quinta-feira, 10 de maio de 2018

CRÓNICAS DO VALE- Capítulo 54




Fui apresentar queixa na GNR

Constança manteve ao logo dos anos alguns preconceitos e costumes que eu sempre atribuí à sua longa estadia naquele colégio, anexo ao convento de freiras carmelitas descalças. As quais freiras eu sempre vi com sapatos, ou sandálias quando o tempo não era excessivamente frio. Suponho que quando deitadas a descansar então sim que deviam estar descalças de pé e perna, ou com peúgas de lã no inverno.

Sendo correcto posso afirmar que Constança não ficou com o hábito de assistir a missas por tudo e por nada. Não se comportou, depois de casada, como uma beata convicta. Antes afirmo que se adaptou bastante ao meu ateísmo militante, sem que eu a obrigasse ou nem sequer insinuasse, que devia deixar de lado a beatice. Pelo contrário, insisti muitas vezes em que devia assistir ao serviço dominical e que, caso assim desejasse, eu até a acompanharia, apesar de só fazer figura presencial.

O mesmo não aconteceu quanto ao seu acanhamento ou timidez, nomeadamente no que se refere ao pudor excessivo que sentia quanto à exposição do seu corpo, ou de fugir de me ver nu. Esta sua atitude quando já éramos um casal encartado, causou-me uma certa estranheza. Não esperava tanto retraimento. Como deve ser habitual, nas manobras de namoro fiz vários e reiterados avanços. Alguns mesmo muito atrevidos e de nível abusivo, por não respeitar como merecia a namorada. Mesmo quando já comprometidos a casar. Mas eram consentidos da sua parte. Se calhar rezava pedindo perdão a Deus ou à Virgem (mas não muito) Maria.

Constança deu sempre muita importância à cerimónia da boda religiosa, ao vestido branco de noiva, ao véu e ao ramalhete com flor de laranjeira. De nada serviu a minha insistência em lhe dizer que practicanente todas as noivas estavam fartas de fornicar antes deste passo social. Fingia que não ouvia. Eu dizia, para mim, que ela fechava os ouvidos como fazem as focas quando mergulham.

Recordo a camisa de noite da primeira noite! Foi costurada no atelier do convento,o mesmo que se encarregou das peças brancas do seu enxoval. Já podem imaginar... com gola fechada quase até o pescoço e comprimento até os pés; de linho!, mais fria do que gelo. Numa época em que as montras de roupas interiores de senhora já mostravam peças quase minúsculas e sempre ousadas, fossem de seda ou das primeiras fibras sintéticas. Provocantes como deviam ser para incitar o parceiro. Um fiasco, uma desilusão, que não atingiu o cúmulo porque coincidiu com a chegada do período. Ou seja: juntou-se a fome com a vontade de comer!

Se não fosse que eu a amava como pessoa, e que assim continuei até o dia da sua morte, e mesmo depois num até certo modo prolongado luto. Caso o incentivo para casar fosse exclusivamente o sexo, naquele mesmo dia eu teria saído para comprar tabaco e nunca mais teria aparecido. Ai amor a quanto obrigas!

O ambiente levou muito tempo a melhorar, mesmo depois da lua de mel. É que Constança manteve a sua adversão a que a visse nua, e muito mais em tomar posses atrevidas, por mais que eu pedisse, rogasse até. Uma relutância que manteve practicamente até o fim da vida, apesar de termos gerado dois filhos vivos e um morto, sem a ajuda de nenhum anjo ou arcanjo, a mando do Criador. Nem vale a pena referir que as tentativas de executar variantes na acoplagem foram sempre rejeitadas.

Quase que dava a ideia de que conhecia o kamasutra de cor e salteado, pois logo que eu iniciava os prelúdios, levava com os pés e eu ficava com a noção de ser um miserável, um devasso! E de imediato pensava: Foi para isso que casei? Só para o missionário? Convence-la a cavalgar foi uma tarefa épica. Uma lança em África ! Nem gosto de lembrar as centenas de vezes em que, frustrado com a minha vida de casado, tive que bater uma punheta. Eu, que pensava que esta manipulação terminaria quando casasse! Farto de sexo manual confesso que algumas vezes; nãomuitas, mas bastantes, aproveitei viagens de trabalho para desovar com algumas das minhas anteriores conquistas. Que, em geral, continuaram sendo amigas e prestáveis. É que nisso das conquistas não me dei demasiado mal...

Excepto estes pormenores de índole erótica a Constança foi uma esposa exemplar, meiga, educada, boa mãe (até em excesso), sempre com a atenção centrada nos filhos, e só depois o marido (eu) Sorte a minha não termos tido um cãozinho daqueles que passam o dia ao colo da dona, pois até o animal estaria à minha frente, com metros de vantagem! Fora destes insignificantes capítulos reitero que Constança foi uma excelente esposa. E quem pode provar o contrário?

Chega de palermices. Enquanto pensava nestas inutilidades já ultrapassadas fui em direcção ao posto da GNR, onde fui atendido pelo oficial de serviço, que ao ouvir a minha pretensão de denúncia me olhou com ar entre de gozo e espanto. E disse: mas isto já aconteceu umas semanas atrás, pelo menos a do cadáver mal enterrado. E só agora é que o Senhor se lembrou de fazer queixa por escrito?

Tem razão, Senhor Oficial (provavelmente um cabo...), mas aconteceu que estas invasões, quase que tão desastrosas quanto foram as napoleónicas (de vez em quando saem-me umas arrancadas espatafúrdias. E eu gosto tanto.. . Gozo mais do que um tonto com um chupa-chupa) Tem toda a razão, devia ter vindo de imediato, mas eu, mesmo que veterano de algumas guerras, fiquei desorientado e alem disso tive que fazer algumas deslocações que me afastaram deste vosso posto. Mesmo assim agradecia que desse entrada à minha queixa ou denúncia e, se for possível, me facilitasse uma cópia do documento. Pode vir a fazer falta mais adiante. Quem sabe?

Cumprida esta gestão vou ver se consigo incitar o Presidente Aníbal Medeiros para que me acompanhe, juntamente com o feitor dos meus terrenos o Ernesto Garrapato, ao local donde plantaram os cadáveres, caso esteja livre, mesmo com guarda. Pretendo marcar que continuamos a ser os proprietários e, ao mesmo tempo mostrar que não temos medo dos desconhecidos. É possível que por lá encontremos pessoas rondando, que tanto podem ser naturais da zona como desconhecidos que são incitados pelo cheiro da morte, pois estes sucessos geram muita curiosidade. Ouvir os comentários, mesmo os disparates, até pode ser útil.


Segue no cap. LV

Encontro com o Presidente da Junta

Sem comentários:

Enviar um comentário