quarta-feira, 9 de maio de 2018

CRÓNICAS DO VALE – cap. 53



Continuação das confidências

Quando consegui ter uns momentos para falar com a Constança, com a cumplicidade de umas amigas, também pensionistas do convento, e uma noviça que, a meu entender, estava desejosa de poder dar o salto. A aluna brasileira, que é como era conhecida no grupo, disse, sem hesitar, que estava farta de estar entrega às freiras; que a vocação religiosa que lhe pretendiam inculcar não era propriamente o futuro que desejava. Resumindo, que aceitou a minha proposta de namoro, com a única condição de que não aceitava uma abordagem de brincadeira. Ou era para casar ou podia dar o fora quanto antes.

Respondi que era cedo para assentar um futuro, pelo menos do meu lado. Eu ainda estava no segundo ano de direito, e nem sequer tinha a certeza de que continuaria neste curso. De qualquer modo a minha família tinha uma estrutura de rendimentos muito consolidada e caso decidíssemos casar tudo se resolveria. Mas sem pressas. Ela era menor e eu não tinha modo de vida. De forma que ou namorávamos ou terminávamos agora mesmo.

A fase de namoro durou um par de anos largos, até ela ter dezoito anos. Nesta altura pedi ao pai da Constança, que só conhecia de longe, se autorizava que namorasse a sua filha, dando garantias de que estava sério na minha proposta, mas não queria por a carroça à frente dos bois e por isso pretendia a sua autorização antes de avançar. Não lhe pedia a filha para casar. Era prematuro. Agora só pretendíamos poder namorar abertamente sem receios de sermos perseguidos quando ambos estávamos de boa fé. Não houve problemas com o pai Sousa.

E assim andamos mais um par de anos num namoro bastante comedido, apesar dos meus avanços, que Constança foi consentindo. Hoje afirmo que abusei e ela não devia ter consentido, certamente que por imaginar que eu era a sua única tábua de salvação. Aquela vida de clausura tinha afectado Constança, como depois confirmei, mais do que era normal. Confirmei isto após curtas conversas com algumas das suas colegas, especialmente com aquelas que tinham familiares perto que as iam buscar para saírem na sua companhia, escapando daquelas aves de rapina. As amigas eram unânimes em dizer que o pai da Constança a tinha abandonada, entregue às freiras, e que lhe faltava o convívio aberto fora do convento-colégio.

Entretanto contei ao meu pai que estava decidido a casar com uma namorada que veio do Brasil, mas que não tinha um futuro próprio. Quase que se zangou, pois a minha afirmação era quase um insulto à família. Ou seria que eu deitava pela borda fora tudo o que sabia e tinha aprendido com o avô e com o pai? A partir deste momento és sócio efectivo na nossa sociedade, com ordenado mensal e direito à uma parte quando se distribuírem lucros após um balanço, que não está supeditado pelo fim do ano, pois que esta casa é liberal para fazer o que nós entendemos. Outra coisa é a contabilidade oficial. Mas isto já sabes como funciona.

E para preparar o futuro imediato, caso pensem em ficar por Coimbra, já esta tarde, depois do almoço, vamos procurar uma vivenda ou um andar bem grande, onde se possam instalar. Se fosse eu a decidir optava por um bom edifício na baixa. Somos capazes de encontrar uma residência que tenha pertencido a alguém com posses que se deslocasse para o estrangeiro, ou mesmo para Lisboa ou Porto, e queira negociar o trespasse ou a venda do imóvel incluindo o mobiliário. Mais uma coisa, IMPORTANTE,vou perguntar à Dona Idalina, que te conhece desde miúdo, se aceitaria uma proposta de passar ao teu serviço e da tua mulher, como governanta. Penso que a sua experiência e dedicação seriam um grande apoio à nova dona de casa, que, pelo que dizes, não foi criada no seio de uma família mas sim como pupila num colégio de freiras. Com certeza que lhe faltará experiência nas coisas mais banais de uma casa. Com a Idalina pode entrar no ritmo rapidamente e sem se sentir diminuída.

  • De forma que trata de arrumar as vossas vidas. Não faças esperar mais a tua futura mulher e vai, a ser possível, ainda hoje, pedir autorização do tal Serafim de Sousa para casar com a sua filha. A partir de agora só quero saber o dia e o local onde se irá celebrar a boda. Encurtando, pois que as coisas aceleraram, casamos na Sé, depois de que o pai da noiva conseguisse autorização do bispo, já seu amigo do peito (dar dinheiro e prendas é sempre bem recebido pela Igreja. Não ligam às insinuações de pobreza e humildade que eles mesmo transmitem aos outros como sendo este o desejo de Cristo)

O Sousa quase que dava pulos de contente. Não sei porque tinha um desejo tão intenso para se ver livre da única filha. Mas o que conta é que ofereceu como dote de Constança uma enorme casa que tinha adquirido no Vale do Pito, e que fez renovar com obras de vulto, assim como caprichou em ajardinar com esmero, tanto na selecção de árvores como na plantação de novas espécies, que me disse ter procurado nos viveiros do Estado.

Casamos, houve festa, passamos a noite no Astória, recém inaugurado, e na manhã seguinte partimos no Sud-Express para Paris. Dali regressamos a bordo de um Bugatti, novinho em folha, que foi prenda da dupla avô e pai.
Quanto a uma instalação do casal naquele casarão do Vale do Pito, que eu já visitei a pedido do agora sogro, penso que é prudente deixar passar uns tempos. Que a Constança possa retomar laços de amizade com antigas colegas do colégio. Agora com outros moldes, e com total liberdade para entrar e sair sem ter que depender do meu braço como acompanhante. Só aceitarei a ideia de mudar de casa quando for a Constança a sugerir, e mesmo assim gostaria de manter a residência de Coimbra.

E cheguei à altura das confidências de índole reservada que tu, Luísa, mostraste curiosidade, ou vontade de comparar o ontem com o hoje, coisa que nem sempre é fácil e correcto, pois os tempos e as pessoas mudamos mais do que aceitamos sem meditar.
(1) Ir na berlinda ou na boleia são equivalentes. Correspondem a acompanhar o cocheiro da carruagem, aquele que trazia as rédeas das bestas e o longo chicote, que fazia soar no ar, sem atingir os animais mas avisando-os para acelerar o andamento.

Seguirá, com as confidencias prometidas, no capítulo LIV

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