sábado, 5 de maio de 2018

CRÓNICAS DO VALE – cap. 49


Encontro com Rafael Ortega

- Luísa, como sabes estou convocado pelo Rei dos Calés da zona de Aveiro para um jantar que, sem dúvida, será de índole reservada. Nem sei onde será que este Ortega esta disposto a se encontrar comigo.

- Por outro lado não posso afirmar que conheça bem estas gentes. Apesarn de ter tido contactos com ciganos ao longo da vida. Nem sequer são pessoas que nos ofereçam uma oportunidade para tentar descobrir alguma intimidade. São um povo muito especial, de estirpe nómada, embora alguns já se radicaram aqui, com casa e bens. Dizem que são oriundas da península indostânica, até se lhes atribui terem iniciado a sua diáspora a partir do actual Paquistão. E não tenho memória de que numa reunião importante estivessem mulheres presentes.

Atrevo-me a dizer que este povo cigano tem os seus costumes e regras que, se as analisarmos não diferem muito das que eram gerais entre nós cem anos atrás. Qualifico como uma sociedade patriarcal, que por trás do palco é, tal como entre os payos, mostra ter muitos assuntos onde predomina o comando das mulheres. Ou seja, que existe neles uma dicotomia de poder, mais fingida do que real, entre o patriarcado e o matriarcado.

Ou seja, o facto de que o Ortega te conheça não quer dizer que te coloque em pé de igualdade. Por isso, e mais uma vez, muito contrariado como marido, tenho que te pedir que em chegando a Aveiro te juntes a alguma das tuas amizades; que jantem juntas ou acompanhadas e aguardes a minha chamada. Sugiro que agora faças alguma chamada particular para te orientares e eu vou estacionar para ligar ao tal Rafael Ortega e não andar por aí à toa. 

- Senhor Ortega ou Don Rafael, se preferir, sou o José Maragato. Já estou em Aveiro e, se lhe é possível, pode-me orientar para ir aolugar onde nos podemos reunir, sem testemunhas incómodas.

.....
- Amigo Maragato, sempre pontual como um relógio suíço. O melhor é que eu aguarde por si em frente do Turismo, antes de atravessar a ria, e depois faz-me sinal para que avance e o senhor me siga. Ando num Mercedes Azul muito escuro, quase preto. Não tem engano. Não demoro,pois já estou na Avenida Lourenço Peixinho. Já vi o seu carro e faço sinais de luzes. Vou atrás de si.

......

- Esta zona onde nos encontramos agora não é propriamente de interesse turístico, mas nesta tasca além de cozinhar bem e com produtos frescos, em especial peixe e marisco, tudo é de confiança. Pode ser que estranhe algumas caras, mas não é casual estarem sentados virados para e mesa reservada. Tenho que ter as costas sempre cobertas. O Amigo é meu convidado e podemos comer com toda a tranquilidade. Sente-se, se faz favor. 

- Se aceitar as minhas opções já tenho o menu assente e em andamento. Para fazer boca trazem uma ameijoas abertas, com molho de alho, salsa e azeite, mas sem aquela areia que as pode tornar intragáveis. E uns bocados de enguia frita, das gordas. Para acompanhar um verde branco bem gelado. O que vier a seguir já se verá. Guardaremos a conversa séria para o café, enquanto digerimos calmamente.

- Se as ameijoas estavam óptimas, este robalo de anzol(vê-se bem que não é do viveiro da Pescanova, que se não faliu por completo está a meter água pelo cavername) promete vir a deixar saudades, e não só ele, estes grelos cozidos, com uma cor verde claro que dizem come-me, não desmerecem. O Ortega sabe escolher bem um jantar, leve e agradável. 

- É pena aquilo  que por aí consta da Pescanova. A ria necessitava de iniciativas deste teor. Se eu não estou enganado ali coincidiram erros de gestão e não conseguiram aguentar a expansão global do seu negócio. Por outro lado soube-se que naõ foram respeitadas e menos cumpridas as normas lagais sobre a largada de águas poluídas na zona lacustre. Podem não ser todos culpados, mas o que se confirma é que estas águas estão muito poluídas. Inclusive algumas entidades oficiais poucos resultados positivos mostraram nas análises efectuadas. Tanto dinheiro gasto terá ido pelo esgoto abaixo ou se esfumou pelo caminho? Entre os financimentos europeus, e dinheiros do Orçamento do Estado, empréstimos bancários sem garantias, que depois tiveram que ser (?) pagos por todos os cidadãos, tem sido um desastre, ou um fartai vilanagem. Portugal não precisa de nós, ciganos, para meter paus nas rodas da economia. Os patriotas, que dizem merecer respeito, chegam e sobram para estragar tudo..

- Não tenho argumentos sérios para o contradizer. Aliás, há bastantes anos, pouco depois da abrilada, que em conversas com o meu falecido pai, opinávamos que aquela alvorada promissora não tardou em se transformar num esterqueiro mal cheiroso. De quem é a culpa? A minha avó dizia que a culpa é negra e ninguém a quer. O que equivale ao que muitos pensamos: que os culpados somos todos, mas que nada fazemos para alterar os factos. As pessoas se habituaram com o consolo do cornudo. Ficar satisfeitos com poder apontar umas dúzias de indivíduos concretos e dormir sossegados. Quando surge a oportunidade de fazer uma triagem, nas tais eleições gerais, consegue-se que tudo fique na mesma ou pior. Um panorama que se repete em muitos patamares da sociedade nacional, desde a formação de governos até os clubes desportivos, passando pelas juntas de freguesia, e muitas Câmaras Municipais. 

O que lhe digo, Senhor Ortega, é que já estou quase ao nível de azedar a digestão. Se não se importar, mal por mal, gostaria de saber se tem alguma coisa acerca do meu problema que mereça ser contada. Tenho muito interesse em me ver livre destes mortos.

- Pois, Amigo Doutor Maragato (não sou doutor a sério, com deve saber!) Eu sei, e já me disse isto umas poucas de vezes. Acontece que eu quero usar esta qualidade só, e com muita vontade, por uma questão de respeito e amizade. Com os anos verifiquei que o Maragato não pensa nem age para nós da mesma forma, mistura de medo, vergonha e altivez, com que somos tratados pela maioria dos seus compatriotas, que aliás também são nossos pois os documentos assim o dizem.

Entrando no assunto. O que me disse no outro dia está mais do que certo. Aquelas mortes, assassínios, não foram obra de um exaltado qualquer. Ali, como deduziu e bem, houve mão de profissionais. E as suas suspeitas não estavam muito erradas. Pelo que fui sabendo, por ali andaram, e ainda andam, gentes do Leste, que os meus homens definem como mercenários e bandidos da pior espécie. Também acertou ao pensar que nós, os ciganos, não morremos de amores com estas gentes. Que desejaríamos fossem corridos quanto antes. Mas não temos estofo, nem treino, nem por enquanto armamento, para os enfrentar.

De facto, sensatamente pensamos que, tal como o Amigo deixou no ar, poderia ser favorável poder conjugar esforços com as autoridades policiais de Portugal, e quem sabe se até, através destas, com a Interpol. Mas a quem nos apresentar? Com a GNR temos precisamente o controle dos campos, das matas e caminhos, mas entre nós e eles passamos épocas de assédio e outras com  calma, com fechar de olhos e troca de favores. A PSP, que actua nas ciudades e vilas mais importantes, comporta-se de forma parecida, mas seguindo regras internas diferentes. Uns são militares e os outros civis, mesmo que fardados e com galões. São conceitos e comportamentos que nãp coincidem totalmente, Se calhar o mais promissor poderia surgir dum encontro, sem público nem fotógrafos, com responsáveis da Judiciária.

E aqui é onde penso que o Dr. José Maragato, que até é parte interessada neste problema, poderia ser um intermediário, uma ponte de ligação entre as duas sociedades, a nacional PJ e a informal, mas existente, onde eu tenho um lugar. E somos muitos “irmãos”, que ultrapassam em milhares aos que estão sob a minha alçada directa em Aveiro e arredores. O que me diz a este sonho?

- Se para si é um sonho, para mim é um pesadelo. E, sem ter todas as cartas deste baralho imagino que estamos perante uma ameaça social nova, da qual não temos experiência. Amanhã vou tentar falar com o inspector a quem lhe entregaram a solução dos dois mortos, e, se a conversa se proporcionar, lhe apresentar a hipótese de colaboração que, em esboço, ficou alinhavada.

Penso que, por enquanto, não podemos avançar muito mais. Se bem que julgo que o Amigo Ortega conheça mais alguns pormenores importantes que ainda não apresentou. Fez bem, faltam muitas mãos neste jogo e tem que se acertar o andamento dos elementos que se juntem para tentar tranquilizar o ambiente. E agora vou ter com a minha mulher, que espera pacientemente.

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