quarta-feira, 2 de maio de 2018

CRÓNICAS DO VALE - Cap. 46


- Já estamos entrando em Águeda. Foi um pequeno desvio, mas o encontro já tinha sido anunciado. Tal como te disse demorarei pouco, pois só tenho que falar com um industrial conhecido, que me mantêm ao corrente das novidades referentes a novos interessados em se instalarem aqui e nas empresas que, por diferentes mas repetidos motivos, se viram empurradas a fechar a porta e colocar todo o património -menos o que conseguiram sacar a tempo- nas mãos da justiça e daí dos leiloeiros, que, caso não saibas, não se destacam pela sua rectidão. Não me demoro.

- E agora, rumo a Mangualde. É perto. Aqui demorarei um pouco, mas chegaremos a Viseu a tempo de jantar e fazer Ó Ó, a falta de melhor? Deixo-te na zona comercial, e depois vou telefonarein para saber donde nos poderemos encontrar. Se tiveres tempo e disposição dava jeito que marcasses hotel, tal vez entre o Grão Vasco, no Palácio dos Mellos ou mesmo na Pousada Viseu, que fica no centro. Encontrarás as moradas e telefones na tua Tablet. Penso que podemos jantar no Bar Pub Viseu ou na Churrasqueira da Cidreira. Eu para jantar não aprecio churrasco, a carne é pesada para digerir; mas devem ter outros pratos.

Neste momento foste contratada para ser a minha secretária pessoal.

Chegamos, queres que saia para te abrir a porta ou serves-te directamente? É que se as coisas fiarem ao clássico terei que comprar um boné de pala. Até já, com ou sem beijinho.

- Este José por vezes não sei se está a falar a sério ou a brincar, sem chegar à tentativa de gozar, pois sabe que eu neste género de abordagens fico com o nariz torcido. E, sinceramente, não tenho vontade nenhuma de atritos por palermices. Já bastará no dia em que surjam problemas sérios. Dizem que são inevitáveis, garantidos. Mas também afirmam que sarilhos grandes, além de ser o nome de uma terra, só crescem quando os dois estão com vontade disso, e eu gosto de contar até dez. E se não chega vou aos vinte ou cinquenta, antes de virar costas e deixar o leite ao lume até entornar.

Tal como disse, as minhas compras eram poucas, mas mesmo assim já enchi duas bolsas e deixei uns euros que não estavam previstos. Vou “exigir” ser devidamente compensada, em numerário! E antes de entrar num local vou ligar ao “meu querido esposo” para saber se está já a caminho ou tenho que aguardar. São uns quinze minutos, se acreditar no que me disse. Tenho tempo de tomar uma meia de café com leite e fazer os telefonemas que me indicou.

Por vezes penso ou tento adivinhar, sem me esforçar porque é um tema penoso, acerca de quanto durará esta nossa união oficial. Na sociedade onde nos movemos proliferam as separações e mesmo divócios, sem contar com os desfechos mais violentos e fatais. Não me atrevo a por esta questão durante mais do que uns escassos segundos. A não ser assim sei que não conseguiria dormir tranquila, e muito menos fazer amor como Zé. Conheço um casal -que felizmente deixaram de estar na minha órbita-  em que a esposa, quando o marido estava numa das crises mentais que lhe afloravam com demasiada frequência, ela deitava-se na cama de casal, e dizia que dormia, com a tábua de cortar carne por cima do peito, em precaução de que ele tentasse espetar-lhe um facalhão. Acredidto no conceito de que cada caso é um caso; mas eu não imagino que aguentasse uma situação deste teor.

- Estás perto do centro? Marquei dormida na tal Pousada Viseu, que me dizem estar quase ao virar da esquina. Quanto a mim, arrumas o carro num local perto e seguro, caso nesta pousada não tenham garagem reservada. Não me lembrei de perguntar isso. Eu estarei no “ólio” ou no quarto para verter águas e retocar a fachada. A reserva está em nome do Dr. Maragato, e a menina do balcão já me informou que te conhece, como cliente mais ou menos habitual. Não lhe perguntei, porque não me interessava saber a resposta, se vinhas sempre só ou trazias companhia. Mesmo assim pedi o melhor quarto que estivesse disponível, e “com vista para o mar” ou seja, para a frente, para a cidade e não para as traseiras com estendais.

Este pequeno e insignificante pormenor já o colocarei directamente. E não te aconselho que pretendas enganar-me, pois a “piquena” das pestanas rimeladas, pálpebras multicoloridas e lábios desenhados, atreveu-se a mostrar um sorrisinho malandreco, de pretensa cumplicidade delatora, que fingi não ver. Até certo ponto sou adepta da teoria de que depois de lavado fica como novo. Não demores, que tenho apetite para comer a sério.

Depois de jantar gostaria de dar um pequeno passeio pelo centro, mesmo que naquela hora o mais normal seja que esteja quase deserto, a não ser alguns grupos de jovens estudantes e algum noctívago desirmanado. Mesmo assim vale a pena ver as fachadas das casas que permanecem dos tempos passados, e que não se podem apreciar, porque não existem, nos bairros modernos. São estas ruas e estas casas que, como sabes, dão o carácter às terras, e não as avenidas e caixotes com muitos andares.

- És uma secretária exemplar. Só faltaria que “dormisses” com o chefe. Ah! Desculpa, isso já foi ultrapassado com a cumplicidade do notário. Mas tem outro sabor. Deixou de ser uma transgressão e passou a ser um direito partilhado, de um amor fingido, mais carnal do que o dum cardeal, estamos no amor carinhoso do casal. É muito melhor. Sem comparação. Mas isso não impede de que o bicho-homem, sempre vítima dos instintos, brancos, roses ou mulatas, para se manter fisicamente fiel e digno necessita de lutar e olhar pouco, de preferência para o lado.

- Louco e iludido. É o que tu és. Pensas que as mulheres não pecamos? Que não temos olhos sagazes e que as nossas vaginas não se humectam? Ou não paras a pensar que os ditos cornos não crescem pela graça de Deus, tal como lhe aconteceu a José? Se dizeis que as mulheres somos vaidosas é porque esquecem como são os homens que querem estar activos. Comportam-se como pavões, mas sem a graça dos galos, pois estes além da fachada, das vestes, tem uma agressividade e potencia sexual que só os reis das manadas podem igualar. O melhor é deixarmos este tema, pois ainda nos pode azedar sem necessidade.


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