quarta-feira, 5 de junho de 2019

CRÓNICAS DO VALE - Cap. 92




Toxim !?

- Dr. Cardoso? Sou o José Maragato. Não carrapato!, Maragato! As carrapatas são o mesmo que as carraças: um sinónimo. E o facto de que a Isabel me diga que sou uma carraça, porque quando me agarro a alguém só largo após medidas drásticas não me obriga a aceitar esta feia calúnia. E a segunda pergunta, é se o momento é adequado, ou prefere mais tarde? É que, se recorda, eu prometi que hoje entraria em contacto consigo para relatar se soubera de algum pormenor concreto. E sabe, como que as promessas são de vidro, e é por isso mesmo que tantas são quebradas... temos que as atender com cuidado.

  • Eu fiquei desorientado quando ouvi a sua entrada em linha. Parecia a personagem de um falso pastor a falar por um telelé, num anúncio já antigo e gasto. Depois entendi que estava bem disposto, se bem que não pude averiguar qual ou quais os motivos que o induziram a descontrair. Respondendo à sua pergunta. Neste momento estou envolvido numa série de assuntos que carecem da minha atenção plena. “Portantos”, -entrando levemente na sua brincadeira- proponho que seja preferível conversar depois das dez da noite, com calma e sossego. Tá-bein?
  • Ouvido e entendido. Corto!
....

já depois de cear.

- Zé deixa-me ser eu a ligar, porque quero ter uma fala com a Diana, com quem fiquei em lhe descrever como correu a reunião com os meus assessores na estufatite.

Diana? Ainda bem que foi a amiga que atendeu, pois se tivesse entrado o José, nem no dia do São João Nepomuceno poderíamos ter o aparelho disponível. Como vai? Animada espero eu. Queria dar uma breve notícia acerca da reunião de fecho, total ou parcial, da colaboração destes profissionais. Eu é que tive o principal papel. O marido Maragato esteve presente, mas ficou sempre atento, com os olhos muito abertos como uma coruja, mas sem largar um pio. A não ser quando dos apertos de mão à porta de saída.

São dois jovens educados e eu expus a convicção de os ter induzido a um projecto que excedia a possível realidade. E era a pura, purinha, purreira, verdade!

Saíram sorridentes, mas com as caras um pouco caídas, por se encontrar num desaire. Mas aceitaram as minhas justificações e, de facto, não tenho motivos de queixa deste duo em início de carreira. Mesmo assim ficamos em que me ajudariam a seleccionar os materiais já adquiridos ou encomendados e adaptar o que for mais correcto à minha actual vontade, mas que até ontem,  era excessivamente indefinida. Para a semana virão com algumas contas e já refeitos da banhada. Assim espero. E quanto a si? Os seus pimpolhos estavam bem dispostos? Portaram-se bem em casa dos avós?

Falei só com a minha mãe, a avó portanto, pois o meu pai teve que comparecer a uma reunião do claustro da faculdade, onde é lente desde quase duas décadas. Já vai para decano! Mas os nossos descendentes são muito “concertadinhos” como dizem na terra da minha mãe. E ela tem-lhes um amor de Perdigão Queiroga. Só lhes dá mimo atrás de mimo e eles, como a Isabel pode imaginar, fazem dela o que querem. Mas ainda não partiram vidros nem jarrões, que eu saiba... pelo menos nenhum acusou o outro. São uma dupla de romance juvenil.

Tenho que largar o aparelho, pois o Sílvio já está nervoso esperando entrar. Até salta sobre um pé e no outro. Já lhe indiquei que devia ir fazer um xixi. Nestas coisas os homens não tem emenda. E depois criticam-nos por irmos aos pares, se não em trios, para a casa de banho que nos é reservada!

- Maragato? E depois queixam-se de que lhes atribuímos a má fama de serem muito faladoras. Desmerecida? Então conseguiu saber algumas coisas que nos coloquem os pesadelos na real? Do meu lado quase nada. Nem sequer da Sé tive resposta ao meu pedido. Disseram que o Sr. Bispo está muito ocupado com uma reunião de emergência, em Fátima, condicionada por uma carta vinda de Roma, mais concretamente escrita pelo Papa Francisco. Pelo que não me disseram, mas insinuaram, ali se espera que se verifique uma refrega de antologia, entre os progressistas e os mais irredutíveis conservadores. Para já estes jogam no seu campo. Daí que se erguesse um silêncio sepulcral nos contactos com os fiéis, especialmente os não comprometidos. Suponho que jesuítas e franciscanos vigiam de perto aos do OPUS DEI.

E o Amigo conseguiu abrir brecha na muralha de silêncio?

Sim e não. Mas o suficiente para meter o nariz e ligar dicas de uns e outros, pois já sabe que as opiniões de terceiros -tal como nós construímos a nossa- tendem a magnificar o que sabem. Temos que juntar as metades de cada um e ver como se encaixam. E a conclusão, que não posso garantir estar certa, daquilo que me contaram é que se não acertamos na mosca, pelo menos os nossos tiros entraram no alvo. Ao lado, mas perto. Mas Cardoso, nos falta conhecer muitos capítulos. Para já o pessoal que está na obra, e são algumas dezenas, de várias especialidades, e cada um só pode ver um interlocutor, tem um horizonte propositadamente reduzido. A empreitada está dada a uma empresa de consultoria que deve ser tão fantasma, ou indefinida, como muitas das que existem no papel. Alguns conseguiram ver visitas de “patrões” mas não de fiscais. Mas estes quase extraterrestres nunca dirigiram palavra directamente a operários ou chefes de equipa. É assim que funciona.

Mesmo assim, como eu já tinha um relacionamento anterior com algum do pessoal intermédio, parece que o interior do edifício está a ser totalmente remodelado; sem quase se aproveitar nada do anteriormente existente. Pela descrição que me foi dada, se bem que não pude consultar plantas nem alçados, aquilo se pretende que funcione como duas unidades bem diferenciadas e sem corredores ou portas de ligação. Tal como acontece nos navios de cruzeiro, onde o mundo do pessoal é muito diferente daquilo que vão ver e usar os passageiros.

Por eu ter andado por aí e entrado em muitos lugares pouco recomendados, pelo menos para casais legalmente estabelecidos, fiz uma ideia do que se está a preparar. Mas, cautela! Não aposto desta vez. Na semana passada foi pura invenção, baseados na experiência concreta dos acontecimentos de que, indirectamente fui vítima no Vale. Levei com um murro nos queixos,  por sorte figuradamente, que me custou muito a suportar. E que ainda surge nos meus sonhos, ou melhor dizendo, pesadelos.

- Oh José! Diga-me mais alguma coisa. Pois fico com a impressão de que está a fazer caixinha. Que guarda o melhor para si. E isto não está certo! Será que lhe tenho que mandar uma contra-fé para que apresente na judiciária a fim de prestar declarações? Ah Ah Ah! 

-Tenha paciência e espere a que possamos falar sossegadamente e sem testemunhas, nomeadamente das esposas, porque aquilo que me parece estar por trás da obra, coincide com o espírito sexual da fase anterior. Mas desta feita modulado mais discretamente, e em conformidade com os hábitos já criados na nossa sociedade, que com o accesso aos conteúdos da internet já sabe coisas de mais, e querem experimentar aquilo que nas suas casas não se atrevem a ter. Os homens, já deve saber, desconhecem muito do que se bule nas cabeças das suas esposas. Em geral sabem muito mais, mas mesmo muito mais, do que aquilo que os seus pretensos malandrecos de maridos imaginam.

Por vezes, mas raramente para meu gosto e curiosidade, a Isabel conta algumas das conversas hiper-picantes que se ouvem nos seus salões. Felizmente a maior parte das esposas mantém estas aventuras ao nível de fantasia mental; Mas, de vez em quando, alguma salta para fora da carroça e o caldo entorna-se. O melhor que um marido pode fazer é manter estes temas bastante longe; só no nível da insinuação, sem confirmar. Vade retro, Satanás.

Quando souber da possibilidade de nos encontrar, mesmo que sem ser em refeição, ou sim, dé uma apitadela, e lá nos juntaremos.

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