar, para contar algumas bisbilhotices. Já te darei pormenores em casa.

Mas pensas continuar até Aveiro e nos encontrarmos na Veneza portuguesa, ou vais direita para o Vale?

- Quase que preferia passar o serão contigo, mas em Aveiro. Procura onde nos acoitar e depois diz-me. Eu tenho previsto estar atarefada até as 19/20 horas, de forma que tens muito tempo livre. Ah! Eu e se calhar tu tampouco, vim precavida com uma bolsa com roupa para o dia seguinte. Claro que havendo lojas abertas e cartão de débito/crédito, tudo isso se resolve facilmente. Uma beijoca, querido. JUÍZO!!
- Desculpe Ortega, mas isto de trazer uma trela, mesmo que nos aqueça os pés na cama, também traz algumas obrigações. Mas, tudo bem. Vamos ao robalo que já está a chegar! E com bom aspecto! BOM APETITE !

No próximo capítulo teremos o reencontro. Falar-se-á com os filhos do José e outras banalidade.

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