Continuação das confidências
Quando consegui ter uns momentos
para falar com a Constança, com a cumplicidade de umas amigas,
também pensionistas do convento, e uma noviça que, a meu entender,
estava desejosa de poder dar o salto. A aluna brasileira, que é como
era conhecida no grupo, disse, sem hesitar, que estava farta de estar
entrega às freiras; que a vocação religiosa que lhe pretendiam
inculcar não era propriamente o futuro que desejava. Resumindo, que
aceitou a minha proposta de namoro, com a única condição de que
não aceitava uma abordagem de brincadeira. Ou era para casar ou
podia dar o fora quanto antes.
Respondi que era cedo para assentar
um futuro, pelo menos do meu lado. Eu ainda estava no segundo ano de
direito, e nem sequer tinha a certeza de que continuaria neste curso.
De qualquer modo a minha família tinha uma estrutura de rendimentos
muito consolidada e caso decidíssemos casar tudo se resolveria. Mas
sem pressas. Ela era menor e eu não tinha modo de vida. De forma que
ou namorávamos ou terminávamos agora mesmo.
A fase de namoro durou um par de
anos largos, até ela ter dezoito anos. Nesta altura pedi ao pai da
Constança, que só conhecia de longe, se autorizava que namorasse a
sua filha, dando garantias de que estava sério na minha proposta,
mas não queria por a carroça à
frente dos bois e por isso
pretendia a sua autorização antes de avançar. Não lhe pedia a
filha para casar. Era prematuro. Agora só pretendíamos poder
namorar abertamente sem receios de sermos perseguidos quando ambos
estávamos de boa fé. Não houve problemas com o pai Sousa.
E
assim andamos mais um par de anos num namoro bastante comedido,
apesar dos meus avanços, que Constança foi consentindo. Hoje afirmo
que abusei e ela não devia ter consentido, certamente que por
imaginar que eu era a sua única tábua de salvação. Aquela vida de
clausura tinha afectado Constança, como depois confirmei, mais do
que era normal. Confirmei isto após curtas conversas com algumas das
suas colegas, especialmente com aquelas que tinham familiares perto
que as iam buscar para saírem na sua companhia, escapando daquelas
aves de rapina. As amigas eram unânimes em dizer que o pai da
Constança a tinha abandonada, entregue às freiras, e que lhe
faltava o convívio aberto fora do convento-colégio.
Entretanto
contei ao meu pai que estava decidido a casar com uma namorada que
veio do Brasil, mas que não tinha um futuro próprio. Quase que se
zangou, pois a minha afirmação era quase um insulto à família. Ou
seria que eu deitava pela borda fora tudo o que sabia e tinha
aprendido com o avô e com o pai? A partir deste momento és sócio
efectivo na nossa sociedade, com ordenado mensal e direito à uma
parte quando se distribuírem lucros após um balanço, que não está
supeditado pelo fim do ano, pois que esta casa é liberal para fazer
o que nós entendemos. Outra coisa é a contabilidade oficial. Mas
isto já sabes como funciona.
E
para preparar o futuro imediato, caso pensem em ficar por Coimbra, já
esta tarde, depois do almoço, vamos procurar uma vivenda ou um andar
bem grande, onde se possam instalar. Se fosse eu a decidir optava por
um bom edifício na baixa. Somos capazes de encontrar uma residência
que tenha pertencido a alguém com posses que se deslocasse para o
estrangeiro, ou mesmo para Lisboa ou Porto, e queira negociar o
trespasse ou a venda do imóvel incluindo o mobiliário. Mais uma
coisa, IMPORTANTE,vou perguntar à Dona Idalina, que te conhece desde
miúdo, se aceitaria uma proposta de passar ao teu serviço e da tua
mulher, como governanta. Penso que a sua experiência e dedicação
seriam um grande apoio à nova dona de casa, que, pelo que dizes, não
foi criada no seio de uma família mas sim como pupila num colégio
de freiras. Com certeza que lhe faltará experiência nas coisas mais
banais de uma casa. Com a Idalina pode entrar no ritmo rapidamente e
sem se sentir diminuída.
- De forma que trata de arrumar as vossas vidas. Não faças esperar mais a tua futura mulher e vai, a ser possível, ainda hoje, pedir autorização do tal Serafim de Sousa para casar com a sua filha. A partir de agora só quero saber o dia e o local onde se irá celebrar a boda. Encurtando, pois que as coisas aceleraram, casamos na Sé, depois de que o pai da noiva conseguisse autorização do bispo, já seu amigo do peito (dar dinheiro e prendas é sempre bem recebido pela Igreja. Não ligam às insinuações de pobreza e humildade que eles mesmo transmitem aos outros como sendo este o desejo de Cristo)
O
Sousa quase que dava pulos de contente. Não sei porque tinha um
desejo tão intenso para se ver livre da única filha. Mas o que
conta é que ofereceu como dote de Constança uma enorme casa que
tinha adquirido no Vale do Pito, e que fez renovar com obras de
vulto, assim como caprichou em ajardinar com esmero, tanto na
selecção de árvores como na plantação de novas espécies, que me
disse ter procurado nos viveiros do Estado.
Casamos,
houve festa, passamos a noite no Astória, recém inaugurado, e na
manhã seguinte partimos no Sud-Express para Paris. Dali regressamos
a bordo de um Bugatti, novinho em folha, que foi prenda da dupla avô
e pai.
Quanto
a uma instalação do casal naquele casarão do Vale do Pito, que eu
já visitei a pedido do agora sogro, penso que é prudente deixar
passar uns tempos. Que a Constança possa retomar laços de amizade
com antigas colegas do colégio. Agora com outros moldes, e com total
liberdade para entrar e sair sem ter que depender do meu braço como
acompanhante. Só aceitarei a ideia de mudar de casa quando for a
Constança a sugerir, e mesmo assim gostaria de manter a residência
de Coimbra.
E
cheguei à altura das confidências de índole reservada que tu,
Luísa, mostraste curiosidade, ou vontade de comparar o ontem com o
hoje, coisa que nem sempre é fácil e correcto, pois os tempos e as
pessoas mudamos mais do que aceitamos sem meditar.
(1) Ir
na berlinda ou na boleia são equivalentes. Correspondem a acompanhar
o cocheiro da carruagem, aquele que trazia as rédeas das bestas e o
longo chicote, que fazia soar no ar, sem atingir os animais mas
avisando-os para acelerar o andamento.
Seguirá, com as confidencias
prometidas, no capítulo LIV
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