quinta-feira, 3 de maio de 2018

CRÓNICAS DO VALE . Cap 47



- Viseu já fica para trás. E agora não posso alongar a estadia na Guarda, se bem que é de suma importância pois que foi daqui que partiram as naus que geraram a empresa dos Maragato em Portugal. Além das ligações sentimentais tenho assuntos importantes que devo fechar, desaparecer quanto antes, em concreto as transferências de bens e pessoas, clandestinamente, pela fronteira tão próxima. Esta pasta ficará encerrada hoje a pedra e cal, sem desprezar os direitos legais e humanos que tenho para os meus colaboradores directos. 

Um par deles ainda os herdei do meu pai. Devem ter “entrado no quadro” ainda crianças, coisa normal naqueles tempos em que os rapazes eram empurrados a um comportamento e responsabilidades de adulto sem passarem pela fase de juventude escolar e de uma adolescência protegida, que hoje entendemos ser tão importante e fundamental para lhes proporcionar uma responsabilidade capaz quando adultos.

Sinto que, estes pensamentos silenciosos, enquanto a Isabel dormita ao meu lado, bem fixa com o cinto de segurança, não correspondem a uma realidade geral. Ainda hoje existem muitas bolsas de trabalho infantil, de tráfego de pessoas, de abusos ilegais e, quase sempre, alicerçado na ignorância e carência de cultura que, ignominiosamente, consentimos olhando para o lado. Em suma, como sempre aproveitam-se da pobreza e da ignorãncia.

Recordo o sucedido no escritório de um estabelecimento nosso. Quando o pessoal entrou ao serviço verificaram que alguêm tinha entrado por uma janela alta, de reduzidas dimensões. A polícia compareceu à chamada e, por observação além da colheita de impressões digitais, deduziram que por lá andaram duas crianças, sem cadastro porque aquelas marcas não constavam dos ficheiros. Após denúncia oficial, para satisfazer as exigências da companhia de seguros, e declarações presenciais, a queixa ficou no limbo durante uns três anos, com algumas convocatórias do tribunal, ameaçadoras de graves castigos caso não comparecesse pontualmente. Ali sempre me informavam que não se tinha chegado a nada, que tudo estava na mesma. Pode-se ir embora!

Um dia, inesperadamente, fui abordado na oficina por um sujeito, vestido civilmente e com um blusão de camurça, que me disse ser membro da P.J. E que vinha a propósito do roubo acontecido anos atrás. A minha reacção, impensada, foi soltar uma gargalhada e dizer que aquilo parecia tirado de uma série de televisão, porque do tribunal insistentemente me informavam que não se descobriam os autores. Senti que o polícia a paisana, como era de facto, não tinha ficado ofendido. Convidou-me a que o acompanhasse até a viatura oficial a seu serviço, porque ali poderia conhecer os gatunos, dois garotos bem novos. Respondi que não tinha o mínimo interesse em os conhecer, até porque sendo eu mau fisionomista, nunca recordaria as suas caras.

Vendo que eu não pensava em “vinganças” esclareceu que não tinham recuperado bens deste roubo, nem de muitos outros que a quadrilha confessou terem efectuado, pois era normal que quando eram apanhados com a boca na botija despejassem uma lista de feitos anteriores, que após julgamento e com uma pena global ficariam esquecidos. 

Neste caso particular, e é por isso que me veio à memória, o agente da PJ decidiu esclarecer que a quadrilha era constituída por uma numerosa família. Os mais pequenos entravam nas casas e tiravam o que entendiam ter valor. Os maiores ficavam de fora, vigiando; o pai, a certa distâcia, mantinha-se no carro que lhes proporcionaria a fuga. As filhas eram todas distribuídas na prostituição e roubo dos clientes, E o pai, sendo desempregado e portador de um cartão hospitalar como ser doente crónico, não podia ser imputado. Daí que, aquela visita era só um pró forma, um passeio. Todos os membros da quadrilha eram inocentes como bebés recém nascidos.

Falta acrescentar que, dois dias depois, chegou mais um postal intimando que passasse pelo tribunal, sem mencionar o motivo. Ao chegar e me identificar, o funcionário colocou um ofício à minha frente para que assinasse. Nele se dizia que por não se ter solucionado o caso do roubo, o processo ficava arquivado. Fiquei siderado. Barafustei em como podia ser isto. Que dois dias antes veio um agente da PJ com dois rapazes que eram os autores do roubo, e agora me diz que fica arquivado sem estar resolvido? Não posso assinar isso! O funcionário, sem mostrar que se importasse, respondeu que seria melhor eu assinar, porque em caso contrário seria impugnado judicialmente por não respeitar as ordens do tribunal. Assinei remoendo.
Este exemplo, vivido directamente pode servir de amostra de como, até nos assuntos de menos monta, o funcionamento da máquina judicial tem caminhos pouco compreensivos para o cidadão comum.

Então, Isabel, acordaste mesmo quando já estamos subindo a ladeira do centro da cidade. Mais uma vez terei que te deixar abandonada porque os que devo ver , e com quem tenho que despachar, penso que não nos seria favorável que estivesses presente. Por outro lado, como creio que já te disse, chegou uma chamada do cigano Ortega. Propõe um encontro a hora de jantar em Aveiro. Como sabes convêm aceitar sem desculpas. Por estas razões e outras, não me demorarei. Estaremos em contacto telefónico, seja ligando eu ou tu. Podes interromper sem problemas.

Levantei fundos em Viseu e deixo-te um envelope recheado, com cujo conteúdo poderás passar um par de horas. Gastas ou amealhas, como a formiga.

Sem comentários:

Enviar um comentário