segunda-feira, 10 de junho de 2019

CRÓNICAS DO VALE - Cap. 95


CRÓNICAS DO VALE – Cap 95

Gostaria que este seja um dia normal

Hoje acordei apático, sem energia. Falta-me alguma coisa. Tenho que recuperar o meu anterior ritmo de vida. Estou a descurar os meus assuntos e perdendo tempo em coisas que não me podem levar a lado nenhum. Sei, reconheço, que tudo começou com a descoberta de um morto, inicialmente desconhecido, perto dos limites do terreno da Casa do Vale do Pito, quando, por minha decisão, se estava a proceder à limpeza e desmatagem do pinhal e da mata, onde proliferam diferentes espécies arbustivas e arbóreas. Adiantei-me às normas de cumprimento obrigatório. Publicadas sem se alertarem nem precaverem acerca do que fazer quando se verificasse que estas ordens, para muitos proprietários, normalmente descapitalizados, sem equipamentos adequados, e nem força física disponíveis, seriam de difícil ou mesmo impossível cumprimento.

Já estamos habituados a que -agora numa fingida democracia, mas tão musculada como na ditadura-, se aplica o receituário: Quem manda, manda, e depois logo se verá. Mas, como dizia um meu amigo, já falecido, numa frase que mantinha na ponta da língua: Esta lebre já está corrida! O que equivale a dizer que não se pensa mais nisso, pois não tardará em que soltem outra atoarda. E, entretanto, aplica-se a receita antiga: Entre mortos e feridos, algum escapará. Normalmente são mais os que escapam, por entre os pingos da chuva, como diz a malta, do que os mortos e feridos de gravidade.

Recuando umas horas. Poucas. Acordei mais tarde do que o habitual. A Isabel já estava pronta e a sair do quarto, mas viu-me com os olhos abertos e disse, peremptoriamente, ou seja sem dar azo a um contraditório ou alguma variante.

- Tal como falamos ontem, depois de jantar, hoje tenho que dedicar o dia, sem falta, a tratar dos meus negócios, e se calhar prolongarei amanhã. Quero ter o dia livre, mas nada será segredo. Se à hora de almoço eu não me tiver comprometido com alguma chefe de loja, que é muito provável, ligarei para combinar almoçarmos os dois. Mas não apostes nisso. Faz de contra que tens uns dias de férias quanto a casamento. Mas espero que tenhas algum juízo! Não todo, por saber que te é difícil. Quase impossível em ti.

Mas procura agir com tacto e medida, tanto na política como na questão de mulheres. Sei que ainda ter sentes com muito sangue na guelra, um galote, mas se olhares para o teu Cartão de Cidadão e leres a data do teu nascimento, podes imaginar o modo como as tuas pretensas conquistas te calibram. Deve ser bastante triste, desmoralizador mesmo, descobrir que se é o cabrito, ou a balzaquiana, a esmifrar.

Já te darei notícias. E tu telefona de vez em quando, sem medo de estares a interromper. Quero ouvir a tua voz sem ser eu a ligar. Percebes, Zé Maragato?
.....
Depois de uma tirada destas, “sem respirar”, sem me deixar uma dica onde me pendurar, saiu pela porta fora, e eu fiquei “sozinho e abandonado”, como um “orfe” de pai e mãe! E mesmo depois do banho matinal, do rapar a barba, escolher a roupa, vestir-me e descer para o mata-bicho, não estava melhor. Comendo qualquer coisa, mesmo sem grande apetite -pois habituei-me a estar sempre acompanhado. Vou tentar organizar o meu dia “livre”.

Prontos”!! meto-me no carro e vou para Aveiro, sem procurar a Isabel e desviar-me dos seus estabelecimentos de “embelezamento”.
..

Mas aquele turista não será o Ortega, mascarado? O Carnaval já passou, assim como também passou a época das máscaras processionais. Vou dar uma apitadela para que este desconhecido se vire. E é mesmo o Rafael Ortega!

- Senhor Ortega!!. Quem o vê e quem o viu não o reconheceria. Eu, pelo menos, fiquei indeciso por lhe faltar o chapéu preto ou o Panamá de palha de verão, mas o andar em camisa, e colorida, com calças de linho brancas, calçado com sandálias modernas... todo este conjunto é um visual totalmente novo, pelo menos para mim. Está muito apressado ou pode subir no meu carro e irmos para um local sossegado onde poder dar à língua e depois, ali ou noutro sitio que me recomende, poder convidar este Amigo para um almoço tranquilo?
- Com certeza, Doutor Maragato, terei sempre tempo, curto ou longo consoante as coisas evoluírem na conversa, para estar consigo. Pode não acreditar, mas neste mesmo instante estava pensando em si. E não sei dizer porque razão, estava preocupado com o Amigo. Deve ser aquilo que dizem de transmissão de pensamento. Siga em frente, em direcção à ria e já lhe irei dando orientação para onde nos sentar. Possivelmente já lá teremos estado meses atrás, se não foi bem mais de um ano. Pois o tempo corre como um foguete dos busca-pés.

Pois. De facto, como diz e usando as palavras das minhas filhas, netas, sobrinhas e afilhadas, que constituem um regimento de comandos muito aguerrido, fui forçado a me modernizar. Elas decidiram, sem possibilidade de as demover, de se vestir e comportar exactamente como as suas, delas, colegas e amigas não ciganas. E em seguimento, rejeitaram que as suas famílias, ou seja nós os velhos caretas, continuássemos a vestir de preto, e as mulheres de idade, algumas mesmo jovens de facto mas lutuosas, largarem as saias compridas, as cores escuras, que as envergonham.

Chegamos e aqui tem um bom lugar à sombra para deixar o carro.


No próximo capítulo, se estivermos vivos, é possível que o Ortega nos diga das suas preocupações.

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