sexta-feira, 4 de maio de 2018

CRÓNICAS DO VALE . Cap. 48




De facto não te demoraste muito. E trataste das coisas devidamente?

Sem problemas. Todos eram gente conhecida de longo tempo. Os mais velhos viram-me de calções, em garoto. Sem estar mascarado de lusito, ou de escuteiro. Fartos de fardas e galões estavam os meus progenitores. Estes veteranos conhecem muitos capítulos, por dentro quase sempre, e por isso não necessito explicar. E como lhes disse que daria rumo a todos. Que não deixaria ninguém na valeta, não se gerou qualquer sintoma de pânico.

Francamente posso dizer que me consideram como sendo (quase) da família de cada um deles. Ou perto disso, pois já fui padrinho de baptizados e casamentos num ror de ocasiões. Qualquer dia começarão a aparecer na casa do Vale, com saudações de “padrinho-madrinha” como nos filmes de mafiosos. Logo que lhes disse que tinha casado mostraram um vivo interesse para conhecer a nova “patroa”.

...

São boas horas para o caminho que temos pela frente. O tempo está bom e estas estradas de agora encurtam muito o tempo necessário. Quase que parece que mudamos para um país progressista. Como só tenho um compromisso, ou temos se quiseres estar presente, à hora de jantar, podemos almoçar tranquilamente seja em Mangualde ou até podemos desviar para Santa Comba. Nesta terra, berço de Salazar, tenho conhecimentos -já vi que fizeste sinal de que tenho conhecimentos em qualquer canto. O que é que esperavas? Ando por estas bandas desde criança, sempre misturado com adultos!- Ao que ia, já te tinha dito que suspeito desta zona como ser o covil da malandragem que me incomoda e se atreve a ofender. Se souber manobrar a conversa pode ser que, sempre nas entrelinhas pois este pessoal não se quer comprometer, me ofereçam alguma dica que não dariam à polícia.

Luísa, já deves ter captado que apesar de estar decidido que me acompanhes nas minhas deslocações, ou pelo menos nalgumas, alguns dos encontros, ou concretamente as pessoas com quem está programado que me encontre, e também os temas que constam da agenda -falando como se isto fosse uma empresa e não mais uma espécie de maçonaria sem emblema, aventais nem juramentos como corolário de rituais esotéricos- Neste aspecto o grupo de pessoas com quem tenho conexões e negócios, são mais livres e ao mesmo tempo conscientes de que o seu interesse pessoal coincide com o interesse de todos os membros de grupo. Um total que eles avaliam como bastante numeroso, embora só conhecem uma minoria dos “sócios”.

Não por hermetismo mas simplesmente porque as áreas onde cada um deles se move não carecem de saber da existência concreta de quem compõe e a que se dedicam as outras parcelas. Quando sinto que aquilo em que uma célula está metida excede as suas capacidades, dou indicações para que duas ou mais células coordenem o seu trabalho e as suas especialidades. Vou dar-te um exemplo de como funciona tudo isto, e verás que é, ao mesmo tempo, complexo e simples quando todos os sectores funcionam correctamente.

O exemplo mais elucidativo é o da fisiologia humana. As funções e importância dos diferentes órgãos, desde o cérebro ao coração, passando pelos rins, fígado, bexiga, próstata, testículos, placenta, ovários, olhos, braços e pernas, dedos e dentes, ouvidos, fel, e muitas glândulas de que nem nos preocupamos, ou só quando deixam de funcionar como lhes é exigido, não conduz a que desde o posto de comando cerebral desprezemos nenhum dos órgãos. Todos eles tem funções importantes. Assim funciona a organização que o meu avo e depois o meu pai foram construindo e aperfeiçoando. Aquilo que diferencia esta espécie de sociedade secreta das outras, desde a maçonaria até o Opus Dei é que não pretende mudar os governos, construir uma elite de dominantes e exploradores, nem cair em favoritismos castradores.

O que mantêm os elementos fieis e até transmitem de pais para filhos, é o saberem que as regras que seguem são impostas pela sua consciência. Não houve nunca necessidade de expulsar nenhum companheiro, pelo menos numa sessão plenária -que nunca houve tal. Aqui não há congressos nem missas negras- Se alguém falha por ignorância, descuido ou incapacidade, os elementos mais próximos dão-lhe ajuda. Mas caso se identificar uma ovelha ranhosa, esta de imediato é posta de lado, no clássico ostracismo, até que ele mesmo abandona o campo. Verem-se isolados é um castigo mais pesado do que seria ser flagelado ou aprisionado.

Fico com a impressão de que esta descrição te aborreceu e até não acreditaste de tanta bondade e que partilhem uma espécie de democracia muito especial, sem regras escritas nem estatutos. Mas é assim, e funciona.

Perdi-me nesta dialéctica bizarra. O que importa neste momento é aquilo que me disseram nas entre-linhas. Mais com os olhares e gestos do que com palavras. Notei que existe muito receio entre as pessoas de bem, sempre mais temerosas do que os velhacos. Mesmo assim consegui que confirmassem terem visto gente muito estranha, encorpados de corpo, mais do que os nossos comandos. E falando numa língua que nem aqueles que estiveram na imigração conseguiam entender.

A partir daí tentei que me orientassem para o local donde penso que se juntavam a visitantes portugueses; que devia ser num solar de grande porte. Só consegui uns acenos de cabeça, e mesmo assim pouco específicos. O mais importante foi dizerem que houve dias em que, os tais matulões que davam ar de militares bem treinados, cortavam algumas estradas ou caminhos do mato dizendo, mais com sinais do que pelas palavras, que estavam cortando árvores, abrindo aceiros com máquinas ou outra história qualquer, que sempre ficava em que havia perigo e não deixavam passar. Nada os demovia, e nem sequer mostravam interesse em ouvir as razões pessoais de quem teimava. Os gestos eram sempre bruscos e as caras fechadas. E houve quem afirmasse que outro, que jamais era nomeado, disse ter visto armas sob os casacos.

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