domingo, 2 de junho de 2019

CRÓNICAS DO VALE - Cap. 90



Um encontro conspiratório ?

Já na terça feira

- Bom dia Dr. Cardoso, parece que chegamos ambos na hora marcada. Estamos de parabéns, coisa rara no nosso meio, onde o hábito é chegar sempre com atraso. Dizem que n ão nos respeitamos se comparecermos na hora marcada! Coisas de burrice congénita e de falta de respeito perante os outros. Mas vejo que está bem disposto, embora com o semblante sério. Aconteceu algum contratempo? Uma doença, acidente. Ou coisa semelhante? Espero que não.

- Nada de especial. Simplesmente andei a meditar sobre o assunto que nos incitou a nos juntar e, quantas mais voltas lhe dou, continuo a não ver as coisas claras. Antes pelo contrário. Possivelmente uma segunda feira não é a altura propícia para tentar abrir gavetas, mas alguma coisa podia ter transpirado sem eu ligar. De facto são vários os dossiers que tenho na minha mesa, e cada um deles com um carimbo de urgente, mesmo aqueles, que são a maioria, que tratam de assuntos de lana caprina, mas que fazem perder tempo. Não podemos negar que sempre foi difícil por a trabalhar as engrenagens da rotina numa segunda feira, depois de um sábado e domingo descansados.

Seja como for e aceitando que podemos estar enganados, de estar “sonhando com ladrões”. Eu dei corda aos sapatos do pessoal que temos em campo para que procurassem, em primeiro lugar, quem estava de facto por trás da compra daquela propriedade “assombrada” ou mal afamada por sucessos recentes que causaram alarme. Nada, até o momento nada.

E mesmo assim receio que por trás da empresa fantasma, a tal sediada num ilha, ou numa simples caixa postal, multi-usos, e atendida por um sujeito sentado numa secretária, num escritório diminuto dos muitos que dizem existir nestas paragens do Caribe, e que só se encarregam de receber e reenviar mensagens e documentos. Desconfio que por trás do pano estará um, ou até mais do que um, dos passarões que os nossos serviços identificaram em consequência da leviandade com que os esbirros, em quem confiaram. Uns e outros foram excessivamente incautos.

Não sou de apostas. Mas desta feita recordo uma história que se contava entre estudantes acerca dos despiques dos pais, sentados nas mesas do café da terra, o dos senhores. Ali, entre cafés, charutos e copos de brandy espanhol, cada um deles queria alardear dos conhecimentos que o seu respectivo filho já tinha alcançado na faculdade. Aquele dia no meio do grupo de paternidades se encontrava um dos filhos ”estudantes”, devidamente mascarado com capa e batina. O pai, tentava ver sinais de apoio vindos do seu herdeiro, mas este permanecia mudo, quedo, estático; até que a conversa foi parar para a gulodice. Qual dos filhos seria capaz de comer, de uma assentada, duas dúzias ou mais de pastéis de nata? O estudante presente chegou-se ao ouvido do pai e lhe disse: Pai, aposte em mim, e alto! Pois garanto que nesta ganha!

Pois eu apostaria em que, por enquanto, o negócio que devem ter em olho para aquele local deve estar entre elementos do tal grupo. O que não impediria que, tal como o Maragato alvitrou, depois não se juntem a forasteiros, possivelmente americanos, com risco de estarem ligados a alguma das máfias do jogo e da droga. E eu, como português ainda patriota, não me agrada esta possibilidade. Mesmo que aceite o facto de estamos longe de garantir que aquela montagem especulativa possa ser concretizada.

E mais digo, antes de lhe dar a palavra, sei, documentalmente, que na organização daquelas festanças, que deram em torturas e até mortes, havia elementos graúdos do clero. Eles bem avisam com aquilo de que “a carne é fraca...”, uma desculpa que lhes serve como um anel de casamento, mesmo com voto de celibato. Pois bem, apesar de me ter avisado de que aquela montagem mental que nos ofereceu não tinha uns alicerces onde se apoiar, eu senti que a estrutura imaginada estava longe de ser absurda.

Acrescento o facto de que, apesar de estar na lista dos católicos, eu não sou crente, e muito menos cego perante as faltas de carácter social e económico que a estrutura eclesiástica cometeu, comete e cometerá. Mas, apesar de todo isto, e respeitando a ignorância em que está a nossa população, especialmente as camadas mais incultas, -e os cultos seguem na procissão por interesse, seja terrena ou imaginando para uma eternidade beatífica-. Pois, apesar de todas as minhas reticências, não me agradaria que este nosso pesadelo -pois que ultrapassa o ser um sonho- se convertesse em realidade, sem que se respeitasse a tradição do nosso povo.

Pondo as coisas de um modo mais explícito. Pensei em pedir uma audiência, não oficial, ao Bispo do Porto, na qual me agradaria que me acompanhasse, para lhe expor o perigo de que um credo com base fora de Portugal, tomasse conta de uma capela mortuária, caso os nossos temores se fundamentassem. Seria uma jogada de antecipação, pois se as coisas seguissem aquele rumo que imaginamos, mais tarde ou mais cedo, ele seria informado. Mas em “segredo de confissão”, ou seja, confidencialmente. Se nós nos adiantássemos já teriam que modular as coisas de forma a serem mais aceitáveis.

Termino com o esquema, atrevido, que eu penso apresentar ao Bispo como ente responsável neste domínio. Sugerir que na previsão de ali se instalar um aparente centro de repouso para geriatas, mas que de facto seria uma porta camuflada para o dia em que a morte assistida estivesse legalizada, a “nossa igreja católica” devia promover, quase que exigir, que o local onde se realizassem as exéquias, digamos a capela mortuária, estivesse aberta a ser usada por qualquer credo, sem excepção. Ou seja, não ser exclusivo do catolicismo. Claro que não antevemos que se autorizassem, por enquanto, cremações públicas nas margens do Mondego, do Vouga, do Minho ou Tejo, como um Benarés europeu.

Como o amigo José Maragato ouviu, eu fermentei na sua exposição. E gostaria de conhecer os seus comentários.

- Pois eu, depois de o ouvir atentamente, tenho medo de mim mesmo, ou de nós. O mais certo é que estejamos colocando a carroça à frente dos bois, mas também podemos acreditar no que é comum nos negócios: O que bate primeiro bate duas vezes. E mesmo que o negócio previsto não passe de um delírio meu, uma especulação sem bases reais, não deixam de existir precedentes na Europa, e a tal funerária que, sem conhecimentos concretos, referi, só por aquilo de emprenhar de ouvido, poderia ser uma testa de ponte.

Pela minha parte estou aguardando notícias tanto das pesquisas em cartórios como em empreiteiros e até gentes de trabalho. Creio que o mais tardar na quinta-feira terei algumas respostas. Entretanto, caso a entrevista com o Sr. Bispo, Dom “Não recordo o nome”, se concretizar terei todo o prazer, também como não crente (é possível que “ele” também não seja crente convicto. Coisas mais estranhas se tem visto, ou inesperadas, porque de bizarrices...está o mundo cheio) em o poder acompanhar, e ajudar se ficasse atrapalhado, pois para inventar eu sou um alho.


No próximo capítulo terei que referir em que pé ficou a Isabel com os técnicos do projecto de estufa.


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