quarta-feira, 16 de maio de 2018

CRÓNICAS DO VALE - cap. 59


  • Luísa, finalmente chegaste. Demoraste mais do que eu imaginava. 

  • E também te digo, isto de estar em casa é como estar enjaulado. Depois de dar umas voltas pelo jardim e pela adega, que ainda está quase de pernas para o ar, duvido de que alguma vez aquilo possa ficar arrumado. De qualquer modo fui-me embora e encontrei-me com que não sabia para onde ir.

  • Falando na adega, por lá existe tralha de décadas, histórica. Alguma até é possível que tenha sido incluída na compra da fazenda pelo meu sogro, pois vi alfaias mecânicas que se não eram da monarquia seriam da primeira república. Sem motor, com tracção de sangue, são anteriores à chegada do futuro Conde do Vale, pai da Constança. Curiosamente hoje, em que a modernidade nos está dando a volta à cabeça, quem se encontra com velharias destas pela frente custa-lhe desfazer-se delas. Criou-se uma memória dos tempos recentes e como resultado são muitas as terras em que instalaram museus etnográficos. Já abriram tantos que não há moscas que cheguem para os visitar. Dito de outra forma: nem sequer estão às moscas.
Retomando o relato. Estas voltinhas caseiras ocuparam pouco mais de uma hora e encontrei-me perdido,sem me decidir a fazer outra coisa que não o de esperar por ti. Sentei-me na sala com um livro. Logo na segunda página enfastiei-me. Fui escolher outro. Com o mesmo resultado, apesar de me esforçar por terminar o primeiro capítulo. E quando lá cheguei senti que não me lembrava do que tinha lido. Nem sequer do ambiente que o escritor descreveu. Fechei e procurei alguma das tuas revistas. Se até aqui a tentativa foi má, com as revistas da fofoquice conseguiu ser pior. Terminei em frente da televisão, como um doente ou reformado. Adormeci com a publicidade sem fim e programas de lixo. Acordei quando ouvi a tua voz ao chegares. Não lembro de outra situação como esta na minha vida.

- Zé, não te apoquentes. Deve ser um reflexo dos assuntos penosos que nos tem enervado. Fiz mal em não esperar por ti antes de ir dar as minhas voltas. Desculpa o abandono. Mas pensei que o Inspector preferia falar contigo a sós, sem sequer a minha presença. Quando terminará esta treta? Ou será que alguma vez terá um fim como nos filmes? Pelo que me tens contado prevejo que muita coisa ficará escondida no nevoeiro, como aconteceu com o embuçado, que esperaram por ele durante mais de cem anos, sem entenderem que tudo tinha terminado com a cumplicidade silenciosa da casa real.

  • Acompanho-te na tua previsão. Soube, e não te devo contar -para o teu próprio resguardo- que, oficiosamente e com exigência de sigilo total, a P.J. Sabe mais coisas do que aquilo que aparece nos jornais, e que foram dadas ordens de caçar os criminosos, ou melhor os executores dos dois crimes. E, certamente, deixar o processo arquivado para não inculpar os mandantes.
    Mais. Foi-me dado a entender, que a quadrilha de bandidos, todos eles não nacionais, não chegarão a ser deportados, nem julgados. Nas entrelinhas sinto que não tardaremos em saber que desapareceram do mapa (digamos dos vivos). Aí existem duas hipóteses, ou aparecem mortos, baleados, num ermo ou numa praia e se atribui este desfecho a um ajuste de contas (?) entre bandos rivais, ou simplesmente os fazem desaparecer mais profissionalmente do que aqueles dois desgraçados. 

  • Eu optaria pela primeira solução, pois com ela podiam dar um aviso,um exemplo bem claro, de que aqui não são aceites intromissões de máfias de fora. Com os nossos malandros já chega e sobra. Somos umPaís pequeno, masmuitocioso das nossas regras e costumes.


Teremos que esperar para ver. Mas o sossego campestre voltará, disso não duvidemos. E se acontecer alguma morte macaca de algum turista confiado na sua sorte num dos seus périplos históricos, como não foi o primeiro nem será o último, será esquecido, tal como foram os anteriores nas mesmas circunstâncias. Afinal é um turista entre milhões... não interessa nem conta no totobola. Todos temos a morte como certa, e se foi em passeio é melhor do que numa doença incurável. Daí que só não se consola aquele que não quer. Haja futebol! E circo.

  • Já percebi. O que nunca me explicaste é quem era o segundo morto, e porque foi tão maltratado, torturado mesmo.
  • Pouco ou nada se falou deste homem. Ele foi morto porque sendo um colega do primeiro, Carlos dos Santos, Carlitos ou Carlota, se recordas, teve a infeliz ideia de pretender agir como detective amador, e começou a percorrer pistas, perguntando aqui e acolá, a este e aquele. Havendo como há bufos de um lado e outro os assassinos souberam desta intromissão. Caçaram-no e lhe deram tareia, e mais até, para que contasse o que sabia e com quem tinha contactado. Esta gente não aceita a mínima intromissão nos seus assuntos.
  • E mesmo que depois dos interrogatórios vissem que não passava de um pobre diabo, sem contactos, mas excessivamente preocupado com o fim o amigo e colega, entenderam que o melhor seria envia-lo para os anjinhos, aproveitando a sua carcaça para avisar outros curiosos e faladores, além dos gays do clube. Por isto e porque são gente sem respeito para ninguém é que lhe cortaram a língua -mensagem para os curiosos e boateiros- e as peças do seu sexo inicial -mensagem para os gays das festas, que devem participar mas não partilhar-
  • Satisfeita com o explicação? Demasiado crua, mas não procurei adoçar esta pílula, amarga q.b. E agora gostava de te apresentar uma ideia que ao longo da tarde foi germinando e crescendo nesta minha cabeça.
  • E se fossemos dar um passeio, de duas ou três semanas, pela Europa fora, na viagem de boda que não chegamos a fazer?

  • Vejo que o sorriso voltou à tua face. Mas é necessário preparar as coisas, desde o plano da viagem, as bagagens e, principalmente obter a permissão, tácita, da PJ para não parecer que escapamos, que fugimos de alguma responsabilidade. Não é coisa de hoje para amanhã.

  • Precisamente amanhã irei a Coimbra, ou iremos juntos se quiseres. Primeiro procurarei o Dr. Cardoso e depois iremos a uma agência com a qual já tratei de outras viagens, e começaremos a estudar locais, dias, transportes e o mais que for pertinente.
  • Óptimo marido! Mas veio-me à memória aquele carrão que te ofereceram no dia do casamento. Um Lamborguini se não estou confundida. O que foi feito dele, que nunca mais te vi com ele nem te referiste a tal carro?
  • Estava a espera que falasses nisso. É uma história rocambolesca que não te quis contar na altura. Quem era o dono real do carro era um industrial de Guimarães, cheio de guita, e com um filho estroina que o moía pedindo um Lamborguini. Como era uma quantia muito elevada pediu-me que o ajudasse numa manobra, legal, para o desvalorizar. Nós o comprávamos, fazíamos a rodagem, que já não se faz, mas esqueçamos o pormenor. Ao estar matriculado e sair do stand, e ficar com o meu nome no livrete ficava imediatamente desvalorizado. Ao regressar entreguei o carro num vendedor, que fingiu outro dono e a conseguinte desvalorização. Deixaram passar o fim do ano, e o livrete ficou mais desactualizado. Então o meu amigo, e cliente de outras manigâncias, o comprou para o filho. E eu meti umas massas para o bolso além de passeamos como ricaços. Mas nunca quis nem quero carros vistosos nas minhas mãos. Não me convêm alardes.
NOTA . O meu processador de texto continua a fazer das suas, e hoje não tenho pachorra para corrigir. Se conseguirem ler, bom. Se não, paciência.

Continua no cap. LX

Sem comentários:

Enviar um comentário