VIRÃO INQUIRIDORES COM TOGA ?
Pensei
que esta frase, desafiante, já tinha passado á história.Tal como
os auroques que os primitivos gravaram nas encostas de Foz Côa.
Claramente
um erro de avaliação, pois mesmo que já não nos apareçam aqueles
emproados que exigiam ser tratados com extrema deferência, esticando
o pescoço como galos prontos a bicar e que foram caricaturados por
Ramalho Ortigão e seus contemporâneos, sucede que mudaram de fato,
de roupagem, mas no fundo continuam tão emproados como outrora.
O
que acontece, e na tranquilidade dos dias não avaliamos, é que a
sociedade continua a estar organizada por patamares, mais ou menos
estanques, reservados, onde aqueles que se acoitam num determinado
estatuto já se consideram, quase que por designio divino,
merecedores de usufruir de umas regalias especiais, que incluem
tratamentos sociais específicos.
A
evolução da sociedade, começando pela universalidade do ensino, e
consequente desaparição do analfabetismo total (substituído
pelo analfabetismo funcional) exceptuando alguns cidadãos mais
idosos, e avaliando a influência que tanto a televisão como a
internet tem tido no comportamento das pessoas, temos que reconhecer
que a uniformização não fica restrita a pequenos detalhes. Não só
a totalidade dos cidadãos já anda calçada e vestida, sem ser com
farrapos, como também se sentem integrados num mundo de cariz
democrático e, em consequência, aparentemente igualitário. Podem
parecer pequenas conquista, mudanças de fachada, mas em verdade
muita coisa mudou. Mas não tudo!
Habitualmente
não se dá muita importância à máxima de que somos todos
iguais, mas uns são mais iguais de que outros. A
mensagem é tão clara que consegue ser indigesta, pois contraria o
mais elementar princípio de direitos dos cidadãos em geral. E quem
acredita na igualdade? Se nos tempos de Eça eram habituais os
tratamentos, sempre respeitosos -com
o chapéu ou o barrete na mão-
ao Senhor Conde, Visconde, Morgado, Doutor, Juíz, Bispo, Coronel,
etc., o que hoje ouvimos é equivalente, pois de Doutores e
Engenheiros está a rua cheia.
O
curioso e aparentemente desvalorizado é que alguns núcleos de tipo
corporativo conseguiram manter ou adquirir de fresco um estatuto de
impunidade e de não aceitar críticas, sob pena de reagirem exigindo
sanções. Parece que não se pode consentir que se apontem erros ou
pareceres pessoais que sejam vistos como não aceitáveis pela
cidadania. A noção de que as leis em vigor devem corresponder à
aceitação tácita da população pensante e minimamente culta, em
sempre se verifica.
Saíram
à tona aspectos e reacções que nem sequer nos séculos da
monarquia absolutista eram aceitáveis. Se as críticas que se
consentiam aos bobos da corte, e aos artistas que representavam autos
sacramentais com alusões de denúncia, reclamação ou sexualmente
atrevidas, mas em geral bem explícitas, sofressem os castigos que
seriam equivalentes aos que se sugerem hoje, nem Gil Vicente
escaparia a ir praticar remo nas galés.
No
século XIX, ainda com a monarquia parlamentar, o modo como se
criticava e satirizava, caricaturalmente e em textos de denúncia
explícita, o monarca, os ministros, o clero e todos os que tinham
poder, era muito mais agudo do que hoje. Bordalo Pinheiro nos deixou
publicações que elucidam bem a existência de uma oposição ao
regime, mesmo que se soubesse que só era conhecida por uma fracção
muito restrita da população.
Também
podemos referir, e recordar os que viveram no período da ditadura
Salazarista, que permitiam-se comentários com críticas ao governo e
entidades oficiais, mal disfarçadas, nas peças teatrais do nível
de “revistas”, em especial no dia da estreia ou ante-estreia,
piis que na segunda representação já a tesoura tinha dado alguns
cortes. Mesmo assim muita crítica se deixava seguir, para que os
espectadores pudessem rir-se e aplaudir atrevimentos que só ali se consentiram. Uma válvula de escape, com efeitos limitados, mas que
sempre se disseminava.
Nesta
época, que se diz corresponder a um retorno para a direita mais
ferrenha, teme-se que se inicie uma “caça às bruxas” entre os
humoristas atrevidos e desrespeitosos. Oxalá não se cumpram estes
maus prenúncios.
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