sábado, 12 de maio de 2018

CRÓNICAS DO VALE - cap. 55



Senhor Presidente, ou Amigo Aníbal Medeiros posso entrar? De facto já entrei. Como está de saúde e disposição? E a Dona Noémia? Confio em que ambos estejam em óptimas condições. O tempo está a melhorar e muitas flores abriram e árvores já mostram folhas novas, assim como os pássaros já tratam dos seus ninhos. Posto que a Primavera traz sempre boas novas à mistura com ventos frios, mesmo assim podemos dar o inverno como terminado.

Mas a visita de hoje, além de renovar o agradecimento pelo apoio logístico e pessoal que nos ofereceu quando da caprichosa festa-convívio, que recordaremos por terminar tristemente, hoje trago uma proposta, muito ligada aos acontecimentos da mata, que lhe queria apresentar.

- O Amigo Maragato não tem que se preocupar com prelúdios e introitos, seja o que for que o traz aqui, a ser possível, estarei ao seu lado. Portanto agradeço que refira de que se trata. Desde aquele "fim-de-festa"btão abrupto, e como sabe, surgiu uma segunda violação do terreno, Desta feita comum cadáver pendurado e com a língua e testículos cortados. Eu só fui ao lugar dos depósitos, por assim dizer, uma vez; logo no dia seguinte ao da primeira oferta macabra. Deixei o assunto nas mãos da GNR e depois da PJ, e preferi ficar na reserva, sem que pudesse ser interpretado como uma fuga, um me esconder.

- Entretanto tive outros afazeres, mas nunca deixei de pensar nestas mortes violentas. E ontem, apesar de terem passado até semanas, decidi ir fazer uma denúncia na GNR por invasão e depósito de cadáveres num terreno da minha propriedade. Convenhamos que devia ter feito esta diligência no dia seguinte ao de terem encontrado o mal enterrado. Mas não fiz! Tinha a cabeça noutra órbita.

E hoje decidi chamar o meu feitor, que conhece aqueles terrenos muito melhor do que eu, para que me orientasse numa espécie de “visita guiada”. E, em sequência, pensei em lhe perguntar a si, como Presidente da Junta, caso tal não lhe causar um atrito na sua autoridade, se nos quer acompanhar.

- Não tenho qualquer inconveniente, amigo Maragato. Estava na sua casa quando surgiu a primeira noticia do mal enterrado, e acompanhei o sargento da GNR quando ele foi dar a inspecção sumária. Nunca mais voltei. Nem sequer quando soube que tinham pendurado um falso enforcado quase encima da cova do primeiro assassinado. Não chove e se, como diz, já tem a ideia de ir até lá agora, eu vos acompanho. Não digo por gosto mas tampouco com relutância.

- O meu feitor, que já conhece, Ernesto Carrapato, diz que estamos perto, mas que, por recomendação da PJ, devemos continuar a pé, a fim de não alterar algumas pistas que tenham ficado.

- É o que me recomendaram, não só quanto a minha pessoa mas que procurasse afastar os curiosos. Eu já andei por aqui mais do que uma vez, depois de partirem as polícias, mas sem companhia. Parece, pelos sinais do chão, que o segundo morto, aquele que penduraram naquele carvalho fingindo que se tinha enforcado -mas num teatro muito mal trabalhado, que nem um cego poderia acreditar- Pelo rastro de um rodado de carro de mão com uma roda de borracha penso que deixaram a viatura ali em baixo, numa clareira onde pelos muitos rastros de pneus devem parar os namorados.

Subiram até aqui por este caminho de cabras, e, pelas pegadas que se viam na minha primeira vez e que hoje estão todas misturadas por tantos que por aí já passaram, devem ter sido três os artistas que se encarregaram de enforcar o morto. Mas isto é o que eu penso, e eu não sou inspector graduado, nem polícia de giro ou guarda republicana. Sou um simples camponês, que só sabe, e mal, de coelhos, cobras e cabras, por assim dizer.

- O que é que pensa disso o Medeiros? Eu confesso que, ignorante das primeiras letras de investigar a sério, até me parece que as palavras do Ernesto tem bastante credibilidade. E desconheço até onde chegaram as pesquisas da Judiciária. Se calhar o Medeiros está mais a par.

. Lamento ter que o desanimar. Os homens da PJ, que quando do primeiro morto pareciam muito abertos, perguntavam e tomavam notas, desta feita andavam mais sisudos. Também fizeram perguntas a uns e outros, quase como se falassem da bola, e sempre fechados em copas. Mesmo a mim, que em princípio sou uma autoridade, de baixo nível mas eleito e aceite, não me fizeram a mínima confidencia. Aquele inspector Cardoso, que esteve na palheta connosco no almoço e depois na sala, no dia seguinte fingia não me conhecer.

- É possível que fosse para não mostrar confiança perante outros elementos da brigada de Coimbra, que eram uns quatro ou cinco, mais o médico legista. Foi o que eu imaginei e por isso segui o seu andamento, sem mostrar qualquer encontro anterior. Nestas coisas temos que dar fé ao que diz Não te metas em casa alheia; bate o fora e espera. Ou o também famoso Não metas o nariz onde não fores chamado.

Eu entendo o que o Medeiros nos quer dizer, e se não fosse que, mesmo indirectamente, sinto ser possível que eu esteja no rol dos suspeitos, e se até agora não fui chamado a depor, e menos arguido neste falso enforcado também optaria por me manter ao largo. Que é o que tenho feito. A vontade é de poder falar com o Dr Cardoso, mas aguento isso e prefiro esperar que sejam eles a desejar ter umas falas oficiais. Preferiria um ambiente descontraído, mas não posso escolher o campo. Aqui não funciona a moeda no ar.


Segue no capítulo LVI

Será hoje que o Cardoso quer conversa?


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