De
facto não te demoraste muito. E trataste das coisas devidamente?
Sem
problemas. Todos eram gente conhecida de longo tempo. Os mais velhos
viram-me de calções, em garoto. Sem estar mascarado de lusito, ou
de escuteiro. Fartos de fardas e galões estavam os meus
progenitores. Estes veteranos conhecem muitos capítulos, por dentro
quase sempre, e por isso não necessito explicar. E como lhes disse
que daria rumo a todos. Que não deixaria ninguém na valeta, não se
gerou qualquer sintoma de pânico.
Francamente posso dizer que me consideram como sendo (quase) da família de
cada um deles. Ou perto disso, pois já fui padrinho de baptizados e
casamentos num ror de ocasiões. Qualquer dia começarão a aparecer
na casa do Vale, com saudações de “padrinho-madrinha” como nos
filmes de mafiosos. Logo que lhes disse que tinha casado mostraram um
vivo interesse para conhecer a nova “patroa”.
…...
São
boas horas para o caminho que temos pela frente. O tempo está bom e
estas estradas de agora encurtam muito o tempo necessário. Quase que
parece que mudamos para um país progressista. Como só tenho um
compromisso, ou temos se quiseres estar presente, à hora de jantar,
podemos almoçar tranquilamente seja em Mangualde ou até podemos
desviar para Santa Comba. Nesta terra, berço de Salazar, tenho
conhecimentos -já vi que fizeste sinal de que tenho conhecimentos
em qualquer canto. O que é que esperavas? Ando por estas bandas
desde criança, sempre misturado com adultos!- Ao que ia, já te
tinha dito que suspeito desta zona como ser o covil da malandragem
que me incomoda e se atreve a ofender. Se souber manobrar a conversa
pode ser que, sempre nas entrelinhas pois este pessoal não se quer
comprometer, me ofereçam alguma dica que não dariam à polícia.
Luísa,
já deves ter captado que apesar de estar decidido que me acompanhes
nas minhas deslocações, ou pelo menos nalgumas, alguns dos
encontros, ou concretamente as pessoas com quem está programado que
me encontre, e também os temas que constam da agenda -falando
como se isto fosse uma empresa e não mais uma espécie de maçonaria
sem emblema, aventais nem juramentos como corolário de rituais
esotéricos- Neste aspecto o grupo de pessoas com quem
tenho conexões e negócios, são mais livres e ao mesmo tempo
conscientes de que o seu interesse pessoal coincide com o interesse
de todos os membros de grupo. Um total que eles avaliam como bastante
numeroso, embora só conhecem uma minoria dos “sócios”.
Não
por hermetismo mas simplesmente porque as áreas onde cada um deles
se move não carecem de saber da existência concreta de quem compõe
e a que se dedicam as outras parcelas. Quando sinto que aquilo em que
uma célula está metida excede as suas capacidades, dou indicações
para que duas ou mais células coordenem o seu trabalho e as suas
especialidades. Vou dar-te um exemplo de como funciona tudo isto, e
verás que é, ao mesmo tempo, complexo e simples quando todos os
sectores funcionam correctamente.
O
exemplo mais elucidativo é o da fisiologia humana. As funções e
importância dos diferentes órgãos, desde o cérebro ao coração,
passando pelos rins, fígado, bexiga, próstata, testículos,
placenta, ovários, olhos, braços e pernas, dedos e dentes, ouvidos,
fel, e muitas glândulas de que nem nos preocupamos, ou só quando
deixam de funcionar como lhes é exigido, não conduz a que desde o
posto de comando cerebral desprezemos nenhum dos órgãos. Todos eles
tem funções importantes. Assim funciona a organização que o meu
avo e depois o meu pai foram construindo e aperfeiçoando. Aquilo que
diferencia esta espécie de sociedade secreta das outras, desde a
maçonaria até o Opus Dei é que não pretende mudar os governos,
construir uma elite de dominantes e exploradores, nem cair em
favoritismos castradores.
O
que mantêm os elementos fieis e até transmitem de pais para filhos,
é o saberem que as regras que seguem são impostas pela sua
consciência. Não houve nunca necessidade de expulsar nenhum
companheiro, pelo menos numa sessão plenária -que
nunca houve tal. Aqui não há congressos nem missas negras-
Se alguém falha por ignorância, descuido ou incapacidade, os
elementos mais próximos dão-lhe ajuda. Mas caso se identificar uma
ovelha ranhosa, esta de imediato é posta de lado, no clássico
ostracismo, até que ele mesmo abandona o campo. Verem-se isolados é
um castigo mais pesado do que seria ser flagelado ou aprisionado.
Fico
com a impressão de que esta descrição te aborreceu e até não
acreditaste de tanta bondade e que partilhem uma espécie de
democracia muito especial, sem regras escritas nem estatutos. Mas é
assim, e funciona.
Perdi-me
nesta dialéctica bizarra. O que importa neste momento é aquilo que
me disseram nas entre-linhas. Mais com os olhares e gestos do que com
palavras. Notei que existe muito receio entre as pessoas de bem,
sempre mais temerosas do que os velhacos. Mesmo assim consegui que
confirmassem terem visto gente muito estranha, encorpados de
corpo, mais do que os nossos comandos. E falando numa língua que nem
aqueles que estiveram na imigração conseguiam entender.
A
partir daí tentei que me orientassem para o local donde penso que se
juntavam a visitantes portugueses; que devia ser num solar de grande
porte. Só consegui uns acenos de cabeça, e mesmo assim pouco
específicos. O mais importante foi dizerem que houve dias em que, os
tais matulões que davam ar de militares bem treinados, cortavam
algumas estradas ou caminhos do mato dizendo, mais com sinais do que
pelas palavras, que estavam cortando árvores, abrindo aceiros com
máquinas ou outra história qualquer, que sempre ficava em que havia
perigo e não deixavam passar. Nada os demovia, e nem sequer
mostravam interesse em ouvir as razões pessoais de quem teimava. Os
gestos eram sempre bruscos e as caras fechadas. E houve quem
afirmasse que outro, que jamais era nomeado, disse ter visto armas
sob os casacos.
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