quarta-feira, 6 de março de 2019

SABE COM QUEM ESTÁ A FALAR ?


VIRÃO INQUIRIDORES COM TOGA ?

Pensei que esta frase, desafiante, já tinha passado á história.Tal como os auroques que os primitivos gravaram nas encostas de Foz Côa.

Claramente um erro de avaliação, pois mesmo que já não nos apareçam aqueles emproados que exigiam ser tratados com extrema deferência, esticando o pescoço como galos prontos a bicar e que foram caricaturados por Ramalho Ortigão e seus contemporâneos, sucede que mudaram de fato, de roupagem, mas no fundo continuam tão emproados como outrora.

O que acontece, e na tranquilidade dos dias não avaliamos, é que a sociedade continua a estar organizada por patamares, mais ou menos estanques, reservados, onde aqueles que se acoitam num determinado estatuto já se consideram, quase que por designio divino, merecedores de usufruir de umas regalias especiais, que incluem tratamentos sociais específicos.

A evolução da sociedade, começando pela universalidade do ensino, e consequente desaparição do analfabetismo total (substituído pelo analfabetismo funcional) exceptuando alguns cidadãos mais idosos, e avaliando a influência que tanto a televisão como a internet tem tido no comportamento das pessoas, temos que reconhecer que a uniformização não fica restrita a pequenos detalhes. Não só a totalidade dos cidadãos já anda calçada e vestida, sem ser com farrapos, como também se sentem integrados num mundo de cariz democrático e, em consequência, aparentemente igualitário. Podem parecer pequenas conquista, mudanças de fachada, mas em verdade muita coisa mudou. Mas não tudo!

Habitualmente não se dá muita importância à máxima de que somos todos iguais, mas uns são mais iguais de que outros. A mensagem é tão clara que consegue ser indigesta, pois contraria o mais elementar princípio de direitos dos cidadãos em geral. E quem acredita na igualdade? Se nos tempos de Eça eram habituais os tratamentos, sempre respeitosos -com o chapéu ou o barrete na mão- ao Senhor Conde, Visconde, Morgado, Doutor, Juíz, Bispo, Coronel, etc., o que hoje ouvimos é equivalente, pois de Doutores e Engenheiros está a rua cheia.

O curioso e aparentemente desvalorizado é que alguns núcleos de tipo corporativo conseguiram manter ou adquirir de fresco um estatuto de impunidade e de não aceitar críticas, sob pena de reagirem exigindo sanções. Parece que não se pode consentir que se apontem erros ou pareceres pessoais que sejam vistos como não aceitáveis pela cidadania. A noção de que as leis em vigor devem corresponder à aceitação tácita da população pensante e minimamente culta, em sempre se verifica.

Saíram à tona aspectos e reacções que nem sequer nos séculos da monarquia absolutista eram aceitáveis. Se as críticas que se consentiam aos bobos da corte, e aos artistas que representavam autos sacramentais com alusões de denúncia, reclamação ou sexualmente atrevidas, mas em geral bem explícitas, sofressem os castigos que seriam equivalentes aos que se sugerem hoje, nem Gil Vicente escaparia a ir praticar remo nas galés.

No século XIX, ainda com a monarquia parlamentar, o modo como se criticava e satirizava, caricaturalmente e em textos de denúncia explícita, o monarca, os ministros, o clero e todos os que tinham poder, era muito mais agudo do que hoje. Bordalo Pinheiro nos deixou publicações que elucidam bem a existência de uma oposição ao regime, mesmo que se soubesse que só era conhecida por uma fracção muito restrita da população.

Também podemos referir, e recordar os que viveram no período da ditadura Salazarista, que permitiam-se comentários com críticas ao governo e entidades oficiais, mal disfarçadas, nas peças teatrais do nível de “revistas”, em especial no dia da estreia ou ante-estreia, piis que na segunda representação já a tesoura tinha dado alguns cortes. Mesmo assim muita crítica se deixava seguir, para que os espectadores pudessem rir-se e aplaudir atrevimentos que só ali se consentiram. Uma válvula de escape, com efeitos limitados, mas que sempre se disseminava.

Nesta época, que se diz corresponder a um retorno para a direita mais ferrenha, teme-se que se inicie uma “caça às bruxas” entre os humoristas atrevidos e desrespeitosos. Oxalá não se cumpram estes maus prenúncios.

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