- Viseu
já fica para trás. E agora não posso alongar a estadia na Guarda,
se bem que é de suma importância pois que foi
daqui que partiram as naus
que geraram a empresa dos
Maragato em Portugal. Além das ligações sentimentais tenho
assuntos importantes que devo fechar, desaparecer quanto antes, em
concreto as transferências de bens e pessoas, clandestinamente, pela
fronteira tão próxima. Esta pasta ficará encerrada hoje a pedra e
cal, sem desprezar os direitos legais e humanos que tenho para os
meus colaboradores directos.
Um par deles ainda os herdei do meu pai.
Devem ter “entrado no quadro” ainda crianças, coisa normal
naqueles tempos em que os rapazes eram empurrados a um comportamento
e responsabilidades de adulto sem passarem pela fase de juventude
escolar e de uma adolescência protegida, que hoje entendemos ser tão
importante e fundamental para lhes proporcionar uma responsabilidade capaz
quando adultos.
Sinto
que, estes pensamentos silenciosos, enquanto a Isabel dormita ao meu
lado, bem fixa com o cinto de segurança, não correspondem a uma
realidade geral. Ainda hoje existem muitas bolsas de trabalho infantil, de
tráfego de pessoas, de abusos ilegais e, quase sempre, alicerçado
na ignorância e carência de cultura que, ignominiosamente,
consentimos olhando para o lado. Em suma, como sempre aproveitam-se da pobreza e da ignorãncia.
Recordo
o sucedido no escritório de um estabelecimento
nosso. Quando o pessoal entrou ao serviço verificaram que alguêm tinha entrado por uma janela alta, de
reduzidas dimensões. A polícia compareceu à chamada e, por observação além da
colheita de impressões digitais, deduziram que por lá andaram duas
crianças, sem cadastro porque aquelas marcas não constavam dos
ficheiros. Após denúncia oficial, para satisfazer as exigências da
companhia de seguros, e declarações presenciais, a queixa ficou no
limbo durante uns três anos, com algumas convocatórias do tribunal, ameaçadoras
de graves castigos caso não comparecesse pontualmente. Ali sempre me
informavam que não se tinha chegado a nada, que tudo estava na
mesma. Pode-se ir embora!
Um
dia, inesperadamente, fui abordado na oficina por um sujeito, vestido
civilmente e com um blusão de camurça, que me disse ser membro da
P.J. E que vinha a propósito do roubo acontecido anos atrás. A
minha reacção, impensada, foi soltar uma gargalhada e dizer que
aquilo parecia tirado de uma série de televisão, porque do tribunal
insistentemente me informavam que não se descobriam os autores.
Senti que o polícia a paisana, como era de facto, não tinha ficado
ofendido. Convidou-me a que o acompanhasse até a viatura oficial a
seu serviço, porque ali poderia conhecer os gatunos, dois garotos
bem novos. Respondi que não tinha o mínimo interesse em os conhecer,
até porque sendo eu mau fisionomista, nunca recordaria as suas
caras.
Vendo
que eu não pensava em “vinganças” esclareceu que não tinham
recuperado bens deste roubo, nem de muitos outros que a quadrilha
confessou terem efectuado, pois era normal que quando eram apanhados
com a boca na botija despejassem
uma lista de feitos anteriores, que após julgamento e com uma pena global ficariam
esquecidos.
Neste caso particular, e é por isso que me veio à
memória, o agente da PJ decidiu esclarecer que a quadrilha era
constituída por uma numerosa família. Os mais pequenos entravam nas
casas e tiravam o que entendiam ter valor. Os maiores ficavam de
fora, vigiando; o pai, a certa distâcia, mantinha-se no carro que lhes proporcionaria a fuga. As filhas eram todas distribuídas na prostituição
e roubo dos clientes, E o pai, sendo desempregado e portador de um
cartão hospitalar como ser doente crónico, não podia ser imputado.
Daí que, aquela visita era só um pró forma, um passeio. Todos os membros da quadrilha eram inocentes como bebés recém nascidos.
Falta
acrescentar que, dois dias depois, chegou mais um postal intimando que
passasse pelo tribunal, sem mencionar o motivo. Ao chegar e me
identificar, o funcionário colocou um ofício à minha frente
para que assinasse. Nele se dizia que por não se ter solucionado o
caso do roubo, o processo ficava arquivado. Fiquei siderado.
Barafustei em como podia ser isto. Que dois dias antes veio um agente
da PJ com dois rapazes que eram os autores do roubo, e agora me diz
que fica arquivado sem estar resolvido? Não posso assinar isso! O
funcionário, sem mostrar que se importasse, respondeu que seria
melhor eu assinar, porque em caso contrário seria impugnado judicialmente por não respeitar as ordens do tribunal. Assinei
remoendo.
Este
exemplo, vivido directamente pode servir de amostra de como, até nos
assuntos de menos monta, o funcionamento da máquina judicial tem
caminhos pouco compreensivos para o cidadão comum.
Então,
Isabel, acordaste mesmo quando já estamos subindo a ladeira do
centro da cidade. Mais uma vez terei que te deixar abandonada porque
os que devo ver , e com quem tenho que despachar, penso que não nos seria favorável que estivesses presente. Por outro lado, como creio que já te disse,
chegou uma chamada do cigano Ortega. Propõe um encontro a hora de
jantar em Aveiro. Como sabes convêm aceitar sem desculpas. Por estas
razões e outras, não me demorarei. Estaremos em contacto
telefónico, seja ligando eu ou tu. Podes interromper sem problemas.
Levantei
fundos em Viseu e deixo-te um envelope recheado, com cujo conteúdo
poderás passar um par de horas. Gastas ou amealhas, como a formiga.
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