CRÓNICAS
DO VALE – Cap 95
Gostaria
que este seja um dia normal
Hoje
acordei apático, sem energia. Falta-me alguma coisa. Tenho que
recuperar o meu anterior ritmo de vida. Estou a descurar os meus
assuntos e perdendo tempo em coisas que não me podem levar a lado
nenhum. Sei, reconheço, que tudo começou com a descoberta de um
morto, inicialmente desconhecido, perto dos limites do terreno da
Casa do Vale do Pito, quando, por minha decisão, se estava a
proceder à limpeza e desmatagem do pinhal e da mata, onde proliferam
diferentes espécies arbustivas e arbóreas. Adiantei-me às normas
de cumprimento obrigatório. Publicadas sem se alertarem nem
precaverem acerca do que fazer quando se verificasse que estas
ordens, para muitos proprietários, normalmente descapitalizados,
sem equipamentos adequados, e nem força física disponíveis, seriam
de difícil ou mesmo impossível cumprimento.
Já
estamos habituados a que -agora numa fingida democracia, mas tão
musculada como na ditadura-, se aplica o receituário: Quem
manda, manda, e depois logo se verá. Mas, como dizia um meu amigo,
já falecido, numa frase que mantinha na ponta da língua: Esta
lebre já está corrida! O que equivale a dizer que não se pensa
mais nisso, pois não tardará em que soltem outra atoarda. E,
entretanto, aplica-se a receita antiga: Entre mortos e feridos, algum escapará. Normalmente são mais os que escapam, por
entre os pingos da chuva, como diz a malta, do que os mortos e
feridos de gravidade.
Recuando
umas horas. Poucas. Acordei mais tarde do que o habitual. A Isabel já
estava pronta e a sair do quarto, mas viu-me com os olhos abertos e
disse, peremptoriamente, ou seja sem dar azo a um contraditório ou
alguma variante.
- Tal
como falamos ontem, depois de jantar, hoje tenho que dedicar o dia,
sem falta, a tratar dos meus negócios, e se calhar prolongarei
amanhã. Quero ter o dia livre, mas nada será segredo. Se à hora
de almoço eu não me tiver comprometido com alguma chefe de loja,
que é muito provável, ligarei para combinar almoçarmos os dois.
Mas não apostes nisso. Faz de contra que tens uns dias de férias
quanto a casamento. Mas
espero que tenhas algum juízo! Não todo, por saber que te é
difícil. Quase impossível em ti.
Mas
procura agir com tacto e medida, tanto na política como na questão
de mulheres. Sei que ainda ter sentes com muito sangue na guelra, um
galote, mas se olhares para o teu Cartão de Cidadão e leres a data
do teu nascimento, podes imaginar o modo como as tuas pretensas
conquistas te calibram. Deve
ser bastante triste, desmoralizador mesmo, descobrir que se é o
cabrito, ou a balzaquiana, a esmifrar.
Já
te darei notícias. E tu telefona de vez em quando, sem medo de
estares a interromper. Quero ouvir a tua voz sem ser eu a ligar.
Percebes, Zé Maragato?
.....
Depois
de uma tirada destas, “sem respirar”, sem me deixar uma dica onde
me pendurar, saiu pela porta fora, e eu fiquei “sozinho e
abandonado”, como um “orfe” de pai e mãe! E mesmo depois do
banho matinal, do rapar a barba, escolher a roupa, vestir-me e descer
para o mata-bicho, não estava melhor. Comendo qualquer coisa, mesmo
sem grande apetite -pois habituei-me a estar sempre acompanhado. Vou
tentar organizar o meu dia “livre”.
“Prontos”!!
meto-me no carro e vou para Aveiro, sem procurar a Isabel e
desviar-me dos seus estabelecimentos de “embelezamento”.
…..
Mas
aquele turista não será o Ortega, mascarado? O Carnaval já passou,
assim como também passou a época das máscaras processionais. Vou
dar uma apitadela para que este desconhecido se vire. E é mesmo o
Rafael Ortega!
-
Senhor Ortega!!. Quem o vê e quem o viu não o reconheceria. Eu, pelo
menos, fiquei indeciso por lhe faltar o chapéu preto ou o Panamá de
palha de verão, mas o andar em camisa, e colorida, com calças de
linho brancas, calçado com sandálias modernas... todo este conjunto
é um visual totalmente novo, pelo menos para mim. Está muito
apressado ou pode subir no meu carro e irmos para um local sossegado
onde poder dar à língua e depois, ali ou noutro sitio que me
recomende, poder convidar este Amigo para um almoço tranquilo?
-
Com certeza, Doutor Maragato, terei sempre tempo, curto ou longo
consoante as coisas evoluírem na conversa, para estar consigo. Pode
não acreditar, mas neste mesmo instante estava pensando em si. E
não sei dizer porque razão, estava preocupado com o Amigo. Deve ser
aquilo que dizem de transmissão de pensamento. Siga em frente, em
direcção à ria e já lhe irei dando orientação para onde nos
sentar. Possivelmente já lá teremos estado meses atrás, se não
foi bem mais de um ano. Pois o tempo corre como um foguete dos
busca-pés.
Pois.
De facto, como diz e usando as palavras das minhas filhas, netas,
sobrinhas e afilhadas, que constituem um regimento de comandos muito
aguerrido, fui forçado a me modernizar. Elas decidiram, sem
possibilidade de as demover, de se vestir e comportar exactamente
como as suas, delas, colegas e amigas não ciganas. E em seguimento,
rejeitaram que as suas famílias, ou seja nós os velhos caretas, continuássemos a vestir de preto, e as mulheres de idade, algumas
mesmo jovens de facto mas lutuosas, largarem as saias compridas, as
cores escuras, que as envergonham.
Chegamos
e aqui tem um bom lugar à sombra para deixar o carro.
No
próximo capítulo, se estivermos vivos, é possível que o Ortega
nos diga das suas preocupações.
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